Descobrir Portugal à mesa
Pensar que os melhores restaurantes se localizam unicamente nas metrópoles é cair num engodo dispensável. A MUST foi conhecer três lugares de exceção, com cozinha de autor. Começando no Ribatejo, passando pela Costa Vicentina e terminando na capital Algarvia, descentralizar é o mote desta peça gastronómica.
Um disclaimer, na seleção de restaurantes que se segue encontrará os que mais nos cativaram no final do verão e início deste outono. Encontros inesperados e um paladar que nunca mais foi o mesmo. Como recriar estes pratos em casa? A mestria, a técnica e o conhecimento, esses, deixamos para os chefs com que nos cruzámos, que para além de uma cozinha de autor, partilham entre si a constante valorização da região que os acolhe com recurso aos produtos locais, o respeito pela sazonalidade e uma prática orientada para o desperdício zero. Acima de tudo uma paixão visível pelo seu ofício.
Ó Balcão, Santarém
Às 13h40 de uma terça-feira o restaurante Ó Balcão estava cheio, entre famílias, almoços de negócios e o nosso grupo de imprensa. Um conjunto heterogéneo que reflete bem a cozinha de Rodrigo Castelo: consensual e feita com alma. O chef começa por nos mostrar as alterações, ocorridas este verão: o detalhado esquema de iluminação; a nova pedra no balcão principal, agora antibacteriana; as cadeiras desenhadas pelo próprio; o tom verde seco que veio substituir as paredes brancas; a loiça do Studioneves e da Ceramirup.
No nome, a Taberna caiu e ficou somente Ó Balcão. Uma mudança importante motivada pela evolução da cozinha, cada vez mais refinada para a Casa e serviço que a acompanhavam. "Os dois tinham de casar", explica-nos Rodrigo Castelo cujo discurso é tão rico em conteúdo e pormenor que muitas vezes é difícil acompanhá-lo. Cada prato é-nos apresentado como se de uma visita guiada se tratasse: começamos nos primórdios da alimentação do animal, passando pela sua fisiologia e anatomia até à descrição detalhada da técnica com que o prepara e transforma, seja salmoura, cura ou fumado. A parceria com a Escola Agrária de Santarém, onde estudou seis anos, está muito presente e ali mantém uma cozinha de produção na qual encontra a tecnologia, o fundamento e a segurança alimentar que necessita. A inspiração vem "da região, das velhinhas e do contacto com produtores e colegas de profissão. Quem diz que não há partilha em Portugal não fala a verdade. Há muita partilha entre nós".
Os produtos são sobretudo do Ribatejo, como a fataça e o lagostim do rio, a abóbora do maior exportador da zona, o azeite da Casa Anadia em Abrantes, o pistáchio de Torres Novas, os tomates biológicos da sua horta, mas também de outras zonas do país. A filosofia de desperdício zero impõe-se. Fazem-no naturalmente e não por moda: espinhas, ossos e cascas dão origem aos mais ricos molhos e caldos. O couvert vem para a mesa. Um trio de pães a fumegar, manteiga fumada, cecina, língua e camarinhas. Devemos começar da esquerda para a direita, mas Rodrigo Castelo avisa que não é para devorar tudo. "Não acreditamos em menus que demorem mais de duas horas e meia. Desde que a pessoa coloca a primeira peça à boca, o tempo começa a contar". O chef advoga a importância de uma boa digestão e por isso também há menos hidratos e glúten no menu. Nos snacks, destacamos o coscorão do rio até ao mar, um corneto que se desfaz na boca, com uma espuma de base de camarinhas no topo, um picadinho de peixe do rio e do mar no meio e um creme de lúcia-lima no final.
O menu de degustação (€75 por pessoa, €45 o pairing de vinhos) tem12 momentos – couvert, snacks, vegetariano, sopa, peixe, marisco, terra e mar, carne, final surpresa, pré-sobremesa, sobremesa, café e petit fours – por isso não lhe queremos desvendar tudo. No vegetariano, uma beringela grelhada com caldo de legumes e tomate. Se tem uma alimentação por base vegetal, não deixe de aqui vir - "tudo se consegue", como avisa o chef. A sopa de peixe do rio com ovas de barbo faz uma boa ponte entre entradas e pratos principais e os pezinhos de coentrada com berbigão e molho holandês, foi talvez o nosso preferido. A falsa cabidela de cevada e enguia fumada faz-nos rir o palato. No final, um aplauso para a proposta nem tudo é limão, uma sobremesa cítrica com várias texturas. "Sou viciado no que faço", revela o chef como se não tivéssemos dado conta a esta altura. Continuar a promover o Ribatejo, também pela televisão, é um dos seus propósitos, mas o mais importante é mesmo estar presente diariamente no restaurante. A responsabilidade não vem das várias distinções que o Ó Balcão tem reunido desde 2013, mas antes do respeito pelo cliente. "Não quero defraudar quem aqui vem", remata.
Onde? Rua Pedro de Santarém, 73, Santarém Quando? Das 12h00 às 16h00 e das 19h00 às 22h30 de segunda a sábado. Tel. 243 055 883
Alma Nómada, Sines
Chegamos a Porto Corvo e o cenário não podia ser mais calmo. Muitos estão a trocar a agitação das grandes cidades, por locais como este, onde o tempo não tem pressa. Exemplo disso é José Costa que, em 2008, saiu da direção de uma multinacional para liderar o Yelloh! Village Costa do Vizir, um dos dois campings existentes em Porto Covo, muito próximo da vila e a apenas quinhentos metros da Praia Grande. Ivone Machado juntar-se-lhe-ia mais tarde, como companheira de vida e de negócio. Estes nómadas viram no chef Ricardo Leite, a pessoa indicada para abraçar a sua coqueluche, o restaurante Alma Nómada. Estávamos em 2019.
"Foi uma grande mudança, mas ao mesmo tempo uma decisão muito ponderada", conta Ricardo Leite a propósito da deslocação para o litoral Alentejano, juntamente com a namorada Inês Gomes, que trabalha no serviço de sala. O chef português de 39 anos iniciou a sua formação no Le Cordon Bleu em Londres e apresenta um percurso admirável com passagens pelo Feitoria, Bica do Sapato ou Loco, onde esteve seis anos. No Alma Nómada, prima pela técnica e por um produto de alta qualidade, preferencialmente local e orgânico, como a cavala adquirida na lota de Sines, as frutas e vegetais d’A Cerqueirinha, em Grandôla, ou os cereais das Farinhas Paulino Horta, em Alenquer. Mas não só, o azeite, por exemplo, vem de Bragança, e o ananás dos Açores é imprescindível para uma das sobremesas. "Não quero fazer algo consensual, quero que as pessoas gostem da minha comida pelo que ela é. Não se trata de uma cozinha regional, mas de autor". A inspiração vem das memórias de infância, das férias passadas no campo e da cozinha da avó.
Iniciámos a refeição com dois leves snacks: a cavala curada com maionese de miso, óleo de lúcia-lima, crocante negro de tapioca e um dashi avinagrado (€9,50), seguida de um pastel tenro de leitão fumado com molho de pezinhos de coentrada (€11). Seguimos com a mista de peixe da lota (€19), naquele dia com robalo, pregado e pargo, mas que pode variar consoante o peixe mais fresco. A ementa também conta com raviolli fresco de beterraba (€17) ou os pratos premium de carne maturada, seja em costelão ou hambúrguer.
Finalmente, as sobremesas. Blasfémia das blasfémias, degustámos todas. A começar pela barra de chocolate branco (€8) com coulis de frutos vermelhos e sorbet de beterraba, uma ideia que surgiu ao chef enquanto comia um chocolate Mars. Depois o crème brûlée de abóbora fumada (€6,5) feito em forno a lenha, uma proeza difícil de conseguir, e a tartelete merengada de Ananás dos Açores (€7), como lhe falámos. Uma curiosidade: quando o fornecedor falha, Ricardo Leite prefere não servir a sobremesa. O produto tem de ser aquele e mais nenhum. Aqui, todas as partes do fruto são aproveitadas, pele, casca e parte superior. Por fim, entra o creme de cardamomo verde e baunilha de São Tomé (€6,50) com granizado de pera e camomila. No Alma Nómada é fácil esquecer as preocupações e o ambiente de beach club evocado pela decoração do restaurante faz-nos pensar que estamos eternamente de férias. Quanto ao futuro? "Porto Covo é uma aldeia com muito poder económico", declara de chofre, desvendando-nos off record os projetos próximos que se seguem para aquela instalação turística. Uma pista: são ambiciosos.
Onde? Costa do Vizir Monte Branco Quando? Das 12h00 às 15h00 e das 19h00 às 22h00 de segunda a domingo. Tel. 965 754 882
Alameda, Faro
"Alameda é o nome do parque da cidade onde as pessoas vinham passear quando ainda não existiam shoppings", avança chef Rui Sequeira, referindo-se ao Jardim da Alameda João de Deus, em Faro, que dá nome ao seu restaurante desde 2018. Este situa-se ali perto, num bonito edifício recuperado, anteriormente uma panificadora muito conhecida pelos locais. O espaço é pequeno e por isso é fácil conhecer os cantos à casa. Uma equipa de sete colaboradores, já a contar com o chef, servem onze mesas ao jantar, com a exceção de domingo, dia em que também é possível almoçar. Lá dentro, uma decoração temática, tropical, a homenagear o parque que lhe dá nome e onde se vislumbram pavões, eucaliptos e palmeiras.
Mas o ex-libris do restaurante é mesmo a esplanada, o perfeito cartão de visita aos transeuntes. Envidraçada e ladeada de plantas várias, torna-se acolhedora o suficiente para as noites mais frias, mesmo de inverno. Este foi, aliás, um dos motivos que levou Rui Sequeira de 29 anos, nascido e criado em Faro, a abrir portas na sua terra natal. Depois de sete anos no Ocean, notou que a maioria dos restaurantes de estrela Michelin do Algarve fechavam durante a estação fria. "Queria um espaço onde as pessoas pudessem vir o ano inteiro". Aqui a alta gastronomia faz-se de descontração sob denominação de fun fine dining. Neste ambiente leve e informal, onde pode aparecer de calções ou chinelos, os snacks degustam-se pela mão e o medo de premiar a toalha com uma ou outra nódoa é coisa que não existe. Esta foi a forma que o chef encontrou de se aproximar das pessoas da terra, que aliás constituem a maioria dos habitués da Casa.
No Alameda não há carta, mas sim quatro distintos menus de degustação. O Origami (€80 por pessoa, €47 harmonização vínica) constituído por 13 momentos e do qual só se conhece a lista de ingredientes; o Umami (€54,90 por pessoa, €35 harmonização vínica), com oito momentos e onde é possível escolher o prato principal; o Alameda (€39,90 por pessoa) com quatro momentos e ainda o menu Vegetal (€48,90 por pessoa, €35 harmonização vínica) de oito momentos, para quem não consome proteína animal. Da nossa experiência, que contemplou um mix de todos, destacamos, nos snacks, a cataplana algarvia, em que os sabores tradicionais deste prato do Sul se condensam numa pequena bola de massa frita onde depois assenta a gamba da costa. Nos pratos principais, uma menção honrosa para a "carbonara" de raia e topinambur. A terrina de polvo de Olhão com puré de jalapenos e batata doce de Alzejur também foi um dos preferidos. Por esta altura, já deve ter reparado que a maioria dos pratos são do mar. É propositado. Ainda assim, uma das surpresas da noite foi a vitela com puré de aipo tostado e beterraba, salpicada com um molho de vinho tinto e figos secos.
A fazer companhia às especialidades do chef, há uma garrafeira com várias referências locais, com destaque para a produção biológica. André Filipe Moreira Ramos é o sommelier que o acompanhará noite dentro, proporcionando bons momentos educativos. E por falar em noite, esta já vai longa: se no início da refeição fomos recebidos com Tiago Bettencourt e o seu Jardim, à despedida é Rui Veloso quem nos embala e fecha com magia este jantar.
Onde? Rua da Polícia da Segurança Pública, 10, Faro Quando? Das 19h00 às 22h30 de quinta a segunda e aos domingos também das 12h00 às 14h00. Tel. 289 824 831
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