Um dia na vida de

Manuel Magalhães e Silva: "Na advocacia, a única verdadeira urgência é a do arguido detido e que vai ser presente ao juiz."

Há muito que o advogado português conjuga a intervenção pública com o lado profissional, normalmente nos grandes processos judiciais. Hoje alinha o trabalho com a sua paixão pela cozinha.

Foto: Bruno Colaço @ Medialivre
Ontem às 11:16 | Augusto Freitas de Sousa

Os tribunais, o correio eletrónico, os pareceres, as peças processuais, análise de decisões e ainda o comentário nas televisões, não impedem o advogado de se sentar no relvado à frente da Torre de Belém apenas para contemplar. Quem o conhece sabe que a gastronomia é o seu "outro lado". Quem o conhece bem pode ter a sorte de provar os seus pratos.

A que horas se costuma levantar?

Crescer não faz, mas saúde, é capaz. Refiro-me ao "deitar cedo e cedo erguer". Normalmente, levanto-me pelas oito, salvo se tiver julgamentos fora de Lisboa. Aí, tenho de ter em conta o tempo de viagem e a hora a que começam. E isso pode acontecer às seis, seis e meia da manhã. Se, todavia, estiver a 200 ou mais quilómetros de Lisboa, então vou de véspera e a rotina das oito mantém-se.

O que costuma refletir/ponderar/pensar nos primeiros minutos acordado?

Penso pouco. Preciso de pelo menos meia hora para "ressuscitar". Por isso levanto-me às oito para uma rotina de trabalho que só começa pelas dez.

Qual é a sua rotina quando se levanta?

Há uma distribuição de tarefas entre mim e a minha mulher. Ela vai ao pão, eu preparo o pequeno-almoço e ponho a mesa. Logo, o meu dia começa pelas tarefas domésticas. Salvo quando tenho de sair para julgamento fora e, então, começo pela higiene matinal e só depois passo para as tarefas domésticas.

Manuel Magalhães e Silva
Manuel Magalhães e Silva Foto: Pedro Brutt Pacheco @ Medialivre

Que tipo de pequeno-almoço costuma tomar?

Chá, morangos e pão de mistura com fiambre de peru em forno de lenha. Salvo de sexta a domingo. Aí, exclamo quinta-feira à noite: amanhã, há manteiga! Como se fosse queijo, claro, que pão com manteiga, brrrr!, manteiga com pão, é a ambrósia dos pequenos-almoços.

Costuma haver algum tipo de atividade antes do trabalho?

Gostava, mas nunca persisto. Falo, naturalmente de ginástica ou marcha, e a idade ensinou-me que, às vezes, não há mais tarde…

 Manuel Magalhães e Silva
Manuel Magalhães e Silva Foto: DR

Qual é o seu trajeto diário? Como o faz? A pé, automóvel, transportes…

De automóvel. Moro a cinco quilómetros do escritório, tenho uma estação de metro a novecentos e poucos metros e uma outra a cem metros do escritório. Eppure, com a desculpa de que, frequentemente, tenho de ir a outros sítios, lá me "sacrifico" e vou de automóvel.

Tem algum tipo de preparação prévia para o trabalho?

Ordenar tarefas, porque continuo a pensar que, improvisar a organização do trabalho diário, só quando não há alternativa.

A que horas começa a trabalhar?

Começo às dez e em casa. É que, saindo pelas nove e meia, estou quarenta e muitos minutos no inferno do pára/arranca. O teletrabalho também chegou a muitas profissões liberais.

Manuel Magalhães e Silva
Manuel Magalhães e Silva Foto: Pedro Catarino @ Medialivre

Quais são as suas principais tarefas e responsabilidades no trabalho?

Idade é posto, e a sua consequente responsabilidade. Por isso, além dos processos de apreciável complexidade, o meu dia reparte-se em tribunais, correio eletrónico, pareceres, peças processuais, análise de decisões e disponibilidade para colegas mais novos e para estagiários. Partilhar conhecimentos, ajudar as angústias a degradar-se em acrescentos de empenho, repartir tarefas para uma peça processual e nunca deixar para outros o que é menos importante. Conta-se, de um grande advogado dos anos 60, Eridano de Abreu, que ao entrar para julgamento no Palácio da Justiça, foi interpelado, respeitosamente, por um colega mais novo. "Mas o colega ainda faz sumaríssimas?" 'Olhe, meu caro', respondeu, 'um advogado que é mesmo advogado, faz tudo'. Para aprendermos!

Como gere o seu tempo?

Concentrando na manhã e na tarde, até às seis, seis e meia, o que exija mais esforço e criatividade. Tenho feito isso toda a vida. Foi a lição que aprendi, pelos 18 anos, num livro sobre a vida intelectual, de um dominicano, professor de Lovaina, A-D Sertillanges, que ensinava que, no trabalho intelectual, como é o da advocacia, o primeiro passo é saber se a natureza nos fez mocho, e concentrar o trabalho a partir da tarde; ou cotovia, e fazê-lo a partir de manhã. Eu sou cotovia, claro.

Manuel Magalhães e Silva
Manuel Magalhães e Silva Foto: DR

Como lida com a pressão e o stress?

Não lido, suporto. E para tornar suportável uma e outro, preparo o que tenho para fazer, salvo as peças processuais, que só estarão acabadas à boca do prazo. E assim se cria a síndrome do prazo: o sono interrompido a caminho do computador. "Será que contei bem o prazo?"

Qual é a parte favorita e menos agradável do trabalho e porquê?

Parte favorita: as alegações, quer escritas, quer orais. As escritas, porque dizer muito, com preocupação de síntese – e já não estou em idade de mudar –, cai no dito do Pe. António Vieira: "Saiba Vossa Majestade que não vai esta mais curta porque me minguou o tempo…".  E é um prazer conseguir a síntese. As orais, porque nada ultrapassa o prazer da improvisação com…notas, claro! Parte menos agradável: quando os clientes não estão disponíveis para olhar para o seu caso como ele é, mas em permanente negação. Felizmente, é raro.

Tem uma equipa a trabalhar consigo? Como gere a comunicação com eles?

Faço equipas, conforme os casos e o compromisso que exigem em trabalho e criatividade; e a comunicação faz-se, quer presencialmente, quer individualmente, quer em coletivo. E tanto por telefone, como por e-mail. E, neste tempo, vídeo e conference call. Nada de original, portanto.

Costuma fazer pausas no trabalho? Para?

De manhã não. E mesmo quando estava toda a manhã no escritório, nunca atendia chamadas. Quando chegava ao meio-dia e meia hora, pedia à secretária ligação para as pessoas que tinham telefonado. Ninguém ficava sem contacto em curto espaço de tempo. Continuo a pensar que, na advocacia, a única verdadeira urgência é a do arguido detido e que vai ser presente ao juiz. É que interromper o trabalho, atender o telefonema e retomar o trabalho, traz, em progressão geométrica, perda de concentração e continuidade do que se está a fazer. Por isso, costumo dizer aos estagiários que só estão preparados para ser advogados, se continuarem a trabalhar, enquanto o telefone toca, sem ansiedades para o atender. Paro, obviamente, para almoçar. Há anos que não lancho. E depois janto.

Manuel Magalhães e Silva
Manuel Magalhães e Silva Foto: DR

Interrompe o trabalho para almoçar? O que costuma comer e onde?

De segunda a sexta, o almoço, tanto em casa, como em restaurante perto do escritório, é feito de cozidos ou grelhados e salada ou legumes cozidos. A "desbunda" gastronómica fica para o fim de semana. E para isso, dieta nos dias úteis, que, depois dos 50, exige-se o maior cuidado com o perímetro abdominal…

Como lida com eventuais críticas e elogios ao seu trabalho?

Por via de regra, bem. E quando alguém não percebe bem um texto ou uma frase, mudo sempre, até que se torne inteligível para o crítico. Se ele não percebe, quantos mais não perceberão?

O que diria sobre a ideia de que as pessoas com quem se relaciona profissionalmente têm de si?

Se é o que pensam do meu trabalho, tenho tido sucesso e, portanto, pensarão bem. Como pessoa, terão cada um a sua, embora seja difícil confiar em pessoa com quem se antipatiza. Mas sinto à minha volta um ambiente acolhedor, o que me leva a pensar que a maioria tem de mim uma opinião favorável. Será vaidade minha?

Manuel Magalhães e Silva
Manuel Magalhães e Silva Foto: DR

Ao longo do dia dá importância às redes sociais?

Muito pouco. E faço mal. É que as redes sociais são uma fatia importante das sociedades em que vivemos; e ignorá-las, empobrece-nos. Manifestar apenas indignação relativamente a tanto lixo que circula pela net é uma forma de o lixo se poder tornar pandemia.

Tem hobbies ou atividades que faz regularmente?

O meu hobby é cozinhar ao fim de semana. Até 2005, não sabia fazer um ovo estrelado, quando os meus irmãos homens, cinco, cozinhavam – quatro já partiram – magnificamente. No regresso, em 2005, da viagem à China de Jorge Sampaio – um voo de dezasseis horas, com uma paragem no Dubai –, Maria José Rita sugeriu, para algum mínimo de diversão, que numa semana próxima se fizesse um mini curso de rudimentos da cozinha, com Sampaio e onze amigos. Fez-se uma lista, escolheu-se Vítor Sobral como chefe-mestre, e fizeram-se duas sessões de fim de tarde. Ninguém mais ligou coisa nenhuma, mas eu nunca mais deixei de fazer cursos e fazer da cozinha um hobby. Os meus amigos jogam golfe, eu cozinho! E experienciei, uma vez mais, "não digas desta água não beberei". Antes da paixão gastronómica, era capaz de dizer "fazer 30 quilómetros para comer uma arrozada? Só por cima do meu cadáver". Nos últimos anos, já fiz muitos milhares de quilómetros…

Manuel Magalhães e Silva com o chef Joachim Koerper.
Manuel Magalhães e Silva com o chef Joachim Koerper. Foto: DR

A que horas costuma terminar a atividade profissional?

Pelas seis e meia, que a noite, salvo raras exceções, é "minha". Ponto.

"Leva" trabalho para casa?

Às vezes tem de ser. Mas com raiva, tipo birra, como menino a quem roubam o brinquedo.

Costuma conversar com alguém sobre a sua atividade no final do dia?

Claro. É um ritual com a minha mulher: então como correu o dia? Mas, obviamente, com salvaguarda do sigilo profissional.

Costuma viajar com frequência nas suas atividades profissionais?

Em Portugal, sim. Grande parte da minha advocacia é penal; e diligências judiciais há de Bragança a Vila Real de Sto. António. Para o estrangeiro, raramente, salvo quando há questões que só serão adequadamente dilucidadas ou partilhadas presencialmente.

Há muita diferença entre os dias da semana e os fins de semana?

Claro. O fim de semana é o recreio. E por mais que se goste de estudar, não é a minha "praia" prescindir da enorme liberdade de, apetecendo-me, não fazer nada. Sentar-me no relvado à frente da Torre de Belém e perguntarem-me: que estás aqui a fazer? Nada, estou a olhar.

Quais são os seus hábitos de jantar? Horário e exemplo de menu?

De segunda a quinta, pelas oito, carne ou peixe grelhado, espargos verdes ou brócolos, um copo de vinho, café, e…um bombom com praliné. Ao fim de semana, pelas oito e meia, nove, é fartar – aperitivos, entrada, prato, sobremesa e vinhos adequados para cada prato. Que eu cozinho, claro.

Manuel Magalhães e Silva
Manuel Magalhães e Silva Foto: DR

O que faz antes de dormir?

Vejo um filme ou o episódio de uma série. Há também leituras a pôr em dia.

A que horas se costuma deitar e quantas horas dedica ao sono?

Não durmo muito, sem, todavia, ser um shortsleeper. Deito-me, em regra, pela uma, uma e meia, e durmo até às oito.

Como mantém o equilíbrio entre sua vida pessoal e profissional?

Separando o fim do dia da noite, a semana do fim de semana; e reservando a semana da Páscoa e, no verão, um mês, para a vida pessoal.

Vê-se a ter outra profissão?

Quando entrei para a Faculdade de Direito, o meu objetivo era ser diplomata. Acabei por me deixar convencer pelo meu pai, que dizia: a vida diplomática é uma pobreza dourada. Continuo a ser capaz de me imaginar na "carreira", como os diplomatas gostam de dizer, mas não estou nada arrependido de ter optado por ser advogado.

O que mais gosta e menos gosta na sua profissão?

O que mais gosto? Refletir sobre a lei e procurar estendê-la até que caiba nela o caso que estou a tratar. O que menos gosto? Aturar – tem de ser – algumas das "gentes da Justiça".

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