Manuel Pureza, realizador d'Os Infanticidas: “A grande tragédia disto tudo é isto ser uma grande comédia”
Estreia-se, dia 13 de março, nas salas de cinema, o mais recente filme do realizador. Será um alien? Será um caleidoscópio? "Os Infanticidas" estica as fronteiras da estrutura narrativa, faz dos não-espaços o lugar onde a vida acontece, “traça tangentes à infância”. É uma espécie de coming of age movie, mas também não é bem isso, porque é ainda mais. Distorcendo as sábias palavras de James Carville, “é o existencialismo, estúpido!”

Há três salas de cinema na iminência de serem invadidas por um objeto alienígena. A aterragem deste OVNI nos cinemas Alvaláxia, em Lisboa, Alma, em Coimbra, e Alameda, no Porto, está agendada para quinta-feira, dia 13 de março de 2025. A data ficará na história do cinema português como aquela em que Os Infanticidas, filme com assinatura do realizador Manuel Pureza (Pôr do Sol, Linhas de Sangue, Desliga a Televisão, Até Que a Vida Nos Separe), se estreia diante do público português.
Pedimos ajuda ao realizador multifacetado para tentarmos compreender melhor o que é que acontece na tela, e ainda aproveitámos para conversar um bocadinho sobre a vida, sobre crescer e envelhecer, e ainda acerca do futuro - mais precisamente, o futuro do trabalho de Pureza.

Como é que surgiu a ideia para este filme?
Então, em 2018, o (Luís) Lobão, o João (Vicente), a Anna (Leppänen) e a Joana (Campelo) levaram isto a cena no Teatro da Comuna. Ou seja, foi uma adaptação muito livre daquele texto e daquelas ideias que eles já tinham tido em grupo. Eu fui ver e adorei o espetáculo. Achei aquilo fresco, inesperado, sobre um tema que a mim me diz muito, que é a questão da amizade e de preservar as amizades, e de cresceres, e de comprometeres-te, e de isso às vezes significar perderes amigos. E de ganhares consciência de que as coisas nunca mais vão ser como eram quando éramos adolescentes. Eu vi o espetáculo e, imediatamente quando saí, virei-me para o (Luís) Lobão, que eu conhecia mal na altura - mas já gostava muito do que ele escrevia, do que ele fazia; além de ser um ator brilhante, é um gajo que escreve muito bem - e propus à equipa, aos quatro, que fizéssemos uma adaptação para filme.
E esse trabalho de adaptação foi feito por todos vocês, em conjunto?
Sim, sim. Não há muita mudança. Eu digo que este filme é um caleidoscópio e um alien ao mesmo tempo, porque é um alien que aterrou ali e tu não sabes bem o que aquilo é. E é um caleidoscópio porque é uma espécie de "Aforismos gerais sobre a amizade". Em boa verdade, o exercício era: será que se consegue fazer um filme que é, no seu lado bom, refém da palavra? As imagens ou entram em concurso é uma absoluta dissonância com aquilo que está a ser dito. Eu acho que as regras da narrativa só se aplicam à palavra, não propriamente à imagem ou à montagem, por exemplo, porque os gajos às vezes estão em não-espaços. Depois, de repente, estão num espaço que não tem nada a ver com o outro. De repente, é um ambiente claramente televisivo, do concurso, por exemplo.

Um estética que podia ser de videoclipe, uma estrutura narrativa de teatro contemporâneo: há alguma referência que tenhas seguido, uma espécie de farol que te tenha guiado e alumiado o caminho?
O filme é feito na pandemia. É terminado agora porque andou à procura dessa forma dentro da mescla de imagens. Diria que o filme vai muito ao encontro de uma ideia de liberdade que, se calhar, encontra ecos nas primeiras coisas que o [David] Lynch faz nas curtas. De repente, eu posso falar de tangências à ideia de amizade. Acho que é isso que me suscita no filme. Na peça, foi isso que me suscitou, parece que estou a tocar esta ideia quase platónica. A ideia de amizade é uma bola que eu vou tocando à tangência com esta peça, com este texto, com estas personagens, e o filme é esse exercício de liberdade. Talvez por imaturidade criativa da minha parte, a coisa mais próxima nos últimos tempos em filme seria um bocadinho os filmes do [Michel] Gondry - mas menos refém das regras narrativas e das estruturas narrativas. O Gondry, de repente, faz que seja possível eu agora acordar e estar nas nuvens. Ou, numa lógica de liberdade, mais uma vez, estrutural, ires ao The French Dispatch do Wes Anderson. Mas, formalmente, não estou a dizer esteticamente, porque aí eu acho que ainda me falta muita coisa e muitos meios. Se houver alguma ideia de influência, é essa ideia mais abstrata, que não é propriamente um realizador ou uma corrente de cinematografia, é mais um pensamento de "e se o cinema fosse mais livre destas merdas todas, dos espartilhos todos?" Desde o início, a ideia é mergulhar no mundo das ideias, da filosofia das ideias, sobre compromisso, crescer, tristeza, depressão adolescente. Eu acho que o filme tem uma toada meio adolescente, que é propositada, tem de ter o ritmo e o aspeto inesperado de uma cabeça de 16 anos a pensar, "ah, agora apetece-me fumar, agora apetece-me estragar-me todo, agora apetece-me…" Às vezes, armados um bocado ao pingarelho, a jogar às damas, "eu já jogo às damas."

Falemos da ambição do filme, digamos assim. Isto não é bem um coming-of age clássico. A gente passa para que idade aqui, ao certo? Passas para o resto da tua vida? A que geração de público é que tu achas que vais mais emocionalmente tocar?
Eu olho para o filme e há duas coisas. Uma é pensar "não penses mais nisso, anda para a frente", quando um gajo pensa na morte. Mas depois um gajo tem filhos, não é? No meu caso, tenho três filhos. E de cada vez que nasce um filho - e eu já tenho o epíteto de povoador dos Olivais, atenção -, ganha-se um relógio, é aquele dito antigo, e acho que é verdade, que é aquela coisa de "isto passa tudo muito rápido". E há uma tristeza latente. Quem me dera acordar outra vez numa tenda, em 1996, com os meus amigos, porque fomos dormir para a praia e podíamos fazer isso, e éramos livres, e estávamos a curtir, e o que importava era só o minuto seguinte, não era as contas ao final do mês. Eu acho que pode tocar a pessoas de gerações diferentes, de maneira diferente. Acho que, evidentemente, não chega às camadas mais novas, novinhas.

Durante o filme, no meio de algum aparato e das passagens mais cómicas, há umas frases muito sérias, com um grande peso existencialista. Mas há também um aspeto desconcertante: as personagens usam frequentemente lugares-comuns nos seus diálogos. Isso é alguma espécie de metáfora, uma maneira de explicares que tu, ao cresceres e ao envelheceres, começas a dizer aquilo que os outros já disseram?
A discussão final - "mas qual vida adulta? Esta vida adulta de merda que tu tens com a tua mulherzinha na casa de bonecas, duas crianças sozinhas, perdidas, a brincar aos adultos?" - é exatamente por causa disso. Ou seja, a malta diz uns chavões, não é? Pois, porque encaixa na lógica da idade. É o que se espera de cada uma destas pessoas. Pelo menos foi assim que eu li o texto.
Mas também te ajuda a compreender aquilo que te está a acontecer, será também uma bengala?
É um bocado isso. Vamos tentar suar o filme para que ele fique só na essência. Isto podia ser um bromance, não é? Dois amigos que se amam profundamente enquanto amigos. Depois vão-se separando. Um casa-se, o outro nunca se vai conseguir casar porque nunca acerta na mulher ideal. Então, é um solitário inveterável. E o outro comprometeu-se e cresceu, e tem de ser adulto, e agora tem de responder de determinada maneira, etc. Portanto, no limite, isto é uma história de amor que acaba numa separação composta de regras que a sociedade impõe às pessoas. Não podem ser os amigos adolescentes que foram, até ao fim da vida. Amigos para sempre são amigos que se vão mudando. Podem encontrar-se muitas vezes, mas os problemas de fora sufocam os problemas dos 16 anos. Temos aqui dois putos a tentar acertar nas regras para perceberem o que é isto de crescer. Acho que estás certo. Esses chavões, esses lugares-comuns são tentativas desesperadas de acertar naquilo que se espera de nós.
Mas crescer também pode ser bom. Não? Imagina o teu caso. Falemos do teu crescimento e o teu envelhecimento. Agora, por exemplo, fazes aquilo de que gostas. Certo?
Claro, muito. Sim, claro. E só o facto de, por exemplo, ser pai, quando aconteceu a primeira vez há 13 anos… isso é uma maneira de me manter novo.

É uma maneira de te manter novo? Como?
É, eu acho que sim. Se a história [de Os Infanticidas] progredisse, e o João Vicente tivesse uma criança, ele seria capaz de voltar a brincar. Eu tive de aprender a brincar já por três vezes e é incrível. Quando fiz 40 anos (fiz agora 41), não me bateu. Passei por cima, não me bateu, 40 anos está fixe. E porquê? Pá, tenho uma filha com dois anos e tenho outra que vai fazer um ano agora, no próximo mês. E não dá para ficares a pensar muito. Tens de brincar, tens de inventar, tens de fazer e, de repente, o tempo passa. Os meus 40 anos foi o ano mais rápido da minha vida. E, ao mesmo tempo, foi aquele em que eu tive de voltar a fazer um castelo em casa e fazer não sei o quê. Se mantiveres isso, tens 40 anos, mas podias ter 20.

Já te divertiste a fazer muita coisa, cinema, telenovelas, séries televisivas. O que é que te dá mais gozo fazer?
Eu descobri que sou realizador de séries e adoro ser realizador de séries. Continuo a ter aquele sonho adolescente de ser realizador de cinema, um dia conseguir ter um filme que me explane a mim próprio por essas telas - o filme que eu gostava de ter feito e nunca fiz, nunca vou fazer, é um filme do Fellini chamado Os Inúteis, que é sobre os amigos dele de Rimini, e eu gostava de um dia fazer um filme sobre o meu grupo de amigos de Coimbra. Mas descobri em 2020 que sou um realizador de séries e que sou muito feliz a ser um realizador de séries, que essa coisa fascicular me encanta, que esse desafio me apaixona, que é difícil, e que, muito embora eu possa ter os olhos lá à frente em fazer um filme, marcante para mim em primeiro lugar, e eventualmente para o público, vou-me deixando surpreender. Eu gosto muito daquilo que faço nas séries. Os géneros não são propriamente as minhas gavetas. Gosto muito de fazer comédia, evidentemente, mas eu não me esgoto na comédia, tanto mais que quando fiz agora a série sobre o 25 de Abril, o Sempre, era um objetivo mais ou menos antigo, dos meus primórdios, falar sobre o 25 de Abril da maneira apaixonada, como eu sempre ouvi falar em casa.
Há uma coisa que é inevitável nas minhas histórias, é que elas tenham alguma ironia e algum sarcasmo e algum humor latente. Isso é impossível não haver. Eu acho que a grande tragédia disto tudo, é isto de ser uma grande comédia, não é? Não faz sentido nenhum, isto dura muito pouco, a malta tem umas ideias e depois morre. A ironia da existência e talvez o lado mais existencialista, não deste filme, mas da minha carreira enquanto realizador está esplanado em algumas graças, em algumas ironias da vida. A piada desta gaita toda é essa. Fiz uma purga pessoal às novelas que fazia há 10 anos com O Pôr do Sol. Fiz essa purga e adorei fazê-la. Agora, vou fazer uma purga à Rua Sésamo. PE é outra purga completamente diferente e estou excitadíssimo. Eu gosto muito de fazer o que faço, gosto muito de trabalhar com atores, gosto muito de ter ideias para histórias, gosto sobretudo de não me acomodar àquilo que funciona. Isso é muito importante.

Voltando a Os Infanticidas, como é que tu o enquadras na tua obra? Olhando agora para o filme, como é que o descreverias?
Ele é o tal alien. É um alien, que aterrou ali no jardim e que está um bocado à procura de perceber qual é o seu espaço. Não me estou sequer a comparar, mas o génio do Eraserhead, o génio do Blue Velvet, do Dune, do Lost Highway [filmes de David Lynch] tem um primo que é um alien. É o meu Straight Story. Tal como acontece com o Straight Story, do Lynch, eu tenho a certeza absoluta que este meu filme não será o meu favorito, nem de ninguém em relação às coisas que normalmente estão habituados a ver feitas por mim. Mas tem essa lógica boa, tal como no Straight Story, em que o Lynch só quis fazer aquilo, uma road trip com um velhote num cortador de relva. Portanto, onde é que eu colocaria o filme? Colocá-lo-ia num lugar de liberdade. É um filme livre.

O filme estreia-se dia 13 de março. Vai estar em muitas salas?
Pois. Para os atos de liberdade há pouca liberdade. Pouca liberdade de distribuição, neste caso. Vai estar só em três salas.
A liberdade tem um preço, não é?
Claro que sim. Vamos estar no Alvaláxia, em Lisboa, no Alma, em Coimbra, e no Alameda, no Porto.

Para terminar, podes revelar um bocadinho mais sobre esse teu novo projeto? Essa purga da Rua Sésamo?
É um novo projeto da equipa do Pôr do Sol. Já foi apresentado no Séries em Série deste ano, na RTP. Terá estreia em agosto, numa lógica diária, como foi o Pôr do Sol. E a rodagem inicia-se dia 7 de abril e vai até dia 13 de junho. Não quero estar a pôr expectativas muito altas, mas acho que está uns furos acima do Pôr do Sol. Mas vários furos acima, mesmo. A escrita do Henrique [Dias] continua absolutamente genial, ao ponto de falar das coisas que as pessoas falam, não é? Pronto. E são bonecos. Portanto, não têm filtro. Um boneco que pode tudo. Pode tudo. E diz tudo. É incrível. Incrível. Incrível.
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