O sabor do sucesso dos irmãos Michelin
André e Édouard Michelin só queriam vender pneus para carros. A nomeação dos melhores restaurantes começou por ser apenas um meio para alcançar um fim. E acabou por ser o fim, em si mesmo: o crème de la crème da gastronomia, entregue em Portugal e Espanha a 20 de novembro.
O que é que têm em comum duas coisas tão aparentemente dissemelhantes como pneus e gastronomia? Os pneus são rudes e feios. A gastronomia e o que dela sai pode ser requintado. Tirando os "pneus" que podemos ganhar a la cause de excessos cometidos pela gula, pneus e culinária não têm, à partida, nada a ver. Contudo, tal como sucede em todas os casos de sucesso da história universal, as coisas mais improváveis podem dar origem aos êxitos mais incontestáveis.
O caso Michelin é um desses casos, passe a redundância. Para muitas pessoas, Michelin é imediatamente sinónimo de gastronomia de excelência. Diríamos que exímia. De se lhe tirar o chapéu. De se comer e de chorar por mais. De se pegar no carro e de se percorrer milhares de quilómetros apenas para se degustar um foie-gras brûlé. Mas, na realidade, tudo começou com pneus. Estava-se em 1895 e os irmãos André Michelin e Édouard Michelin, engenheiros e industriais oriundos de uma família rica de Clermont-Ferrand, apresentaram um novo pneu, desta vez para carros, na década de 1890, após terem fabricado pneus para bicicletas e viaturas de tração animal. Os automóveis ainda eram uma raridade nas estradas francesas, pois existiam pouco mais de 2.200 carros em circulação, e, por isso, um negócio de pneus normal nunca teria muita margem para crescer.
A ideia de publicar guias que ajudassem os condutores de carros a desfrutar dos prazeres de uma viagem, incluindo informação sobre onde dormir e o que comer, desde os lugares mais caros aos mais acessíveis, partiu de André Michelin, com o intuito de promover o turismo no seu país, mas que, no fundo, pretendia promover a venda dos pneus Michelin. E assim surgiu o primeiro Guia Michelin, com a famosa capa vermelha. Os irmãos concretizaram com sucesso a ideia de que um guia de hotéis no interior de França encorajaria as pessoas a montarem-se nos seus carros (equipados com pneus Michelin, claro) e a desbravar as estradas. Essa primeira edição, publicada em 1900, consistia numa lista alfabética de 575 páginas de cidades francesas, e as distâncias entre si, permitindo a qualquer condutor encontrar mapas, listagens de bombas de gasolina e oficinas, indicações úteis, como substituir um pneu ou meter gasolina, sugestões para pequenas reparações e enumerações dos melhores hotéis e restaurantes de cada região. O Guia continha os símbolos de classificação dos lugares pelos quais se tornaria famoso e que indicavam os níveis de conforto (do luxo ao acessível) ou a existência de piscinas, jardins, quadras de ténis e ar condicionado. As 35 mil cópias que os irmãos mandaram imprimir referiam-se a França, mas em 1957 a companhia iniciou a publicação dos guias em países da Europa ocidental. O objetivo? Fazer os clientes percorrerem distâncias maiores.
Conta a lenda que André Michelin visitou um representante da marca e viu que ele usava os guias como apoio de uma bancada. Isso tê-lo-ia feito compreender que dificilmente alguém respeitaria qualquer coisa que fosse oferecida. Em 1920, os guias começaram a ser vendidos. O primeiro custava sete francos – atualmente custam cerca de um euro. Em 1933, os irmãos Michelin apresentaram as primeiras listas de restaurantes em toda a França e revelavam o sistema estrelar de classificação de pratos, o qual persiste: uma estrela representaria "um restaurante muito bom na sua categoria", duas estrelas um onde se "cozinha muito bem e vale a pena fazer um desvio para o experimentar" e três estrelas aqueles restaurantes que têm uma "cozinha excecional, digna de uma viagem especial".
O Guia Michelin tem hoje edições em 23 países e é um dos guias de restaurantes mais vendidos do mundo. Opera com base no princípio de que apenas críticas de especialistas anónimos e profissionalmente treinados podem ser confiáveis para avaliações precisas da comida e do serviço de um restaurante. O Guia não se limita a atribuir estrelas. Abaixo dessa classificação existe uma categoria que elege os melhores restaurantes com uma ótima relação qualidade-preço: os prémios Bib Gourmand, cujo nome tem origem na mascote rechonchuda da marca, o Bibendum, vulgarmente conhecido pelo "Boneco da Michelin".
A marca de pneus francesa tem feito, ao longo do tempo, esforços para manter o anonimato dos seus inspetores. Muitos dos principais executivos da empresa nunca se encontraram com um inspetor, sendo estes aconselhados a não divulgar a sua linha de trabalho, mesmo aos familiares. Os inspetores escrevem relatórios que são destilados em "reuniões de estrelas" anuais nos vários escritórios nacionais do Guia, no ranking de três estrelas, duas estrelas, uma estrela ? ou nenhuma estrela (os estabelecimentos que a Michelin considera indignos de uma visita não estão incluídos). Num esforço para promover o que o ex-diretor administrativo dos guias, o francês Jean-Luc Naret, chamou de "melhor compreensão" dos meios e métodos dos guias, a Michelin lançou um site na Internet, Famously Anonymous, para explicar o conceito do inspetor Michelin. Em todo o caso, o anonimato é feroz. Uma exceção foi feita, por exemplo, em 2009, quando foi permitido a um jornalista da New Yorker sentar-se à mesa com uma inspetora do guia de Nova Iorque. A inspetora, que adotou o nome falso Maxime (lá está, o feroz anonimato), respondeu a todas as perguntas que tanta gente quis fazer e para as quais nunca tinha havido resposta. Nomeadamente "quais os critérios" de atribuição ou não das famosas estrelas. Maxime apressou-se a revelar que um inspetor "nunca pediria uma salada e que raramente pedia uma sopa". E continuou: "Nós estamos à procura de algo que realmente teste vários ingredientes de qualidade e, de seguida, algo que seja um pouco complexo porque queremos ver aquilo de que a cozinha é capaz de fazer." E foi assim que a inspetora pediu um foie-gras brûlé.
O cenário encantado que pode parecer a vida de quem faz refeições ou degustações, dia sim, dia sim, nos melhores restaurantes do mundo, é, no entanto, desmontado. Basta fazer as contas para se concluir que, de acordo com o Guia, cada inspetor visita, por ano, mais de 800 estabelecimentos e passa 160 noites em quartos de hotel. Numa entrevista ao Observador, Ángel Pardo, responsável de comunicação do Guia em Portugal e Espanha, descreve os inspetores como sendo "profissionais anónimos apaixonados pela sua profissão (…) com ensinos superiores ou especializados nas áreas de Turismo e/ou de Hotelaria, sendo obrigatório que tenham um mínimo de cinco anos de experiência no ramo".
Em Portugal, o primeiro ‘Guia Vermelho’ surgiu em 1910, com dois espaços, os restaurantes dos hotéis Santa Luzia, em Viana do Castelo, e Mesquita, em Vila Nova de Famalicão. Nessa época, as classificações eram de uma a cinco estrelas e ambos os espaços tiveram uma cada um. Mais tarde, em 1936, quando já estava em vigor a graduação máxima de três estrelas, surge o primeiro duplo estrelado, o Escondidinho, no Porto. O Vila Joya, do chef Dieter Koschina, em Albufeira, é o restaurante em Portugal há mais tempo no guia, somando 22 anos seguidos, 18 dos quais com duas estrelas que ainda hoje mantém. Antes dele, o restaurante Porto Santa Maria, que foi inaugurado em 1947 e que ainda hoje existe no Guincho, esteve 25 anos seguidos na constelação Michelin, de 1984 a 2009. Ainda em relação a Portugal, convém lembrar que os últimos restaurantes galardoados (sim, porque quem ganha a estrela é o restaurante e não o chef, o que explica a manutenção de estrelas quando há mudanças na cozinha) foram o Vista, do chef João Oliveira, em Portimão, e o Gusto by Heinz Beck, em Vale do Lobo. Tudo somado, hoje Portugal tem 23 estrelas Michelin – 18 espaços com uma e cinco com duas.
Ao longo dos anos, outras publicações tentaram desafiar o Guia Michelin, porém sem sucesso. Para compensar a despesa de enviar inspetores para restaurantes em todo o país visitado, os guias rivais eram obrigados a aceitar refeições gratuitas ou a oferecer favores, como publicidade não paga nas páginas dos seus guias. Um século depois de André Michelin e de Édouard Michelin terem criado a sua primeira patente de pneus com os seus apelidos, tornou-se uma das corporações multinacionais de maior sucesso do mundo, uma empresa com três vezes o tamanho da Goodyear. Os lucros da Michelin ajudam a arcar com os custos dos salários dos inspetores de alimentos, orçamentos de viagem e contas de restaurantes. Essa independência, em conjunto com o anonimato zelosamente protegido pelos seus inspetores, é o que concede à Michelin a sua aura de incorruptibilidade.
O chef francês Paul Bocuse, que ajudou a criar uma nova cozinha nos anos 60 e cujo restaurante perto de Lyon ocupou um ranking Michelin de três estrelas por um recorde de 45 anos, confidenciou à New Yorker: "O Michelin é o único guia que conta. Os dias e semanas que antecedem o dia da publicação são fruto de debates intermináveis, especulações e rumores na TV e em jornais sobre quem pode perder e quem pode ganhar uma estrela. Os resultados, revelados no início de março, fornecem tanto um triunfo muito público quanto uma humilhação muito pública para os chefs envolvidos e um aumento ou uma queda correspondente nas receitas dos seus restaurantes."
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