Isto Lembra-me Uma História: As obras eternas do centro de Lisboa
É a mesma história de sempre: uma pessoa distrai-se e o centro de Lisboa está de novo em obras. Desta vez, e reconhecendo a necessidade da intervenção, há queixas lamentos e equívocos que importa sublinhar.
A história recente de Lisboa é feita disto e não é preciso muito para relembrá-la, qualquer pessoa, por mais desatenta que esteja, por mais distante que se encontre, o saberá. A Baixa da capital do País está permanentemente em obras desde há anos, talvez décadas. São raros os períodos de sossego e estabilidade. Ora é o desenho da frente ribeirinha, ora são as reformulações do trânsito, ora são privados que vão transformando, um por um, os prédios da cidade em hotéis, hostels, e outras formas criativas de alojamento, ora são os desenhos da calçada portuguesa, ora é o pavimento do Terreiro do Paço, posto à pressa para receber Bento XVI, ora são os cais da Avenida Intante D. Henrique e suas esplanadas, ou as ciclovias da 24 de Julho e todas as suas possibilidades adjacentes.
No meio de tudo isto, entre taipais, sinais provisórios de trânsito, marcações a amarelo no asfalto, pedras soltas, pó, gruas, ruído e camiões, lá circulam, como podem, lisboetas e turistas. Só que aos segundos custará menos o tempo e a paciência que se perdem e os incómodos que se sofrem - de qualquer modo, depois de amanhã ir-se-ão embora e daí a uns meses andarão a tirar selfies noutra cidade aleatória qualquer.
Desta vez, as obras estão relacionadas com a drenagem de Lisboa. É uma obra necessária, ou mesmo fundamental? Sem dúvida, e saúda-se que avance. Com o aumento da ocorrência de fenómenos climatéricos extremos ou pouco habituais, há que prevenir a eventualidade das cheias. E Lisboa, cidade ribeirinha cujo centro se erigiu sobre ribeiras, é particularmente vulnerável à ocorrência de cheias, pelo que urge prevenir, dentro do que é humanamente possível, calamidades mais do que previsíveis - senão mesmo inevitáveis.
O plano anunciado pelo executivo camarário liderado por Carlos Moedas deixa bem claro que os próximos tempos serão de grande agitação e balbúrdia obreira no centro da cidade. O presidente da Câmara de Lisboa não terá culpa - só que os lisboetas também não -, mas é uma grande pena que ninguém tenha pensado nisto quando, por exemplo, há poucos anos se revitalizou todo o Campo das Cebolas e Rua do Arsenal, levantando pavimento e assentando outro novo, que depois deteve de ser uma vez mais substituído pela falta de qualidade (das obras? Dos materiais? De ambos?), coisa que, aliás, se repete com frequência nos trabalhos camarários da capital, que, já agora, são pagos pelo contribuinte e que tantas vezes são adjudicadas por ajuste direto, essa ferramenta mágica do poder local que a tanta gente dá de comer.
Os exemplos de obras recentes naquela zona de Lisboa abundam (quem não se lembra da ponte de pauzinhos de António Costa na Ribeira das Naus, por exemplo?) e não se entende como é que uma obra estrutural tão importante possa ter demorado tanto até ser equacionada e posta em prática, quando podia, em tantas ocasiões oportunas que surgiram, ter sido posta em prática sem causar tanto dano, tanto transtorno e, seguramente, tanta despesa. Mas, agora que os trabalhos estão em andamento, há alguns equívocos que importa esclarecer.
Primeiro que tudo, há a questão ambiental - ouviu-se algures no tempo alguém (terá sido o próprio Carlos Moedas? Já não tenho presente) afirmar que "depois destas obras", e com as alterações à circulação que dela resultarão, haverá "melhorias ambientais" (ou qualquer coisa do género, dessas que se ouve muito agora, cheias de preocupações sustentáveis). Segundo estudos não muito recentes recentes - bem sei que a expressão é vaga, mas a aplicação é adequada: os números remontam a 2019 -, a poluição provocada pelos navios de cruzeiro em Lisboa é superior àquela produzida pelos automóveis todos das oito maiores cidades portuguesas. Possivelmente, a ideia é reduzir no tráfego automóvel para poder preencher as quotas de emissão de CO2 trazendo mais cruzeiros para o Porto de Lisboa. Estou a especular, mas a verdade é que nada disto parece coerente.
Depois, há a questão da 5.ª Circular. Carlos Moedas sugeriu aos automobilistas da cidade de Lisboa que usassem essa alternativa à travessia do centro da cidade. Trata-se de um percurso que começará em Alcântara e que passa por Estrela, Rato, Conde Redondo, por aí fora, até Santa Apolónia, evitando o coração - agora num peito aberto - da cidade. Muitos foram os meios e os comentadores a divertir-se com a ideia da 5.ª Circular, houve até quem brincasse e lhe chamasse imaginária. Acontece que nem Carlos Moedas está a imaginá-la, como também não a está a criar: a 5.ª Circular existe mesmo e constitui esse percurso precisamente. O Plano Diretor de Urbanização de Lisboa de 1948 não só já o previa, como o incluía. A 5.ª Circular é a circular interior de Lisboa, a última de todas. As outras quatro vão ficando progressivamente para norte distribuindo-se do centro para a periferia. (Isto não devia causar espanto. Se existe uma tão célebre 2.ª Circular, então tem de haver um primeira. Onde é que ela fica? No limite periférico da cidade, de Moscavide à Pontinha, passando pelo Paço do Lumiar.)
Haverá outros equívocos e queixas, assim como há, com certeza, méritos e reconhecimento devido por mais estas obras no centro de Lisboa. E, sim, Carlos Moedas talvez seja o último a culpar pelo timing da intervenção. Porém, a população do centro da cidade - a que resta, pelo menos, composta por intrépidos resistentes - também merece algum descanso e uma organização estável que lhe permita programar coisas tão complexas como uma ida ao hipermercado fazer as compras do mês.
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