Isto Lembra-me Uma História: Coldplay e a arte de chamar ao palco
Esta história de ter convidados debaixo do mesmo holofote não é sempre igual. Às vezes, é muito surpreendente, como aconteceu em Coimbra. Mas há uma história capaz de deixar Chris Martin de queixo caído.
É difícil não se ficar deslumbrado e embevecido com todo aquele espetáculo - o chamado barulho das luzes -, a comunhão, o espírito de partilha de entrega e, porque não, de acolhimento da dádiva. A dádiva é o estar ali com outras 50 mil pessoas a contemplar ídolos e a fazer sing-along ao som de algumas daquelas canções que marcam uma pessoa, daquelas que se colam aos momentos mais inesquecíveis de uma vida. Como se não bastasse tudo isto, ainda tivemos um Chris Martin em versão terrena, capaz de comunicar - certas vezes, em português (arrancado a ferros e a cábulas, mas ainda assim) - e de se relacionar com os mortais, comuns e incomuns, que marcaram presença em Coimbra, em muitos casos depois de horas e horas à espera em filas para qualquer coisa e de muito dinheiro investido numa fugaz aventura que se espera tenha sido uma experiência para recordar o resto da vida.
Como se tudo o resto não bastasse - as canções, a aura, a fama, a imagem, a pirotecnia, a gravidade natural que astros desta dimensão possuem ao ponto de exercer atração sobre todos os corpos num raio de vários quilómetros -, Chris Martin decidiu, com certeza tendo autorização dos demais Coldplay, convidar pessoas ao palco. A história não é clara, pelo menos para mim, uma vez que as informações públicas são escassas. Terão sido convites aleatórios? Haveria uma agenda, uma combinação anterior? Terá havido casting prévio para eleger os escolhidos? As escolhas terão partido da produção ou tão somente da orientação magnética do indicador de Martin que, inspirado como sempre, soube detetar entre a multidão indivíduos com a extraordinária capacidade de serem normais, vulgares, e de imprevisivelmente ascenderem ao palco que, no momento e debaixo dos focos de luz, concentra as atenções do mundo e dos demais devotos?
Um, na primeira noite, foi lá e tocou piano, outra, na segunda atuação, subiu e ficou compreensivelmente eufórica e comovida. Aos dias seguintes não prestei atenção, porque deixou de ser novidade e porque, com o arranque da jornada futebolística e perante a saturação mediática do assunto, a vinda dos Coldplay à nossa terra perdeu relevância noticiosa, mas acredito que outros cidadãos banais - somos todos especiais, somos todos únicos, eu sei - tenham recebido a unção de Chris Martin e com ela os 15 minutos de fama que Andy Warhol nos prometeu a todos.
Isto lembra-me uma história, este truque de chamar pessoas ao palco para aumentar o brilho da atuação, os disparos das máquinas fotográficas - ou os cliques nos smartphones, mas a história que me lembra é de um tempo em que os telefones serviam curiosamente para telefonar, não para fotografar - e as notícias no dia seguinte. Aconteceu tudo em Hollywood, no sumptuoso e distinto Beverly Hills Theatre, em 1983. Era 20 de agosto e, tratando-se da Califórnia, é muito provável que estivesse um calor dos diabos, céu limpo e vento moderado de oeste, devido à proximidade do Pacífico. Quem atuava era James Brown, o mítico, o lendário, o inigualável e monumental padrinho do funk. James Brown - tal como acontece com Chris Martin e com os Coldplay - não precisava de extras para tornar mítica a sua atuação. Estávamos na primeira metade dos anos 80, o funk, a soul e o disco sound ocupavam os primeiros lugares dos tops de vendas e as primeiras páginas das revistas da especialidade.
Nesse dia, que ficaria para a história, a meio da atuação e diante de uma audiência absolutamente rendida e em festa, James Brown começou a gritar ao microfone "Michael Jackson, Michael Jackson". As palavras eram repetidas como se o rei do funk tivesse pedido a sanidade. "Michael Jackson, Michael Jackson", repetia, e a multidão não percebia o que se passava. Até que o futuro rei da pop emergiu de entre o povo e, acenando e rindo, foi furando entre as pessoas que se amontoavam na plateia e que, incrédulas, gritavam, riam e aplaudiam numa desordem digna de quem vê uma aparição - isto, fazendo fé nos relatos de quem passou por semelhante experiência.
Michael Jackson chegou finalmente ao palco, subiu, ágil como só ele. Era ainda um Michael Jackson jovem, bonito, de tez mais escura e uns contornos de rosto muito mais nobres do que aqueles que nos deixou nas últimas memórias. Abraçou James Brown com carinho e efusividade, chegou-se ao microfone e cantou como só ele sabia, com a sua voz abençoada e os seus maneirismos que o elevaram à categoria de maior estrela do planeta. Meia-dúzia de notas, muitos guinchos eufóricos vindos da audiência, uma festa completa no palco e fora dele, Michael Jackson dá mais uns passos de dança, uma pirueta infinita, um moonwalk ostensivo, et voilá, a noite estava ganha, eram já dois reis em palco. E então Jackson aproxima-se de Brown e segreda-lhe qualquer coisa ao ouvido. Brown ri-se. Jackson insiste. Brown fica confuso.
Diz quem sabe que, até esse dia, James Brown nunca tinha visto nem ouvido um jovem e pequeno músico que começava a despontar nos meandros da soul, do funk e do R’n’B. Brown chega-se então ao microfone, aparentemente persuadido por Michael Jackson, que aplaude em segundo plano ao ritmo da música, e diz "Prince", mas de uma maneira confusa, ou insegura. "Prince", repete. Muitos ainda não sabiam quem era Prince, o álbum Purple Rain ainda não tinha saído - só chegaria aos escaparates em 1984. Embora fosse já o sexto álbum de Prince, Purple Rain foi o ponto na carreira do artista em que este se tornou planetário, conhecido em toda a parte e admirado por quase todos. Antes desse disco, Prince era mais um artista à procura do seu lugar.
Prince atravessa a multidão que, de novo confusa, aplaude e dança e ri. Num primeiro momento parece ser transportado às cavalitas de alguém. Prince media um metro e cinquenta e seis, pelo que se aceita a opção. E é então que o artista posteriormente conhecido como The Artist Fromerly Known as Prince chega, por fim, ao palco. Dão-lhe uma guitarra para as mãos. A música era It’s a Man’s Man’s Man’s Word. O solo foi exuberante, excessivo, virtuoso, quase operático. Em suma, perfeito.
A audiência, ao rubro, dançava, exultante e incrédula. Gritos, aplausos, assobios, um caos sonoro brotava do Beverly Hills Theatre diante de uma espécie de milagre musical que juntou no mesmo palco James Brown, Michael Jackson e Prince num momento no tempo improvisado que a história haveria de guardar boquiaberta. O próprio Chris Martin há de conhecer este episódio. Cada um faz história como pode e nem todos podem ter, ali à mão, estrelas mundiais para chamar ao palco.
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