Entrevista Julián Reynolds. Do cinema à geologia, até aos vinhos no Alentejo
O produtor da casa Reynolds, existente há mais de 200 anos, tem histórias para contar desde que o seu tetravô chegou ao Porto no início do século XIX. Uma narrativa que passa por Inglaterra, Espanha, Nova Zelândia e Portugal. Mas a palavra certa para Julian Cuellar Reynolds é: raiano.
A história da sua família no sul da Europa começa na segunda década de 1800 no Porto, com o seu tetravô a estabelecer-se no Porto. Quem era Thomas Reynolds?
O meu tetravô que se estabeleceu no Porto era um homem do mar e um comerciante que levava mercadorias para Londres onde tinha um armazém. Enviava produtos com muita procura no Reino Unido, não só de Portugal, mas também de Espanha. O azeite e a cortiça, que na altura começava a ser utilizada na indústria. Viu essa oportunidade de negócio e acabou por instalar-se no Porto no início do século XIX, entre os anos 20 e 24, não sabemos exatamente, porque nos falta esse documento.
Abriu uma empresa, mas os seus filhos já saíram do Porto…
Instalou-se com a firma Thomas Reynolds & Sons. Na segunda geração - estamos a falar do meu trisavô e do seu irmão - Thomas (com o mesmo nome do pai) e Robert Reynolds foram para o sul interessados na indústria da cortiça. A indústria utilizava cortiça para as juntas dos motores. Criaram a primeira fábrica em Alburquerque, Espanha, em 1833, abriram outra em Portalegre e acabaram por possuir 14 fábricas entre Espanha e Portugal. De Portugal levavam o produto pelo rio Tejo até Lisboa e daí para Inglaterra. Também embarcavam muita cortiça através do porto de Sevilha, que levavam através do rio Guadalquivir.
Thomas e Robert Reynolds, da segunda geração, ficaram pela Raia, mas não eram os ingleses típicos…
Na altura, quando os britânicos iam para outros países, formavam comunidades e nunca se misturavam. Mas estes meus antepassados, o meu trisavô e o seu irmão misturaram-se completamente com os portugueses e com os espanhóis. Um casou-se com uma espanhola e outro com uma portuguesa. O Robert nunca mais saiu da região e o Thomas, mais velho, foi para a Nova Zelândia e nunca mais voltou. Uma curiosidade interessante: eles eram protestantes e quando se apaixonaram por aquelas damas não podiam casar porque não era permitido pelos dois países católicos.
Então, como fizeram?
O Thomas enamorou-se de uma rapariga que trabalhava numa das fábricas no Alentejo e foi um escândalo. Fugiu com ela, casaram-se na embaixada britânica em Lisboa e partiram para a Nova Zelândia. Levaram um rebanho de ovelhas merinas que introduziram na Nova Zelândia, hoje o maior produtor do mundo de carne de ovelha merina.
Thomas partiu e o seu trisavô Robert ficou por cá.
Certo. Ambos ficaram totalmente arruinados financeiramente. Tinham investido num banco em Sevilha que foi à falência. Ficaram sem nada. Tiveram de vender património e isso também ajudou à decisão de Thomas para ir para a Nova Zelândia. O Robert ficou cá para tentar vender o resto e seguir o mesmo percurso. Isso só não aconteceu porque tinha boa cabeça, começou a gerir o negócio de maneira diferente e foi quem realmente desenvolveu a indústria da cortiça com grande sucesso. Chegou a ter, na sua curta vida que durou até aos 52 anos, 50 propriedades no Alentejo de cortiça e fábricas em Portugal e Espanha e uma em Perpignan em França.
Robert casou-se em Espanha?
O meu trisavô também tem uma história engraçada. Casou com uma senhora de Jerez de los Caballeros, na zona sul da Estremadura espanhola, filha de proprietários de grandes herdades. Quando o pai e as gentes do lugar perceberam que o inglês andava a namorar com esta rapariga, expulsaram-no. Mas a rapariga tinha um só irmão que era cónego da Catedral da Badajoz e o Robert decidiu falar com ele para lhe oferecer uma viagem a Roma para visitar o Santo Padre e solicitar uma bula papal para se poder casar. E assim foi. O cónego ficou como um cúmplice ideal para os dois.
Foram viver para Portugal?
Casaram e o Robert e a sua mulher instalaram-se, até à sua morte, em Estremoz. Ali viveram com os quatro filhos e duas filhas. Alguns nasceram lá, outros em Londres, mas viveram todos lá.
Um deles, o seu bisavô.
O primogénito também era Robert, o meu bisavô e o seu irmão, o segundo, John Reynolds, foram quem realmente iniciou a produção de vinhos tranquilos. Já tinham produzido vinhos do Porto, no Norte. Robert ficou com a marca Robert Reynolds Wine Growers, e o irmão John ficou a morar na Quinta do Carmo que era parte do património da Reynolds Estate, e começou a produzir um vinho chamado Quinta do Carmo. Morreu jovem e sem filhos. Estava casado com a senhora Isabel Bastos e, quando ela morreu, muito mais tarde, a quinta passou para a família Bastos.
Mas tinha mais propriedades.
John também tinha uma herdade, Mouchão, perto da Herdade Dom João, que era casa-mãe da Reynolds. O Mouchão ainda continua nas mãos da família através de Rafael, o irmão mais novo do meu bisavô. Realmente foram três marcas criadas pela família. A primeira, Dom João, a segunda, Quinta do Carmo, e a terceira, Mouchão.
Mas não era o vinho que os levava a comprar as propriedades…
A família comprava-as por causa da cortiça, só que em algumas delas havia outros produtos como as vinhas. O Robert começou a ter interesse em produzir o seu próprio vinho, nos anos 1880, que foi quando introduziu, pela primeira vez no Alentejo, a casta Alicante Bouschet.
A seguir, o seu avô Carlos, que seguiu caminhos diferentes.
O meu avô Carlos gostava muito de música e foi para a Alemanha onde estudou violino. Mas todos na família tiveram formação. Por exemplo, a minha mãe Gloria tinha uma tutora que a ensinou a falar português e francês, que era a língua da moda, porque o inglês era reconhecido como uma língua de negócios.
Ainda estamos a falar de Estremoz.
Os negócios de amor da Raia. Carlos casou com uma espanhola e sempre viveu em Estremoz e a minha mãe Glória esteve lá até aos 24 anos, quando casou com um espanhol. Foi morar em Badajoz com o meu pai, Juan Cuellar, um espanhol de Alburquerque e descendente de uma família portuguesa, condes de Alvito.
O que fazia o seu pai?
Era advogado, mas não exerceu. Tinha um relacionamento fantástico com amigos e tinha negócios em Portugal, de maneira que durante a minha infância até aos 17 anos, parte das minhas férias passava-as em Portugal, algumas delas na casa do meu pai na Figueira da Foz. Nasci em Badajoz, mas sempre com um pé em cada país. Sinto-me muito português cá e espanhol lá. O meu nome, que quase ninguém sabe, é Julián Cuellar Reynolds.
Onde cresceu?
Os meus pais moravam em Badajoz numa quinta grande. Eu nasci em 1949 e éramos 11 irmãos. Ainda estamos vivos dez. Estive num colégio de jesuítas em Espanha e depois, ainda jovem, em Inglaterra.
Foi novo para o colégio espanhol?
Fui para o Colegio San José de Villafranca de los Barros com nove anos. Tem uma história muito ligada a Portugal. Durante o pior período da guerra civil espanhola, o meu bisavô Robert Reynolds trouxe todos os padres e os alunos para a sua casa no largo de Estremoz, onde morava, para os proteger. Em Espanha, muitos alunos me falaram da sua experiência em Estremoz e no colégio há uma placa de mármore de Estremoz com um agradecimento a Robert Reynolds.
Edifício que continua preservado.
Hoje chama-se Palácio Reynolds, atual messe de oficiais do Regimento de Cavalaria. Felizmente o edifício foi mantido impecável pelo Exército. Tenho a honra de ser convidado pelo protocolo do Exército para alguns atos. Mantenho esse vínculo de afeto.
Mas acabou por sair do colégio.
Com 13 anos fui expulso. Só queria jogar futebol e pouco mais. Mais tarde tive um professor particular em Badajoz que conseguiu que me interessasse pelo estudo e entrei na Escola de Economia e Comércio. Não gostava nada, mas o meu pai dizia que era fundamental e, no final, ele teve razão.
Estudou economia, mas o rumo foi outro.
Já com o curso falei com o meu pai sobre o futuro porque ele tinha a ilusão de que eu iria exercer Direito. Mas quando era miúdo lembro-me dos tempos que passava com o meu tio José Maesso, diretor e produtor cinematográfico, casado com uma irmã da minha mãe.
Essa proximidade deixou marcas?
Ele chegava a Badajoz de férias com o seu Jaguar MK II. Enchia o carro de sobrinhos e dava voltas connosco. Era uma experiência fabulosa. Ficou-me gravado que, para ter um Jaguar daqueles, teria de ser produtor e diretor de filmes. Ele era dos mais importantes em Espanha e, entre outros, produziu o primeiro filme espanhol nomeado para os Óscares. E criou a primeira aldeia western em Almería.
A seguir foi para o Reino Unido.
Fui para Londres melhorar o inglês e depois para a escola de cinema e já saí como assistente da produção para a Columbia Pictures. Trabalhei seis anos com eles e essa foi realmente a verdadeira universidade. Os americanos ensinaram-me o método de trabalho.
Foi um bom período da sua vida?
Recordo-me como era tratado por eles, como apreciavam e valorizavam a eficácia e a pressão que punha no trabalho. Tive a sorte de aprender com grandes mestres, estar com as equipas, eu que adorava fotografia. Privar com eles nos almoços e jantares, estar imbuído nessa linguagem, foi fabuloso e apaixonante.
Teve boas experiências?
Todos me trataram bem, com respeito e deferência. Apenas um tinha uma postura absurda, déspota, que era o Charles Bronson.
Ganhava um bom salário?
Naquela altura saía-me o dinheiro pelas orelhas. E cheguei a comprar o Jaguar. Os salários, em comparação com Espanha, eram enormes.
Até o seu pai ficou surpreendido…
Falou-me de emprego e deu o exemplo do meu irmão que ganhava cerca de 20 mil pesetas por mês. Para tranquilizar o meu pai mostrei-lhe a caderneta com o dinheiro e acrescentei que as 20 mil pesetas por mês do meu irmão era o que eu ganhava por semana, isto é, quatro vezes mais. E poupava.
Chegou a fazer filmes seus?
Fiz algum cinema de autor, quatro, e até me convidaram para fazer uma apresentação dos meus trabalhos em Badajoz. Estamos a falar dos anos 70 naquela intelectualidade muito conectada com o artista austero. Fizeram-me uma pergunta sobre a minha vocação e respondi que queria comprar um Jaguar [risos].
A vida que imaginou?
Consegui esse sonho de ser diretor de filmes até que chegou uma altura, nos anos 80, quando percebi que a realidade era diferente. Ir para a América era muito complicado e para trabalhar em filmes espanhóis já era tarde. As produtoras espanholas estavam muito empobrecidas e ainda criei uma, mas não consegui e decidi deixar os filmes e saí em 82.
O início de uma nova fase?
Morava em Madrid e decidi, em 1983, regular a minha vida sentimental, amorosa, e ter a minha família. Comprei uma quintinha em Villar del Rey em 1984 e uma mina de ardósia. Descobri um mundo apaixonante que hoje tem uma enorme importância. A geologia, os minerais, a estrutura mineral e a formação do planeta, tudo me interessou muito. Comecei com pouco, mas acabou por ser a maior empresa mineira da estremadura espanhola.
Estamos a falar dos anos 80 quando casou.
Com a Isabel. Morámos em Madrid quando ainda estava no cinema. Ela dava aulas de literatura espanhola. Mas quando saí dos filmes, houve uma altura em que estava na quinta em Villar del Rey e a minha mulher em Madrid. Ao fim de semana, ou eu subia ou ela descia. Depois, quando passeávamos com o nosso bebé a poluição fez-nos perceber que não era o lugar certo e fomos para a quinta.
Têm todos nacionalidade espanhola?
Agora como moramos em Arronches já temos dupla nacionalidade.
E o Alentejo? E Arronches, onde hoje moram?
Estava em Villar del Rey quando comprei esta herdade em Arronches. Primeiro tentei comprar a herdade da minha mãe, Dom João, mas um professor da universidade de Évora recomendou-me que esquecesse o passado porque havia um lugar melhor e, para recuperar a marca e vinhos no Alentejo, sugeriu que eu procurasse uma herdade junto à serra de São Mamede. Vimos o lugar perfeito com altitude, 400 metros, drenagem, na zona do alto Alentejo com as noites mais frescas que é fundamental para uma longa maturação.
De repente foi para Portugal fazer vinho? Como é que isso aconteceu?
Nunca deixei de estar em contacto com Portugal. Quando era adolescente ia de mota, primeiro aquelas pequenas com 50 cc e, depois, uma maior, para Lisboa, para passar o fim de semana em casa dos meus primos. Era uma vida sempre ligada a Portugal e não me imaginava a viver noutro lugar. Sempre quis morar cá e estou feliz porque é muito melhor do que aquilo que eu pensava.
Porquê o Alentejo?
Primeiro é um lugar lindo, as vilas continuam a ser autênticas, impecáveis. As tradições ainda se mantêm. As pessoas são generosas e a gastronomia nem é preciso falar, os produtos são naturais, bons. E depois está muito perto de Lisboa. A uma hora e 45 minutos estou na minha praia favorita que é a Comporta, a mais bonita da Europa.
Como é o seu dia a dia?
Temos uma casa em Badajoz. Está perto e às vezes estamos lá, e fazemos umas compras. A vida de um raiano. As pessoas sempre viveram com um pé em Elvas e outro em Badajoz e vice-versa. Atualmente há muitos a morarem em Elvas e a trabalhar em Badajoz e muitos portugueses que moram lá. Essa vida continua: amigos de ambos os lados, famílias também, vida profissional.
Hoje está mais na gestão?
Além das empresas ligadas às novas formas de energia que mantenho em Espanha, faço a gestão aqui na quinta. É um ofício, temos de estar atentos. Quase todos os dias da minha vida agradeço ao meu pai por ter insistido para eu saber ler um balancete. Essa formação em Economia é muito útil e temos de saber vender. Um empresário que não vende, não é empresário. E se não sabe vender o seu produto não pode pretender que alguém o venda. Sentirmo-nos úteis é quase mais importante do que o dinheiro. Quando a partir de certa altura temos o bem-estar garantido queremos dar mais sentido à vida.
Corre bem o negócio do vinho?
O negócio do vinho corre bem, mas é difícil e tornou-se mais ainda agora, depois desta loucura dos preços. De um dia para o outro pagamos três vezes mais pelos produtos que precisamos para os nossos vinhos. São crises que hão de passar. O importante é manter a qualidade para nunca dececionar aos clientes que gostam do nosso trabalho.
Onde vendem e quanto?
Vendemos em Portugal e exportamos para 20 países. Somos pequenos, temos cerca de 250 mil garrafas, mas que podem ser 150 mil. A mãe natureza é que manda.
E o futuro próximo?
Tenho sempre ideias, mas o mais divertido de tudo é aprender. Desenvolvi a produção dos vinhos em várias áreas. A primeira de todas foi a enologia e saber que os vinhos podem ser feitos de muitas maneiras. Procurei uma forma de identificação própria. Não posso dizer que este vinho é melhor do que os outros porque os palatos são diferentes, mas posso afirmar que produzo um vinho único, com personalidade. Foi difícil entenderem o que se estava aqui a fazer, mas agora tenho sempre mais procura do que produto.
Em que fase estão agora?
Na análise microbiótica dos solos. Sabemos que é o próximo passo. O comportamento dos micróbios no solo, seja no vinho ou no que for, está-se a começar a saber e trago especialistas para o analisar. É apaixonante. Nunca se acaba. A diversão está garantida.
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