Christian Eriksen: o que realmente aconteceu, como foi salva a sua vida e qual o seu futuro
Eriksen colapsou ao 42.º minuto do jogo inaugural da Dinamarca no Euro 2020 – eis o que se sabe sobre o que aconteceu. Por Tom Morgan, e Jeremy Wilson
Foi um momento que deixou o mundo do futebol paralisado pelo choque: Christian Eriksen, um dos rostos do torneio, caiu inanimado no relvado ao minuto 42 do jogo inaugural da Dinamarca no Campeonato Europeu de Futebol, disputado contra a Finlândia, perante a incredulidade de quem estava presente no Parken Stadium em Copenhaga.
Durante alguns minutos, enquanto os médicos acudiam desesperadamente ao antigo médio do Tottenham, receou-se o pior. Mas Eriksen, tal como tinha acontecido com Fabrice Muamba em 2012, parece ter recebido o tratamento certo a tempo.
O médico da seleção dinamarquesa explicou posteriormente que Eriksen se "tinha ido" durante aqueles momentos frenéticos, mas na segunda-feira, já estável no hospital. O acarinhado jogador do meio-campo emitiu um comunicado que aliviou o mundo futebolístico: "não vou desistir".
Exploramos os acontecimentos da noite de 12 de junho e analisamos a probabilidade de o abalado jogador do Inter de Milão voltar a jogar.
O que aconteceu a Christian Eriksen
Pelas 17:42 (hora de Lisboa), um dos melhores jogadores saído do futebol dinamarquês quase morreu. Faltavam menos de quatro minutos de jogo para o intervalo quando a estrela da Primeira Liga durante os sete anos em que esteve no Tottenham Hotspur caiu inanimado no relvado quando um colega de equipa lhe passava a bola num lançamento de linha lateral.
Instantaneamente, os jogadores de ambas as equipas, alguns chocados e com lágrimas nos olhos, pediram ajuda médica. Ainda antes de as equipas médicas dinamarquesas entrarem em campo, já os colegas de Eriksen o tinham escudado. Assim que os médicos chegaram, começaram de imediato a fazer manobras de reanimação. Um completo silêncio abateu-se sobre o estádio.
Os jogadores finlandeses regressaram à linha lateral, para a zona da área técnica. O selecionador da Dinamarca, Kasper Hjulmand, atravessou o campo vazio em direção aos seus jogadores. A BBC interrompeu a transmissão televisiva das cenas traumáticas, mas alguns canais europeus continuam a filmar.
"Fomos chamados ao campo quando o Christian desfaleceu – não estava junto dele mas era bastante claro que ele estava inconsciente", explicou Martin Boesen, médico da seleção dinamarquesa."Quando cheguei junto dele, estava virado de lado. Estava a respirar e consegui sentir-lhe a pulsação, mas subitamente isso mudou e todos viram que começámos a fazer-lhe manobras de reanimação cardiorespiratória (CPR). "A ajuda por parte da equipa médica e dos restantes elementos do staff chegou muito – mesmo muito – depressa, e com a colaboração deles conseguimos aquilo que se viu".
Durante os cerca de 15 minutos de cuidados em campo foi criada uma estrutura em redor do jogar do Inter de Milão, com panos brancos, antes de este ser levado numa maca. Segundo fontes chegadas à família do jogador, a companheira de Eriksen, Sabrina Kvist Jensen, chegou a estar convencida de que ele tinha morrido. O guarda-redes dinamarquês Kasper Schmeichel correu até ela para a tranquilizar, dizendo-lhe que estava a respirar, mas soube-se depois que nem o médico da equipa estava seguro de que ele sobreviveria.
Os adeptos de ambos os países permaneceram dentro do estádio e gritaram o nome de Christian Eriksen enquanto as duas seleções aguardaram, durante a hora seguinte, nos seus respetivos balneários. Às 18:31, a Federação Dinamarquesa de Futebol (DBU) anunciou que Eriksen estava acordado e que iria continuar a ser examinado no hospital mais próximo, o Rigshospitalet. O órgão que tutela o futebol europeu, UEFA, deu à Dinamarca a opção de continuar a jogar nessa noite ou retomar o jogo no dia seguinte, domingo. O retomar do jogo no próprio sábado, que terminou com a Dinamarca derrotada por um golo pela Finlândia, foi entendido como o menor de dois males pelos jogadores.
Como foi salva a vida do médio dinamarquês
Tal como referiu Gary Lewin, ex-fisioterapeuta da seleção inglesa e do Arsenal, as hipóteses de se sobreviver a uma paragem cardíaca são substancialmente mais elevadas num jogo de futebol de elite do que se isso acontecer no meio da rua. De facto, numa questão de segundos os médicos já estavam junto dele a fazer massagem cardíaca para o manter vivo, com níveis de equipamento similares aos de um hospital de campanha criado de emergência pelo exército.
Dois cardiologistas que falaram com o caderno desportivo do jornal britânico The Telegraph disseram que foi imediatamente óbvio que Eriksen tinha sofrido uma paragem cardíaca, com base no CPR de que foi alvo, tendo conseguido recuperar o ritmo cardíaco com a ajuda de um desfibrilhador. Um deles referiu que parece que o seu coração só voltou a bater 10 minutos depois. Quando foi retirado do campo, saiu com a cabeça levantada e os seus olhos estavam abertos.
"Bom… ele estava morto. Realizámos manobras de ressuscitação cardiopulmonar. E foi uma paragem cardíaca. Quão perto estivemos de o perder? Não sei. Conseguimos trazê-lo de volta após o primeiro choque do desfibrilhador, por isso foi bastante rápido", explicou Boesen, o médico da seleção dinamarquesa.
A UEFA disse que Eriksen foi então transferido rapidamente para o hospital e que estabilizou, tendo a Federação Dinamarquesa de Futebol anunciado entretanto que ele estava consciente e que lhe estavam a ser realizados exames no hospital. Ao final da noite, Eriksen conseguiu falar com os seus colegas de equipa ao telefone.
O Dr. Sam Mohiddin, que tratou Muamba, dos Bolton Wanderers, quando este colapsou em campo durante um jogo em 2012, comentou à BBC que aquilo que se viu deveria incentivar as pessoas em geral a aprenderem a fazer manobras de reanimação. "A paragem cardíaca é um momento de perigo extremo. Se não estiver alguém por perto para ajudar, acaba-se tudo. Não se sobrevive. O risco para a pessoa depende, em certa medida, da causa exata da paragem cardíaca", declarou.
O "momento de perigo extremo", explicou Mohiddin, "é a altura do ataque cardíaco e, para poder ser recuperável, é preciso que haja por perto pessoas que percebam de imediato o que está a acontecer e intervenham rapidamente com CPR e desfibrilhação".
Lamentação da Dinamarca depois de retomar jogo na mesma noite
Numa conferência de imprensa emocionada, o selecionador dinamarquês Kasper Hjulmand manifestou orgulho na conduta da sua equipa, mas admitiu que lamentava a decisão de voltar a jogar menos de duas horas depois do acontecimento traumático.
Quando questionado pelo The Telegraph Sport se a UEFA tinha demonstrado suficiente compaixão, Hjulmand admitiu que tinha sido "muito difícil" para eles, atendendo às cenas sem precedentes num grande torneio. "Observando em retrospetiva, penso que neste caso foi errado – tomar a decisão entre dois cenários colocados aos jogadores", acrescentou. "Os jogadores estavam em choque, falamos de jogadores que ainda não sabiam se tinham perdido o seu melhor amigo e que tiveram de decidir entre duas coisas. Sinto que não devíamos ter jogado, mas sei que é difícil. É apenas o que sinto. Talvez devêssemos ter entrado no autocarro e ido para casa. Mas é o que sinto neste momento. Foi uma decisão muito, muito dura – a difícil mensagem de que os jogadores tinham de tentar tomar uma decisão".
Tal como se observou pelo desempenho revelado numa derrota por 1-0, com Schmeichel a deixar entrar um golo fácil, eles não estavam nas melhores condições para competir.
O que poderá ter provocado o colapso
Por mais devastador que tenha sido para a sua família e para todo um mundo futebolístico que assistia ao jogo, o colapso de Eriksen, de 29 anos, foi uma inevitabilidade estatística. É algo que acabaria por acontecer num grande torneio internacional, já que até sete em cada 100.000 atletas estão destinados a sofrer uma paragem cardíaca enquanto estão a praticar desporto.
Eriksen teve um destino semelhante ao de Muamba, que não tinha tido qualquer evidência de problemas cardíacos até cair em campo. Cheick Tiote, ex-médio do Newcastle, morreu durante uma sessão de treino na sequência de uma paragem cardíaca em 2017, enquanto Marc Vivienne Foe, Phil O’Donnell, Antonio Puerta, Miklos Feher e Samuel Okwaraji estão entre os jogadores profissionais que morreram em pleno jogo na sequência de ataques cardíacos.
O maior risco para qualquer atleta com menos de 39 anos é o da paragem cardíaca súbita, normalmente devido a um problema chamado cardiomiopatia hipertrófica, que provoca um ritmo cardíaco anormal. Este problema costuma ser genético e acontece quando as paredes do músculo do coração se espessam. O músculo mais espesso pode perturbar o sistema elétrico do coração, levando a batimentos cardíacos mais rápidos ou irregulares, que podem provocar uma paragem cardíaca súbita. No desporto profissional, os atletas são alvo de rigorosos exames, mas inúmeros estudos demonstraram que não é possível detetar todas as anomalias cardíacas.
Um estudo realizado junto de futebolistas britânicos com 16 anos, realizado entre 1996 e 2016, apresentou algumas conclusões bastante alarmantes. Das 1.168 pessoas que participaram no estudo, constatou-se que 42 delas tinham doenças do foro cardíaco que poderiam levar à morte por ataque cardíaco súbito, apesar de praticamente não terem apresentado quaisquer sintomas antes do teste. 30 desses 42 jogadores foram submetidos a cirurgias ou outros tratamentos para os seus problemas de coração e puderam voltar a jogar futebol, mas 12 deles tiveram mesmo de parar de jogar.
O estudo, que foi publicado no New England Journal of Medicine, calculou que a incidência de mortes por ataque cardíaco Súbito era de 6,8 por cada 100.000 atletas. A maioria das mortes devia-se a cardiomiopatias hipertróficas que não tinham sido detetadas nos exames.
Com efeito, mais de 80% dos jogadores com um problema cardíaco potencialmente perigoso não dão quaisquer sinais de sintomas, ao passo que até 20% dos jogadores que são testados continuam a passar nos exames. O rastreio é, pois, uma importante ferramenta para limitar – mas não eliminar – o risco. O próprio Muamba tinha sido examinado ao longo da sua carreira antes daquele jogo do Tottenham.
"É muito difícil evitar uma paragem cardíaca", disse Muamba."Tudo aquilo que os médicos podem fazer é preparar-se ao máximo para, quando se virem perante uma situação destas, saberem com o que estão a lidar e saberem como lidar com qualquer cenário". Em reação ao que sucedeu a Eriksen, Muamba disse à BBC: "Trouxe-me recordações de uma situação que eu já tinha deixado lá atrás, as emoções que senti bem no fundo quando foi comigo e que nunca mais quis reviver. É horrível. Ver isto acontecer à distância e não saber o que vai acontecer é assustador".
Reações do mundo inteiro
O duque de Cambridge e o capitão da seleção inglesa, Harry Kane, contam-se entre os milhares de pessoas que enviaram mensagens de apoio a Eriksen. "Notícias encorajadoras sobre Christian Eriksen, o nosso pensamento está com ele e com a sua família", disse o príncipe William, que é presidente da Associação Inglesa de Futebol. "Parabéns à equipa médica e a Anthony Taylor [árbitro do jogo, que é britânico] pela sua calma e ação rápida".
A Associação Inglesa de Futebol cancelou a conferência de imprensa que antecedia o jogo contra a Croácia enquanto o destino de Eriksen se manteve incerto, e Kane, que jogou com Eriksen durante muitos anos no Tottenham, mais tarde publicou um tweet onde dizia: "Chris, envio todo o meu amor a ti e à tua família. Aguenta-te, companheiro".
Um porta-voz da BBC emitiu entretanto um pedido de desculpas pela transmissão das imagens de Eriksen enquanto era socorrido. Gary Lineker, antigo jogador e atual comentador da BBC que fazia a cobertura do jogo, posteriormente acrescentou que "em 25 anos a fazer este trabalho, esta foi a transmissão mais difícil, angustiante e emotiva em que estive envolvido… Obrigada a (comentadores em estúdio) Cesc Fabregas, Alex Scott e Micah Richards pelo vosso profissionalismo, afabilidade e empatia".
Enquanto isso, Hjulmand esteve visivelmente emocionado na conferência após o jogo. "Foi uma noite dura", disse. "Todos nos lembrámos da coisa mais importante que existe na vida , que é ter relações preciosas. Não tenho palavras que cheguem para elogiar a nossa equipa de jogadores. Não poderia estar mais orgulhoso destas pessoas que tão bem tomam conta umas das outras numa altura em que um dos meus muito muito queridos amigos está a sofrer".
O selecionador inglês Gareth Southgate acrescentou que "em nome da Associação Inglesa de Futebol, dos nossos jogadores e staff, desejamos o melhor ao Christian e aos que lhe são chegados", ao passo que o presidente da UEFA, Aleksander Ceferin, dise: "Momentos como este colocam tudo na vida em perspetiva. Desejo ao Christian rápidas e plenas melhoras e rezo para que a sua família tenha força e fé".
O jornal dinamarquês Ekstra Bladet resumiu muito bem, na sua manchete, o sentimento geral: "A Dinamarca perdeu, a vida venceu".
O que se segue para Eriksen
Da sua cama de hospital, na segunda-feira, Eriksen – que continua estável – emitiu um comunicado dizendo que não vai desistir depois desta paragem cardíaca.
Numa mensagem enviada através do seu agente, Martin Schoots, ao jornal italiano Gazzetta dello Sport, Eriksen agradeceu aos apoiantes: "Obrigado, não irei desistir. Sinto-me melhor agora – mas quero compreender o que aconteceu. Quero agradecer-vos a todos pelo que fizeram por mim".
Além de estar em contacto com a seleção dinamarquesa, o CEO do Inter de Milão, Giuseppe Marotta, confirmou que Eriksen também tem falado com os jogadores do clube italiano. "O próprio Eriksen enviou uma mensagem, através do nosso chat interno, e isto confirma os laços entre os jogadores", declarou à Rai Sport.
A mais longo prazo, isto não significa necessariamente o fim da carreira de Eriksen como jogador. Um cardiologista sublinhou os avanços em matéria de tratamentos nos nove anos que decorreram desde que Muamba desfaleceu aos 43 minutos no jogo dos Bolton frente ao Tottenham para a Taça de Inglaterra. Tratando-se de uma falha cardíaca, os médicos irão passar as próximas semanas "a analisar a eletricidade a passar no coração", ponderando pelo caminho as intervenções necessárias para bloquear vias anormais. "Ainda é demasiado cedo para dizer o que quer que seja", comentou um especialista do coração. Esta quinta-feira, a federação dinamarquesa anunciou que o jogador vai ter um desfibrilhador cardíaco implantado.
Muamba viu-se forçado a abandonar o futebol, mas tem conseguido viver uma vida relativamente normal com um cardioversor desfibrilhador implantável. E faz agora campanha em prol de melhores rastreios dos atletas. "Antes do incidente, achava que o meu ritmo cardíaco estava ótimo e que não havia quaisquer problemas – o incidente ensinou-me muito sobre o meu coração", disse.
"O foco dos jogadores jovens está todo no futebol. Lembro-me de quando eu ainda jogava, sei o que é estar naquela bolha sobre a qual não se quer partilhar informação. Os jogadores jovens não prestam atenção a isto, por isso temos de os educar mais nesse sentido. "Por isso, para aqueles que chegam à escadaria do futebol, é importante que quando são examinados estudem o seu próprio coração para começarem a compreendê-lo melhor", acrescentou Muamba.
Itália introduziu a obrigatoriedade de realização de exames cardiológicos para todos os jovens adultos que participam em atividades desportivas, o que resultou numa redução de 89% da morte por paragem cardíaca súbita.
Tom Morgan e Jeremy Wilson/The Telegraph/Atlântico Press
Tradução: Carla Pedro
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