Vista Alegre, 200 anos. Segredos e curiosidades de uma marca portuguesa no mundo
Criada por José Ferreira Pinto Basto em 1824, num mundo em tudo tão diverso do nosso, a Vista Alegre está viva e de boa saúde. As comemorações do bicentenário iniciaram-se com o lançamento do prato de calendário "Duck Time", assinado pela dupla italiana ALE+ALE.
É com os olhos postos no futuro que a Vista Alegre, uma das marcas portuguesas mais reconhecidas e bem sucedidas no mundo (75% da produção destina-se ao mercado de exportação), acaba de abrir o programa comemorativo do seu bicentenário. Para expressar este ímpeto, o logótipo criado para a efeméride apresenta os dois zeros entrelaçados para compor o símbolo matemático do infinito, sublinhando assim, como declarou Nuno Barra, administrador da empresa, que "estes 200 anos não são o ponto de chegada, mas a transição de uma época para outra, até ao infinito".
A primeira novidade destas celebrações toma a forma do habitual "prato calendário", lançado pela empresa ano após ano, em janeiro. Mas, em 2024, o tema tinha de ser este feito raro e notável de uma empresa chegar aos 200 anos de vida, em ininterrupta laboração. A dupla de artistas italianos ALE+ALE (Alessandri Lecis e Alessandra Panzeri), convidada para imaginar a peça, criou o prato Duck Time, em que se combinam, para além do calendário de 2024, motivos como o pato, simultaneamente símbolo da viagem e motivo de inspiração de alguns dos primeiros desenhadores contratados pela Vista Alegre, mas também a figura do fundador, José Ferreira Pinto Basto, uma bola de futebol, navios mercantes oitocentistas e os camelos que, em tempos há muitos idos, transportavam a cerâmica da China para a Europa, ao longo da mítica rota da seda. Mas o que sabemos nós sobre a História desta empresa bissecular que vai à mesa de monarcas e Presidentes da República de todo o mundo?
Quem foi o fundador
Portugal recuperava a custo da devastação causada pelas invasões francesas quando o empresário José Ferreira Pinto Basto (1774-1839) adquiriu, em 1812, a Quinta da Ermida, perto de Ílhavo. Quatro anos depois, em 1816 comprou, em hasta pública, a Capela da Nossa Senhora da Penha de França e terrenos envolventes. Não se tratava de um capricho de milionário vocacionado para lazer e veraneio. Em breve, Pinto Basto apresentou uma petição ao rei D. João VI para "erigir para estabelecimento de todos os seus filhos, com igual interesse, uma grande fábrica de louça, porcelana, vidraria e processos químicos na sua quinta chamada de Vista-Alegre da Ermida". O que o rei concedeu, em alvará datado de 1 de julho de 1824.
Nos primeiros tempos de laboração, a nova empresa dedicou-se à produção do vidro e cerâmica "pó de pedra" de grande qualidade, destacando-se as peças com relevos e ornatos lapidados e gravados, bem como os delicados trabalhos de incrustação de medalhões. Para introduzir a porcelana, Augusto Ferreira Pinto Basto, filho do fundador, realizou uma visita técnica à fábrica francesa de Sèvres. Aí estudou a composição da pasta e obteve esclarecimentos que se revelaram fundamentais para a descoberta em 1832 de abundantes jazigos de caulino a norte de Ílhavo. Com a produção regular de porcelana entre 1832 e 1840 verificaram-se importantes melhorias na qualidade das pastas e vidrados, tendo a produção beneficiado também de significativos progressos tecnológicos. Também a aposta, durante as primeiras décadas de laboração, na contratação de mestres estrangeiros com experiência na produção cerâmica foi determinante para a formação de uma mão-de-obra local altamente especializada.
Casas e assistência aos trabalhadores
A Vista Alegre foi uma das grandes empresas portuguesas que, na segunda metade do século XIX, introduziu políticas de assistência aos seus trabalhadores e respetivas famílias, numa experiência social tão pioneira como visionária. Para conhecer melhor este universo recomenda-se uma visita ao Museu da empresa, situado em pleno lugar da Vista Alegre. Como nos explica a sua coordenadora, Filipa Quatorze, "o nosso arquivo está cheio de cartas de cidadãos a pedir para que os seus filhos fossem integrados nas escolas da empresa, a fim de aprenderem os vários ofícios envolvidos no fabrico da porcelana". Numa região, como a de Ílhavo (sede da Vista Alegre) em que a dureza da pesca era a atividade predominante, tornar-se operário da fábrica era visto como um privilégio e uma segurança. Dessa aspiração nasceu naturalmente um sentimento de pertença, favorecido pelas condições proporcionadas aos trabalhadores.
Ainda no século XIX nascia o bairro da Vista Alegre, que, para além de casas para funcionários, tinha creche, teatro (hoje restaurado e em funcionamento), um clube desportivo, um corpo privativo de bombeiros, que ainda existe, e que é a corporação privada mais antiga do país.
Colaborações de artistas
Ainda nos primórdios da Vista Alegre, fez escola Victor Rousseau, francês, contratado em Londres, que criou a escola de pintura na fábrica. Graças a investimentos como este, em 1851, já a empresa participava na Exposição Universal organizada no Crystal Palace, em Londres, e em 1867 recebia reconhecimento internacional na exposição Universal de Paris. Em breve, as peças da Vista Alegre estariam ao serviço da família real, como ainda hoje se pode ver nas coleções dos Palácios Nacionais. Lá, estão as baixelas, as peças personalizadas ou comemorativas. Uma tradição que a empresa prossegue, como podemos ver no museu. Também aqui poderemos ver como, ao longo da sua história quase duplamente centenária, a Vista Alegre soube sempre captar os melhores artistas nacionais para colaborarem consigo. O visitante do Museu pode encontrar peças únicas, de grande beleza, assinadas por nomes como Lima de Freitas, Raul Lino ou Manuel Cargaleiro.
Uma tradição que se mantém hoje em colaborações com nomes tão diversos como Christian Lacroix, Álvaro Siza Vieira, Joana Vasconcelos, André Carrilho, Pedro Cabrita Reis ou Oscar de la Renta. Isto sem esquecer que a fábrica da Vista Alegre está assente sobre os pilares de ferro concebidos pelo próprio Gustave Eiffel, em meados de oitocentos.
O porquê da bola de futebol
Muitos se perguntam por que razão vemos a bola de futebol frequentemente associada à Vista Alegre, como acontece no prato calendário de 2024. O facto deve-se a ter sido um dos membros da família Pinto Basto (Guilherme, bisneto do fundador) a ficar conhecido como o introdutor do futebol no nosso país. Em Inglaterra, onde estudou, tomou conhecimento da nova modalidade desportiva que, no terceiro quartel do século XIX, ali se popularizava. Em 1884, trouxe para Portugal a primeira bola de futebol, assim como as regras do jogo. E ela nunca mais deixou de rolar nos campos de todo o país.
À mesa dos reis
Para além das muitas peças existentes nos palácios portugueses, a Vista Alegre está presente no cerimonial de Estado da Presidência do Brasil, na Casa Branca (nos EUA) e em diversas Casas Reais europeias, incluindo a britânica, a espanhola e a holandesa. Para a História fica o serviço Vista Alegre oferecido à rainha Isabel II de Inglaterra, aquando da visita oficial do Presidente da Republica Craveiro Lopes, em 1955. Trata-se de um serviço de mesa completo, de 306 peças, com três linhas pintadas a ouro, representando a Inglaterra, a Irlanda e a Escócia. A encomenda foi levada a cabo com extremo rigor. Todos os pratos tinham de ter o mesmo peso e, para serem entregues 306 peças, foram feitas mais de mil.
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