Sult: fome dinamarquesa do Botafogo para Cascais
A filosofia deste restaurante italiano é simples: usar produtos locais aplicando técnicas de confeção italianas, sem ultrapassar a marca dos cinco ingredientes. Os arancini de alheira de Mirandela com creme de queijo de Azeitão, uma das entradas, são um bom exemplo do que vai encontrar aqui.
O convite que aqui nos trouxe era, no mínimo, inusitado. Qualquer coisa como "venham conhecer o Sult, restaurante em Cascais, com um nome dinamarquês que quer dizer ‘fome’, serve comida italiana com um toque de portugalidade, e tem um chef brasileiro". Importa-se de repetir? Ou, melhor ainda, aponte o caminho que nós vamos lá ver com os nossos olhos e provar com as nossas papilas. E foi o que fizemos. O Sult abriu há pouco mais de um mês, no centro de Cascais, a dois passos da baía, e tem um restaurante irmão, com o mesmo nome, em Botafogo, no Rio de Janeiro. O chef Nelson Soares anda cá e lá – e por todo o lado onde o leva uma cabeça cheia de ideias e projectos e umas mangas que anseiam por ser arregaçadas –, por isso, em Cascais conta com o chef executivo Breno Naar para "segurar as pontas", algo que faz com esmero e elegância. A filosofia é simples: usar produtos locais aplicando técnicas de confecção italianas e, sempre que possível, nunca ultrapassar a marca dos cinco ingredientes, "para um sabor mais autêntico e uma experiência mais verdadeira".
Nelson Soares tem, ele próprio, uma história de vida inusitada, pelo que foi um prazer conversar com ele. Durante 25 anos, teve uma empresa biotecnológica que desenvolvia um componente essencial para fazer análises laboratoriais e que tem por base sangue de carneiro. Chegou a ter um rebanho de 1700 cabeças. Resultado? A culinária, que era algo que sempre causou curiosidade, passou a ser uma necessidade: "Aprendi a confeccionar carneiro de 1001 maneiras." Aos poucos, a cozinha foi tomando cada vez mais espaço na vida deste chef até que fez desaparecer a biotecnologia por completo.
Este carioca de 52 anos é aquele tipo de pessoa boa onda, que não se deixa abater pelas adversidades – e ele já teve daquelas que deitam um cavalo de guerra ao chão – e que, apesar dos momentos difíceis, parece aterrar sempre de pé, como um gato. E parece que todas as portas se abrem no segundo em que pensa "quero ir por ali". Sorte? O chef garante que não. É uma mistura de pensamento positivo com pés no chão e de não se deixar abater pelos imponderáveis. "Tenho uma postura de ‘pé na porta’, se quero fazer, faço, não fico só pelos planos. E depois, se você tiver foco, o universo ajuda." Em jeito de conclusão, atira: "É o negativismo que atrai a merda."
É uma delícia ouvi-lo falar enquanto vamos provando o menu que seleccionou para nós, acompanhado pelos vinhos escolhidos por Julieta Carrizzo, a formidável sommelier. Tão ou mais formidável quanto a garrafeira,cheia repleta de vinhos raros, todos naturais e de pequenos produtores, que não se encontram nas lojas.
O jantar começou com ostras do Sado, servidas com um molho japonês, mas que foram "amalfitadas" – que é como quem diz, trazidas para o lado italiano da força – com um gominho de laranja do Algarve. De seguida, vieram os arancini de alheira de Mirandela – uma piscadela de olho à gastronomia portuguesa – com creme de queijo de Azeitão – outra piscadela. E depois um tártaro de peixe lírio. Nem as ostras nem o tártaro estão na carta. São oferecidos aos clientes apenas se os houver fresquíssimos, acabados de apanhar. Vem mais uma entrada, a mais requisitada do Sult Botafogo: cogumelos grelhados com fondata de pecorino romano. Os cogumelos utilizados variam em função da oferta do momento. Infelizes porque fundo do prato ainda estava cheio de fondata de pecorino que não tínhamos como comer, o chef depressa resolveu o problema com fatias de focaccia, para molhar no molho, à boa e velha portuguesa.
Como não há italiano sem uma boa pasta, foi isso a que tivemos direito logo de seguida. A jornalista da Must, que não come carne, provou o tortellini de espargos e mascarpone com molho de pecorino, gemas e trufas – que estava delicioso –, enquanto as outras pessoas provaram o pappardelle ao ragu de porco preto. Ter-se-ia feito silêncio durante uns bons minutos, não fosse o chef continuar a maravilhar-nos com as suas histórias.
Quando Breno, o chef executivo, aparece para perguntar se ainda temos estômago para mais, somos forçadas a dizer que não cabe nem mais uma lasca de trufa. Mas a verdade é que ainda coube. Afinal, faltavam as sobremesas. Experimentámos duas: o tiramisù al pistacchio (como não?) e a torta al limone e basilico – conjugação de palavras que esta jornalista não conseguiu escrever sem salivar. Para quem gosta de doces que têm o limão como ingrediente principal, esta sobremesa é um sonho.
Cada um destes pratos foi acompanhado por um vinho diferente, para que tivéssemos oportunidade de conhecer a garrafeira. Todos muito bem escolhidos por Julieta. Dois ficaram na memória: La Niverdière Renaissance, Chinon, de 2015, um tinto do vale do Loire, e o Rico, outro tinto, mas do Douro, de 2020, produzido por um enólogo italiano chamado Enrico.
"A decoração deste Sult é parecida com a do Botafogo?", alguém pergunta. O chef diz que não e mostra fotos no telemóvel para comprovar. O outro é mais clean, mais industrial, com uma cozinha totalmente aberta para a sala. Este é mais acolhedor, mais clássico, com tectos trabalhados, tijoleira antiga e molduras douradas e prateadas com fotos de Itália. Mas há um tom de verde que une os dois espaços e um certo verde-azul-e-amarelo na decoração que remete, sem dúvida, para o Brasil. O chef gostava de ter aqui também uma cozinha aberta, mas a parede-mestra não permitiu. A proximidade fez-se possível criando uma estação de finalização, uma grande mesa triangular, com lugar para cinco pessoas, onde o chef organiza menus de degustação. E porque Cascais, apesar das noites quase sempre frescas e ventosas, é uma zona costeira, o Sult não podia passar sem uma esplanada.
Mas, afinal, como é que Nelson Soares larga o seu Sult Botafogo e vem parar a Portugal? "Meu sócio investidor veio viver p’ra Portugal e começou insistindo comigo que a gente tinha que abrir um Sult aqui, que Cascais era maravilhoso. Cascais?! Achei que o cara ‘tava doido. Eu queria abrir um Sult em São Paulo!" Mas, aí, o chef, que nunca tinha vindo a Portugal, veio, e o resto é história. Uma de muitas.
Onde: Rua das Flores, 10A; 2750-642 Cascais Horário: Para já, só serve jantares, de terça a domingo, entre as 19h e a 23h, mas vai começar a servir almoços brevemente Reservas: 910 549 593, reservas@sultcascais.pt
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