"Beckham": a mini série documental já se estreou na Netflix - e não há muitos elogios
Dizer que a vida de David Beckham dava um filme não traria novidade para ninguém. Já Fisher Stevens preferiu fazer, em torno da superestrela uma mini série documental e o resultado parece ter sido um bocadinho diferente do que se esperava: afinal, dizem que é uma telenovela. “You have no idea”, advertem logo na apresentação da obra.
Se aconteceu com David Beckham, então será notícia. Há praticamente três décadas que é assim, desde que o mítico ala direito inglês ainda vestia a lendária camisola 7 do Manchester United. Logo que surgiu naquela que ficou para a história como a Class of 92 - uma geração de jogadores que levaram o Manchester United de volta ao topo do futebol europeu, sendo que todos esses futebolistas (além de Beckham: Ryan Giggs, Paul Scholes, Nicky Butt e os irmãos Gary e Phill Neville) tiveram carreiras notáveis - que o mais célebre louro do futebol inglês dava sinais de ter aquele extra em relação a todos os outros. Se a tal geração de 92 foi proeminente o suficiente para que, por exemplo, se tivesse feito um filme - The Class of 92 (Ben Turner, Gabe Turner, 2013) - em que se conta a extraordinária ascensão dos promissores futebolistas de 1992 até à apoteose, quando se tornaram campeões europeus, todos juntos, pelo Manchester United, na final disputada em Camp Nou, contra o Bayern Munique, em 1999, então David Beckham estava ainda num patamar mais acima, distinguindo-se desde cedo de todos os outros por possuir uma óbvia e inegável dimensão extra-futebolística.
Foi precisamente em 1999 que David se casou com Victoria, que hoje o mundo conhece principalmente como sendo a senhora Beckham, mas que nesse tempo era Victoria Adams e, acima de tudo, a Posh Spice: uma das Spice Girls e possivelmente a mais admirada e cobiçada de todas as Girls que compunham aquela que foi a mais importante girl band da viragem do século - quiçá, a mais importante girl band de sempre. E foi o casamento mais posh que a imprensa cor-de-rosa britânica podia ambicionar. De repente, juntavam-se a figura mais mediática do futebol inglês com a mais spicy (esta conclusão é discutível) das girls que, à época, encantavam o universo pop fazendo furor no mundo inteiro.
Sobre Beckham, já muito se escreveu, claro, e também já muito se filmou, tanto em filmes que o evocam (Bend it Like Beckham, Gurinder Chedha, 2002), como em obras que o retratam de uma perspetiva quase exclusivamente futebolística (David Beckham: Infamous, Ben Sempey, 2022), além de Becks registar aparições breves e cameos em filmes como Goal! The Dream Bengins (Danny Cannon, Michael Winterbottom, 2005) ou Deadpool 2 (David Leitch, 2018), entre outros. Em suma, David Beckham é uma superestrela de alcance mundial, com uma figura que excede amplamente os relvados onde se tornou conhecido e que pisou ao serviço de Real Madrid, LA Galaxy, AC Milan e Paris Saint-Germain, além do já mencionado Manchester United. E, convenhamos, um currículo e tanto.
Depois da carreira como futebolista, Beckham tornou-se homem de negócios, além de embaixador de marcas de prestígio, que vão da alta relojoaria aos cuidados com a aparência masculina - o que é uma escolha óbvia para esta marca, pois foi precisamente Beckham o homem que cristalizou uma definição possível para o protótipo do homem pós-moderno, e estávamos nós em finais dos anos 90: metrossexual, um homem que se cuida, que gosta de ser bonito, ou seja, que se comporta em relação à sua figura usando características habitualmente atribuídas ao lado feminino da humanidade (isto numa altura em que não se falava muito em binário e não-binário), mas sem que isso afetasse a sua masculinidade.
Em relação aos negócios, David Beckham também nunca se afastou demasiado do futebol. Aliás, o seu mais notável e ambicioso projeto é mesmo um clube de futebol, o Inter de Miami, da MLS - Major League Soccer, a principal divisão do futebol dos Estados Unidos da América. Fundado em 2018 com o nome Club Internacional de Fútbol, o Inter de Miami mostrou desde logo ao que vinha: ser um clube que unisse em seu redor a numerosa e fortíssima comunidade hispânica da Florida. Desportivamente, o projeto não tem tido grande sucesso, apesar dos recentes progressos registados após a chegada à equipa do super astro do futebol Lionel Messi. Mas ao nível da imagem e da popularidade, o Inter de Miami é um caso de sucesso - ou não se tratasse de um projeto com a assinatura de David Beckham.
E é com todos estes ingredientes que chegamos ao assunto do momento, a mini série documental da Netflix, Beckham, que retrata a vida e a carreira da super estrela. O premiado realizador Fisher Stevens dirige a série, que se divide em quatro capítulos. "You think you know Beckham, but you have no idea" ("Vocês pensam que conhecem Beckham, mas não fazem a menor ideia"), atira a frase que apresenta o documentário, desafiando definitivamente os espectadores. Será que conhecemos? Será possível conhecer além da superfície alguém com esta dimensão? Parece ser essa a proposta de Fisher Stevens e da Netflix.
Quem já viu e escreveu sobre o assunto, parece concordar num ponto: a pretexto de se explorar a carreira e a vida privada de Beckham, quase em simultâneo, acaba-se numa espécie de voyeurismo privilegiado com uma vista rara para o interior e a intimidade não só de David mas de toda a família Beckham. Corey Seymour escreve, na Vogue, "come for the football, stay for the soap-opera-level drama", o que é revelador do que se pode esperar da produção. Marlow Stern (Rolling Stone) sublinha a falta de contexto acerca de Beckham para-lá-dos-relvados (os tais ingredientes extra de que falávamos atrás) e compara a série documental a The Last Dance (Jason Hehir, 2020), uma outra mini série documental, também com carimbo Netflix, que retrata uma época específica na carreira do basquetebolista Michael Jordan e que, desse ponto de partida, constrói uma narrativa para além da NBA. Só que Marlow Stern acrescenta, com sublinhado, "with a lot less tea", o que nos devolve assustadoramente ao universo proposto por Seymour: o das novelas, explorando, por exemplo, as crises matrimoniais do casal posh, os rumores das infidelidades e os conflitos de personalidade que, por vezes, se manifestam nas pequenas coisas. Como em todas as telenovelas. Mas o melhor mesmo é ver. Se contém Beckham, de certeza que vale a pena.
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