Isto Lembra-me uma História: À espera da morte no fundo do mar
O trágico acidente do submergível de recreio Titan mexeu com a opinião pública durante uma semana inteira. O caso despertou consciências e acendeu debates, uns mais, outros menos válidos - mas ninguém lhe ficou indiferente. E ainda recuperou uma das memórias mais horríveis dos últimos 30 anos.
Um submarino que vai ao fundo é óbvio que tem de ser notícia. Afinal de contas, não foram os submarinos imaginados e concebidos precisamente para navegarem pelas profundezas dos mares? Se um submarino se afunda, tem de ser notícia. Só um grande, grande cinismo, misturado com alguma hipocrisia e apimentado pelo gosto - de certo modo naïf - de escarnecer das fraquezas e dos falhanços dos ricos e poderosos podem fazer-nos reagir com outra coisa que não o horror e o choque.
Não me ponho de parte desta multidão das redes sociais que tem produzido um pouco de tudo em torno da tragédia do Titan, desde apontamentos de humor - algum, duvidoso; outro, airoso (se é que isso é possível quando se trata de mortes trágicas - mas eu acredito que seja) - a longas e profundas análises sociais e sócio-económicas, passando ou desaguando sempre na avaliação arrogante do sentido humanitário dos outros. E aqui "os outros" são, segundo o dedo apontador e acusador do comentador comum das redes sociais, os jornais, as televisões, os sites de notícias, as rádios, em suma, os jornalistas.
Diz a massa que os meios de comunicação dedicam muito mais atenção a este assunto do que às centenas de mortes de refugiados e migrantes que naufragam, com colossal e cataclísmica frequência, nas águas do Mediterrâneo, talvez o maior cemitério de miséria e pobreza do mundo atual. Mas a massa não se apercebe de duas coisas: primeiro, de que está a dedicar, também ela, uma atenção desmedida ao assunto do submarino Titan; segundo, que o assunto e esse debate têm ajudado a prestar mais atenção à tragédia da migração através do Mediterrâneo, que passou a ocupar não apenas os noticiários (a que a maioria se foi, com o tempo, tornando indiferente, já agora), mas também e principalmente o debate público, aquele que faz de nós todos cidadãos, gente política, no sentido em que pensamos a pólis e a comunidade circundante com que interagimos.
Se deixarmos de parte o cinismo, a hipocrisia e alguma fanatismo que corre o risco de nos desumanizar a nós ao mesmo tempo que desumanizamos as vítimas de uma tragédia, acredito que não será difícil compreender o fascínio geral que o horroroso episódio do Titan despertou. Enquanto o Canadá anuncia uma investigação ao acidente, há certos elementos deste desastre que já são conhecidos. O Titan era um pequeno submarino turístico, propriedade da empresa OceanGate, que foi lançado no domingo, dia 18 de junho, do navio Polar Prince, no Atlântico Norte. A bordo do submergível seguiam cinco pessoas. Foram encontrados destroços do Titan a quase de 4 mil metros de profundidade, perto dos restos do Titanic - mais precisamente, a 487 metros de distância destes, que eram o destino desta viagem turística.
Ao longo da semana, e enquanto se debatiam questões relacionadas com as buscas pelo Titan e o salvamento dos seus passageiros e tripulante, vieram a público várias vozes que se opunham ou questionavam a legitimidade desta viagem, principalmente por causa das normas de segurança - e, infelizmente, havia razões para as questionar e contestar. Uma das vozes mais notáveis e talvez a que mais se fez ouvir foi a de James Cameron, realizador de cinema apaixonado pelas profundezas dos oceanos e fascinado pelo Titanic - é dele, precisamente, o célebre filme Titanic, de 1997. Cameron é um navegador experiente, ao ponto de ser o único ser humano a ter descido, sozinho, à Fossa das Marianas, o ponto mais profundo dos mares, a cerca de 11 mil metros de profundidade. À partida, tudo indica que o acidente do Titan tenha consistido numa implosão, com o casco (que James Cameron considerou "experimental") a ter cedido à extrema pressão da água sobre o submarino. A ter acontecido assim, o esmagamento do submergível terá ocorrido em milissegundos e as mortes dos seus ocupantes terão sido praticamente instantâneas.
As circunstâncias e os pormenores da "implosão catastrófica" ainda estão por apurar e por explicar, mas a ideia de um esmagamento e mortes instantâneas, apesar da brutalidade da imagem, confere, na minha perspetiva, alguma paz à tragédia. Ao longo da semana, e enquanto se acreditava que os passageiros do Titan estavam perdidos no fundo do mar, mas vivos e a contar as horas de oxigénio restante, a minha aflição estava com eles. É que isto lembrou-me uma história, também ela muito trágica. Ou, se medida em números de mortes e contornos da tragédia, ainda mais trágica do que esta. Refiro-me ao afundamento do Kursk, submarino nuclear da marinha russa que ficou no fundo do Mar de Barents, ao largo de Murmansk, na Rússia, não muito longe da Finlândia, com mais de uma centena de homens - jovens homens - a bordo. Eram 118 os seus tripulantes.
O que houve de mais aterrorizador na tragédia do Kursk foi precisamente saber-se que uma parte dos homens que estavam a bordo do submarino ainda estavam vivos (na altura, não se sabia nem quantos, nem por quanto tempo estiveram vivos). O submarino russo de mísseis de cruzeiro da classe Oscar, lançado ao mar em 1994, saiu para exercícios militares a 10 de agosto do ano 2000. Dois dias mais tarde, por volta das 11 e meia da manhã de 12 de agosto, um problema com disparos de mísseis provocou duas explosões internas na proa do submarino, sendo a segunda muito maior e mais intensa do que a primeira. As explosões provocaram danos estruturais graves e rombos no casco, levando o submarino a perder flutuabilidade e afundar-se no leito marinho a 108 metros de profundidade.
Ambas as explosões foram devastadoras e provocaram mortes, mas houve 23 marinheiros que sobreviveram. A primeira explosão matou os tripulantes das partes dianteiras e a onda de choque da segunda - que foi sentida e registada por sismógrafos como tendo sido equivalente a um sismo de 3,5 na escala de Richter - matou os restantes, exceto esses 23 que trabalhavam nas secções de reatores nucleares e na sala de máquinas.
Não se sabe ao certo durante quanto tempo sobreviveram esses 23 homens. Sabe-se que pelo menos três deles tentaram fugir e refugiar-se no 9.º compartimento, onde terão tentado, sem sucesso, reativar o sistema de oxigenação. Conseguiram chegar ao compartimento, mas a tentativa acabou por causar mais uma explosão que acabou por matá-los e aos restantes sobreviventes, se ainda os houvesse. A Rússia acabaria por publicar uma nota, que pode ser um texto de despedida ou um testemunho para a posteridade, escrita pelo Capitão-tenente Dmitri Kolesnikov: "Aqui está escuro para escrever, mas vou tentar por tato. Parece que não há hipóteses reais [de sobrevivência], [talvez] 10–20%. Espero que pelo menos alguém leia isto. Aqui está uma lista de pessoal de outras secções que agora estão na nona e vão tentar escapar. Saudações a todos, não há necessidade de desespero."
Apesar de o acidente ter ocorrido a 12 de agosto, a Rússia não admitiu de imediato o sucedido. E, mesmo depois de admitir que ocorrera um problema grave durante os exercícios do Kursk, foram precisos quatro dias para que aceitasse ajuda externa para resgatar o submarino. Foi só a 21 de agosto que o mundo assistiu horrorizado às manobras de resgate do Kursk, com o envio de homens-rã britânicos e noruegueses, que se depararam, sem surpresa, com um cenário dantesco de destroços e mortes. Mas, acima de tudo, o maior dos horrores foi aquele com que o mundo assistiu, sem nada poder fazer, à recusa de uma nação em salvar os seus próprios homens, num misto de orgulho patriótico com a suposta defesa de segredos militares.
Em ambos os casos, tanto no do Titan como no do Kursk, o mais perturbador é a imagem de pessoas vivas encapsuladas em pequenos invólucros a centenas de metros de profundidade, contando o tempo que lhes resta até à morte, acreditando menos, a cada minuto que passa, no milagre de um salvamento - um salvamento que, em qualquer dos casos, nunca surgiu. O fraco consolo que nos resta é a possibilidade de todos terem morrido rapidamente e com o menor sofrimento possível.
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