João Vicêncio e Nuno Faria. Quem são os enólogos do ano?
Os "Prémios Vinhos do Tejo", atribuídos todos os anos pela Comissão Vitivinícola Regional do Tejo (CVR Tejo), premiaram recentemente empresas e personalidades que se destacaram na região em várias áreas. Entre elas, os enólogos do ano, atribuído à dupla Nuno Faria e João Vicêncio da Enoport Wines. Não tinham ligações às vinhas e ao vinho, mas a relação com o setor mudou tudo.
Como se começaram a interessar pelo vinho? Alguma ligação anterior?
João Vicêncio: Embora na minha juventude tivesse acompanhado e participado nalgumas pequenas vindimas, não havia na família nenhuma ligação a esta área. Olhando para trás, julgo que o interesse despertou quando decidi realizar o estágio de final de curso neste setor. Tive a sorte de conseguir e esse foi o primeiro contacto com este mundo.
Nuno Faria: Não tendo nenhuma ligação familiar ao setor do vinho, o interesse começou quando estava a fazer o trabalho final de curso na Quinta de Pancas em 2002. Foi nessa altura que despertou a [minha] atenção para a viticultura e para a enologia.
Onde cresceram e estudaram?
JV: Sou natural de Sines e fiz o percurso escolar entre Sines e Santiago do Cacém, resumindo, vivi sempre no litoral alentejano até ir estudar para a Escola Superior Agrária de Beja, no Instituto Politécnico.
NF: Nasci perto de Lisboa, cresci em Santa iria de Azóia, Loures. Tendo pouca ligação ao mundo agrário, a formação no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa fez despoletar a paixão pelo setor.
O João em Beja não optou por enologia e o Nuno saiu da área de fitotecnia…
JV: Na altura, as opções eram apenas o ramo animal ou o ramo vegetal, ambas no setor agro-alimentar. A minha escolha foi o vegetal do qual faziam parte algumas disciplinas de enologia e de viticultura. Alguns anos após a conclusão do bacharelato, fiz uma pós-graduação em viticultura na Universidade de Évora e em 2013 obtive o estatuto de enólogo.
NF: Realmente, no meu percurso académico inicial ainda nem pensava que iria trabalhar em enologia. A formação posterior na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica em enologia foi uma necessidade de consolidação do que tinha aprendido e, simultaneamente, a vontade de querer aprender mais. Ter estudado inicialmente em Lisboa e depois no Porto foi por pensar que as realidades seriam diferentes.
Algum enólogo ou enólogos de referência?
JV: Admiro alguns enólogos, não só pelo seu trabalho, mas também pela sua postura no setor. A título de exemplo, posso nomear João Sardinha, Cancela d`Abreu e o falecido João Correia.
NF: Os enólogos que tenho como referências são António Ventura, com quem trabalhei numa fase inicial do meu percurso, e Carlos Eduardo e Osvaldo Amado, com quem trabalhei nesta casa.
Quais foram os vossos estágios e o primeiro emprego? Como foi o processo?
JV: O meu estágio foi realizado na Quinta da Romeira, em Bucelas, sob orientação de Cancela d`Abreu. O primeiro emprego foi em 1995, um género de part-time na já extinta Comissão Vitivinícola de Bucelas, Carcavelos e Colares. Nesse mesmo ano comecei a trabalhar a tempo inteiro nas Adegas Camillo Alves/Caves Velhas.
NF: Foi um bocadinho rápido. Estagiei uma semana antes da vindima na adega cooperativa de Almeirim. E depois comecei a vinificar na semana seguinte na região de Lisboa.
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Qual foi o vosso percurso profissional? Que vinhos destacariam nesse caminho?
JV: É fácil de contar. Iniciou-se numa das várias empresas que deram origem ao Grupo Enoport, na qual fui responsável pela viticultura e pela enologia. Aquando da criação da empresa continuei a ser responsável pela viticultura e na área da enologia apenas pelas vinificações em duas das quintas. Foi por essa altura, em 2006, que tive o primeiro contacto com a região do Tejo na Quinta de S. João Batista que já era propriedade das Caves Dom Teodósio, outra das empresas que está na origem da Enoport. Quanto aos vinhos, não destacaria nenhum em particular, mas antes algumas marcas tais como o Cabeça de Toiro e o Quinta do Boição. Tenho um imenso orgulho em contribuir para seu crescimento ao longo dos anos e, de alguma forma, fazer parte das suas histórias.
NF: Nestes primeiros 20 anos fiz um pouco de tudo no setor, desde vindimas, responsável de engarrafamento, enólogo assistente, laboratório, viticultura e compras de vinhos. O destaque iria para gama Cabeça de Toiro, mas todos são importantes.
Quais foram as principais mudanças no vosso ‘métier’ desde que saíram da formação?
JV: O setor evoluiu bastante nas últimas décadas. Ainda acompanhei o final do grande salto qualitativo que foi dado na enologia nos anos 90, a que se seguiu o início de outra grande evolução, desta feita na viticultura, com a plantação de novas castas, com o foco na qualidade e com o aparecimento de novas ferramentas no âmbito da agricultura de precisão. Esta área mudou bastante nos últimos 30 anos e, logicamente, os processos de trabalho também.
NF: Atenção aos pormenores. As pequenas decisões fazem a diferença.
E no gosto, o que se alterou?
JV: As principais alterações talvez sejam apreciar cada vez mais vinhos com alguma evolução, especialmente nos brancos e, mais recentemente, o gosto pelos rosados que têm feito um caminho fantástico nos últimos anos.
NF: O gosto foi-se alterando. Tenho a noção que nesta fase gosto de alguns vinhos que anteriormente não iria apreciar.
Qual é a vossa casta preferida e porquê?
JV: Nas castas tintas, destacaria o Syrah, que na região do Tejo, nas condições de solo e clima da Quinta de S. João Batista, tem um comportamento muito consistente e com o qual é possível produzir vinhos de grande qualidade, ano após ano. Nas castas brancas, como não poderia deixar de ser, o Arinto, pela minha ligação a Bucelas. É uma casta que naquela região dá origem a vinhos ímpares, com grande frescura e longevidade.
NF: Nos brancos, o Arinto pela sua consistência qualitativa e estou a descobrir as virtudes do Fernão Pires. Nos tintos, Syrah e Alicante Bouschet que produzem vinhos fenomenais em regiões quentes.
Que vinho ou vinhos, brancos e tintos ou outros, lhes dão mais prazer? Fazer e beber.
JV: O prazer de os fazer é o mesmo: sejam eles brancos, rosados, tintos ou outros. No consumo diria que tenho vinhos de época, isto é, com tempo frio tintos rústicos e com pouca ou nenhuma madeira e, com o calor, os brancos com alguma evolução e rosados estruturados e frescos.
NF: Gosto do processo de desenvolvimento de um lote, os ensaios das proporções e perceber o potencial do vinho. Quanto a beber reconheço que sou mais de brancos e rosés.
Dentro dos vinhos o que gostariam de fazer e ainda não fizeram?
JV: Fazer o meu vinho, das minhas vinhas, vinificado na minha adega. É um sonho…
NF: A Enoport tem-me permitido fazer vários estilos de vinhos desde os tranquilos, espumantes, colheitas tardias e licorosos. Gostaria de poder produzir mais vinhos licorosos.
O vinho é mais viticultura ou enologia?
JV: Puxando um pouco a brasa à minha sardinha, diria que o vinho é mais viticultura que enologia. Por mais ferramentas que o enólogo tenha ao seu dispor, é impossível fazer grandes vinhos sem uvas de excelência.
NF: Estão profundamente ligadas. É impossível um bom vinho sem boas uvas. O enólogo tem de ir ao campo ver a vinha, bem como o viticultor terá de provar os vinhos. O vinho é o resultado do trabalho de ambos.
O que lhes parece a "moda" dos vinhos naturais?
JV: Moda sim, mas alguns terão vindo para ficar. Todos aqueles que conseguirem de uma forma consistente levar ao mercado vinhos sem defeitos e com alguma longevidade terão o seu lugar. Haverá sempre consumidores curiosos o suficiente para os comprar e provar. No entanto, julgo que não passarão de um nicho de mercado.
NF: Está a deixar de ser uma moda para ser um estilo de vinhos, mas ainda têm um caminho a percorrer.
Faz sentido a produção biológica?
JV: Neste momento já temos no Tejo cerca de 15 hectares de vinha a entrar no segundo ano de conversão para biológico. No entanto, acho que o caminho não é esse, ou pelo menos não da forma que está a ser conduzido. Nos tempos que vivemos hoje, e tal como em muitas outras coisas, existe muito fundamentalismo e demagogia à volta do biológico. Penso que o mais sensato será uma agricultura sustentável suportada por uma certificação mais abrangente em que poderá fazer todo o sentido incluir algumas das atuais "regras" da produção biológica.
NF: A produção biológica faz sentido, mas como em tudo teremos de ser críticos. O menor uso de recursos possíveis deverá ser imperativo.
O que lhes parece a tendência dos vinhos mais frescos, com menos álcool e, eventualmente, brancos?
JV: São tendências, não passam disso mesmo.
NF: Os vinhos frescos com menos álcool não são uma tendência, mas uma gama de mercado com crescimento.
O quer diriam sobre as diferenças dos vinhos do Tejo quando comparados com as outras regiões?
JV: O Tejo e as suas três sub-regiões muito bem definidas e diferentes entre si, permitem-no ter uma elasticidade que outras eventualmente não terão. Conseguimos produzir diferentes tipos de vinhos, como os de topo com personalidade, tal como conseguimos produzir os de grande consumo com excelentes relações qualidade/preço. Os vinhos do Tejo não ficam a dever nada a nenhuma das outras regiões vitivinícolas nacionais.
NF: Os vinhos do Tejo caracterizam-se por equilíbrio. Têm estrutura, são untuosos e, simultaneamente, frescos com boa acidez.
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Como tem evoluído a região desde que começaram a trabalhar?
JV: A região está a produzir vinhos de altíssima qualidade e nas últimas décadas teve um grande avanço nesse sentido. Mesmo nas sub-regiões mais vocacionadas para a quantidade estão a ser produzidos vinhos excecionais.
NF: Esta região tem ganho protagonismo a nível nacional, mas ainda falta algum reconhecimento internacional. Tem produzido ano após ano vinhos de muita qualidade e a evolução maior terá sido na consistência da qualidade.
O que falta?
JV: A região tem vindo a fazer o seu caminho. Falta muito pouco porque a qualidade está lá. Temos de intensificar a promoção e divulgação de forma que a visibilidade dos nossos vinhos cresça e desperte o interesse do consumidor.
NF: Gostaria que os vinhos fossem reconhecidos pela elevada qualidade intrínseca que apresentam e não pelo baixo valor que temos de vender.
As alterações climáticas notam-se na vinha? De que forma?
JV: É uma realidade e nos últimos anos a viticultura tem-se ressentido. Existem maiores necessidades de rega, temos assistido a quebras de produção por fenómenos extremos de calor, maturações irregulares, vinhos com menos frescura, entre outros aspetos negativos. Ainda assim há um ou outro ponto positivo nesta nova realidade, como por exemplo o facto de haver menos pressão de doenças como o míldio e o oídio, logo menos tratamentos fitossanitários.
NF: Antigamente o calor excessivo com prejuízo acentuado para o produtor não era tão frequente. Temos de pensar o que poderemos alterar na viticultura e na enologia para minimizar estes acontecimentos que decerto serão mais frequentes.
Como é o vosso dia-a-dia?
JV: É passado entre as várias quintas da Enoport a acompanhar todos os trabalhos inerentes à viticultura. Tanto posso estar nos vinhos verdes, como no Dão, no Tejo ou em Bucelas. Por ser a maior das quintas é no Tejo que passo mais tempo.
NF: De manhã começo por provar os vinhos que estão a ser engarrafados, depois provo novos lotes e há ainda o afinamento de outros lotes. Normalmente acabo os dias de trabalho com burocracias, uma vez que este é um setor altamente burocrático.
Como é o processo de criação entre os dois?
JV: Embora ambos tenhamos total abertura para propor, experimentar e fazer, o processo criativo na Enoport é resultado da partilha de ideias dentro de um grupo de trabalho que vai muito além de nós dois.
NF: As nossas tarefas estão divididas. O João tem a responsabilidade da viticultura e vinificação, a minha incide mais na elaboração dos lotes e engarrafamento. Mas estamos permanentemente em contacto e provamos regularmente todos os vinhos da empresa. Discutimos com frequência ideias para novos produtos.
Lembram-se de alguma história que os tenha marcado ao longo da vossa carreira?
JV: Há sempre uma que é inevitável vindima após vindima. Ou porque uma mangueira rebenta ou por uma torneira que deveria estar fechada e não estava, há sempre alguém que leva um banho inesperado de mosto e tão mais engraçada se torna se for de um tinto daqueles bem carregados de cor.
NF: Tenho um filho com 6 anos e quando era mais pequeno me perguntou se me pagavam para beber, ao que eu respondi que sim. A conclusão foi que era sortudo porque me davam dinheiro para comer, bebendo. A minha conclusão é que esta carreira permitiu-me conhecer pessoas altamente dedicadas que todos os dias querem fazer melhor. E gostaria de afirmar que este prémio mais que o reconhecimento do nosso trabalho é o reconhecimento do trabalho de mais de 150 pessoas.
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