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Isto Lembra-me Uma História: Tapem os olhos à Juventude

Ou então escondam o “pirilau” de João Cutileiro enquanto as Jornadas Mundiais passam por Lisboa. A Câmara Municipal diz que é tudo coincidência, é uma questão de obras muito necessárias.

Foto: Getty Images
11 de junho de 2023 | Diogo Xavier

Que o monumento precisa de obras urgentes, diz a Câmara Municipal de Lisboa, segundo relata o jornal Expresso. Inaugurado em 1997, e desde o dia da inauguração envolto em polémica - mas uma polémica muito mais do âmbito do fait-divers bonacheirão e jocoso do que do círculo de pôr em causa os valores fundamentais de uma civilização ao ponto de fazer pessoas arrancar os próprios cabelos -, o monumento que João Cutileiro (1937-2021) dedicou aos Capitães de Abril no alto do Parque Eduardo VII, em Lisboa, parece precisar de obras agora, por altura das Jornadas Mundiais da Juventude, que se realizam em Lisboa de 1 a 6 de agosto de 2023.

Foi a própria Câmara de Lisboa, durante o mandato de João Soares (1995-2002), que encomendou a peça ao escultor. Assim que foi apresentada ao público, a escultura não foi poupada aos mimos do escárnio de um País que pouco se ri de si mesmo, mas que se ri muito do trabalho dos outros, por mais sério que ele seja. João Cutileiro, que era avesso a falar da própria obra, e ainda mais a explicá-la, dizia achar piada a que o povo carinhosamente chamasse "estátua do pirilau" ao monumento que idealizara - e agora especulando e correndo o risco de estar errado - para homenagear a força e a coragem dos Capitães de Abril, que derrubaram o regime do Estado Novo. O escultor terá querido sublinhar a virilidade dos destemidos militares erigindo num dos pontos mais visíveis do centro da cidade um objeto fálico, feito em mármore, de cuja ponta sai uma jato de água, como se a própria colina ejaculasse por aquela torre de pedra, muito ereta.

As interpretações e as opiniões são tão livres quanto os autores e as suas obras, e nunca deverá um artista viver imune à crítica e até ao escárnio. Porém, o estranho caso do monumento fálico de Cutileiro ganha outros contornos quando a coincidência das datas da intervenção - a primeira absolutamente necessária em 26 anos de existência - e da passagem das catolicíssimas, logo muito púdicas, Jornadas Mundiais da Juventude pelo Parque Eduardo VII se aproxima perigosamente da ideia de censura. Naturalmente, e sem piedade, o mesmo povo português que escarneceu do "pirilau" de Cutileiro não poupou na chocarrice nas redes sociais, onde, como facilmente se pode imaginar, tudo foi chamado ao debate, desde os falos que uns viram até à virgindade de quem nunca viu nada, não esquecendo assuntos muito mais sérios - mas nem por isso mais poupados - como os abusos de menores por elementos da Igreja Católica, ela própria.

O sítio onde serão as Jornadas da Juventude, em agosto.
O sítio onde serão as Jornadas da Juventude, em agosto. Foto: Getty Images

Ninguém poderá afirmar com certezas que se trata de uma censura velada, mas lá que parece, parece. Com todo o respeito pelo pudor dos católicos, e parafraseando Gertrude Stein - um monumento é um monumento é um monumento. Tapá-lo, como se tapam os olhos das crianças quando surge no horizonte aquilo que não se quer que vejam, é não só infantilizar a juventude presente nas jornadas, como desrespeitar profundamente o autor da peça e ainda os que por ela são homenageados - além de, em última análise, os contribuintes que a pagaram, no geral, e os cidadãos de Lisboa, em particular.

A Câmara Municipal de Lisboa tem uma relação curiosa com os monumentos da cidade. E quando digo "da cidade", faço-o em termos latos, porque não me refiro somente àqueles que pertencem à cidade de Lisboa. Isto lembra-me uma história de uma outra escultura, também ela de homenagem, mas neste caso uma homenagem a um grande vulto da cultura portuguesa, o Padre António Vieira. O célebre jesuíta, que o próprio Fernando Pessoa considerou "o imperador da Língua Portuguesa", viu-se homenageado em 2017 numa escultura que resultou de uma iniciativa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que se associou, através de um protocolo - poupemos nos detalhes e nos contornos, foi uma parceria, cabe ao leitor o imaginar o resto - à Câmara Municipal de Lisboa, à época dirigida pelo atual ministro das Finanças, Fernando Medina.

A empreitada foi atribuída em concurso público, um concurso que o escultor Marco Telmo Areias Fidalgo venceu depois de convencer um júri repleto de idoneidade, que incluía figuras da Companhia de Jesus, da Direção Geral do Património Cultural e da Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa, além de representantes da Santa Casa de Lisboa e da Câmara Municipal. O projeto, quando revelado, deu que falar. Em cima de um pedestal, o Padre António Vieira ostenta um crucifixo e é rodeado por três crianças indígenas, semi-nuas. O representante da civilização cristã salvava assim os pequenos selvagens da perdição e do pecado, levando-lhes a palavra do Senhor, juntamente com toda a simbologia e idolatria - é, pelo menos, isto que parece representado na obra de Areias Fidalgo e que terá convencido um júri numeroso e muito bem composto. Isto em pleno século XXI e numa altura em que a temperatura dos debates em torno da herança cultural, da apropriação e da própria designação dos feitos dos portugueses - Descobrimentos? Ocupação? - subia. 

Em cima de um pedestal, o Padre António Vieira ostenta um crucifixo e é rodeado por três crianças indígenas, semi-nuas.
Em cima de um pedestal, o Padre António Vieira ostenta um crucifixo e é rodeado por três crianças indígenas, semi-nuas. Foto: Câmara Municipal de Lisboa

Terá sido, no mínimo, insensível a escolha do projeto. Porém, e como sempre, a liberdade de opinião não é maior nem menor do que a liberdade criativa do autor, pelo que, se era aquela a perspetiva do escultor acerca da história, a sua obra era legítima. Essa legitimidade tornou-se redobrada quando um painel de doutos avaliadores a considerou merecedora não apenas de exposição, mas também de financiamento público, ainda que parcial.

Claro, houve quem esticasse do direito de opinião até muito para lá da fronteira da legitimidade para discordar. A 10 de junho de 2020 - a data, Dia de Portugal, não terá sido nem acidental nem inocente -, alguém decidiu vandalizar o monumento. Nos peitos dos pequenos e agnósticos indígenas foram pintados corações vermelhos; já no torso do padre jesuíta podia ser lida a palavra "descoloniza", no mesmo tom ensanguentado que o dos corações dos menores que tinha em seu redor. Nessa ocasião, no dia imediatamente a seguir, Medina, o autarca lisboeta de então, apressou-se a condenar com veemência o vandalismo do ato. "Todos os atos de vandalismo contra o património coletivo da cidade são inadmissíveis", afirmou, e mandou limpar a estátua com caráter de urgência, por considerar que era essa a melhor resposta àqueles que vandalizam o tal "património coletivo da cidade".

Não deixa de ser curioso que agora Carlos Moedas, atual presidente da Câmara de Lisboa e nemésis de Fernando Medina, antagonize tão imensamente o seu antecessor fingindo que, na essência, ambos trabalham em prol do mesmo: proteger o património cultural e artístico da capital do País. Com tanto zelo, com tamanha diligência, não seria de espantar que a autarquia mandasse trocar os monumentos de lugar, o "pirilau" de Cutileiro pelo sermão do Padre António Vieira aos índios, durante o tempo que duram as Jornadas da Juventude. Se alguém perguntar porquê, a resposta é fácil: a escultura do mestre do mármore foi para arranjar e aquela com os indiozinhos também fica ali muito bem.

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