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Isto Lembra-me Uma História: Os ventos sopram contra a Boeing

Num ano - e num mês - em que os incidentes envolvendo aparelhos da gigante norte-americana se sucedem a uma velocidade surpreendente, surge a notícia da estranha morte de um ex-funcionário da Boeing. E não é um ex-funcionário qualquer.

Foto: Getty Images
17 de março de 2024 | Diogo Xavier

"Um movimento muito forte", é assim descrito pelas autoridades o incidente que ocorreu recentemente durante um voo da companhia aérea chilena LATAM Airlines, que ligava Sydney, na Austrália, a Auckland, na Nova Zelândia, antes de seguir para Santiago do Chile. O "movimento muito forte" a que as autoridades aludem terá sido uma espécie de abalo na própria aeronave que causou estragos e danos físicos. Mais de 50 passageiros tiveram de receber cuidados médicos quando o avião aterrou em Auckland. Na maioria dos casos, os ferimentos foram ligeiros, mas 12 pessoas tiveram de ser transportadas para o hospital.

O incidente em causa, que felizmente não teve consequências de maior - o próprio voo chegou a tempo à cidade neo-zelandesa e descolou rumo ao Chile à hora prevista - não seria motivo de grande atenção nem de amplificação noticiosa, não fosse dar-se o caso de envolver um avião Boeing, no caso, um 787-9 Dreamliner. É que este ano de 2024 e, em particular, o presente mês de março têm sido particularmente agitados para a companhia aero-espacial norte-americana. Os incidentes e acidentes envolvendo aviões Boeing nos últimos tempos têm abundado.

A 4 de março, um motor de um Boeing 737 incendiou-se logo após a descolagem em Houston, Texas, obrigando o aparelho a aterrar de emergência poucos instantes depois. A companhia aérea United Airlines justificou o sucedido com a possibilidade de o motor ter sugado e ingerido uma tira de plástico-bolha - daquele que se usa para embalar e proteger objetos delicados e cujo rebentamento das bolinhas dá um gozo tremendo - perdida e esvoaçante na pista, antes da descolagem. Teria sido esse pedaço de plástico a pegar fogo e, consequentemente, a incendiar o motor do avião.

Boeing 737
Boeing 737 Foto: Getty Images

A justificação não é terrível, embora seja rebuscada. Continuemos. Dois dias depois do incidente de Houston, fumo na cabine de um Boeing 737-800 obrigou a uma aterragem de emergência em Portland, no estado de Oregon. Dias mais tarde, um pneu caiu de um Boeing 777-200 segundos depois da descolagem, em São Francisco. O objeto caiu sobre um automóvel, destruindo por completo o veículo - começa a ficar difícil justificar acidentes destes. Esse voo, do qual caiu uma roda do avião, tinha como destino o Japão, mas foi desviado para a vizinha Los Angeles, onde acabou por aterrar em segurança. E depois, no dia seguinte, um Boeing 737 MAX circulou para fora de um corredor lateral, novamente no aeroporto de Houston, tendo ficado atascado na relva. Que se saiba, não há qualquer justificação oficial para o sucedido - e, mesmo que haja, dificilmente será uma explicação lógica. No dia 10, aconteceu o tal "movimento muito forte" entre Sydney e Auckland que obrigou a que mais de 50 passageiros fossem observados por equipas médicas. 

Convenhamos que são muito incidentes para tão poucos dias - 7, no total. E importa lembrar que, no início do ano, a 5 de janeiro, aconteceu o inimaginável a meio de um voo da Alaska Airlines. Depois de ter descolado do aeroporto de Portland, Oregon, o avião perdeu subitamente uma das portas, que saltou, criando um vórtex tão potente que os auscultadores foram arrancados da cabeça da co-piloto, que estava logicamente no cockpit. O ruído do rebentamento da porta foi de tal ordem que os passageiros pensaram que ia ser o fim e que iam todos morrer. Num ápice, onde havia uma porta de emergência, passou a haver um buraco com marcas de destruição, como se tivesse explodido. Apesar do susto, do ruído e da descompressão, os pilotos conseguiram calmamente regressar ao aeroporto de origem e aterrar o avião. As 177 pessoas não sofreram ferimentos graves e não há vítimas mortais a registar.

Alaska Airlines
Alaska Airlines Foto: Getty Images

Passaram dois dias até que a porta do aparelho fosse encontrada no quintal das traseiras de alguém. Pesava 27 quilos e foi levada pelos investigadores que, semanas mais tarde, concluíram que lhe faltavam 4 parafusos de segurança que garantiam a estabilidade e estanqueidade da porta de emergência - estas portas, chamadas "door plug", são concebidas de modo a que, quando é acionada a alavanca de emergência, elas saltem imediatamente do avião, o que acabou por suceder, sim, mas sem que ninguém puxasse alavanca alguma. Por precaução, os Boeing 737 MAX 9 com "door plugs" foram todos mantidos em terra até que pudessem ser devidamente inspecionados pelas equipas responsáveis pela aviação nos Estados Unidos da América (e não só). Os inspetores registaram e reportaram problemas de segurança em outros dois aparelhos. As equipas da comissão concluíram ainda que o avião que perdeu a porta tinha tido problemas de pressão no voos anteriores àquele em que houve o acidente - nos três voos anteriores, as luzes de alarme que alertam para problemas de pressão foram acionadas; não obstante, o aparelho foi sempre dado como apto para realizar o voo seguinte a cada um dos episódios. 

No culminar deste caso, as equipas de investigação vieram queixar-se da "falta de cooperação" da Boeing e de "problemas severos" em relação à manutenção de registos e de acesso a dados. Nomes de funcionários não foram facultados em algumas situações - por exemplo, não há registos que atestem o nome do responsável pela instalação da porta que voou - e os vídeos de segurança que podiam ajudar na investigação do incidente foram estranhamente apagados - ou, melhor dizendo, substituídos, com alguém a sobrepor registos, gravando por cima dos vídeos existentes.

A Boeing está em maus lençois, principalmente por causa do modelo de aparelhos 737 MAX 9. Esses aviões chegaram a estar proibidos de voar durante quase dois anos, depois de dois acidentes, um em 2018, no Mar de Java, outro em 2019, na Etiópia. A empresa sofreu, sem surpresa, graves perdas em bolsa, que só não foram mais graves devido à posição privilegiada que ocupa no mercado da aeronáutica, nomeadamente no que respeita à aviação civil, onde disputa com a airbus a maior fatia de mercado (embora a Airbus seja a maior construtora e fabricante do mundo).

E é neste contexto e perante estas circunstâncias, em que a empresa se mostra muito reticente em partilhar com as autoridades detalhes que envolvem os seus procedimentos e cuidados com a segurança das aeronaves, que acabamos inevitavelmente por nos lembrar da história de John Barnett. Antigo funcionário da Boeing, para quem trabalhou durante 32 anos, Barnett era chefe do departamento de qualidade de uma das fábricas no estado da Carolina do Sul. Depois de se ter reformado em 2017, alegando problemas de saúde, John Barnett tornou-se um whistleblower, vindo a público denunciar más práticas da empresa que durante tantos anos representou e que tão bem conhecia. Segundo Barnett, a fábrica onde trabalhou cometia graves erros de segurança, tais como o uso de peças defeituosas ou a implantação de sistemas de segurança cujo funcionamento deixava muito a desejar. 

As acusações do ex-funcionário à poderosa empresa resultaram, como habitualmente resultam nos Estados Unidos da América, em vários processos judiciais envolvendo ambas as partes, com acusações de um lado e contra-acusações do outro, em que a Boeing se defende do que diz Barnett duvidando das suas competências e o ex-funcionário contra-atacando, dizendo que a Boeing pretende arruinar-lhe a reputação, descredibilizando-o e desacreditando-o, para que o que alega acerca das más práticas de segurança seja desvalorizado e não resulte em consequências para a empresa.

Na semana seguinte àquela improvável sequência de acidentes envolvendo aparelhos da Boeing, e numa altura em que os advogados de John Barnett contra-examinavam o próprio cliente de maneira a dar-lhe credibilidade e a garantir que o que alegava tinha fundamento, o ex-técnico foi encontrado morto, em casa, com um tiro na cabeça. O relatório oficial afirma que se tratou de um suicídio, mas, tendo em conta a conjuntura, são muitas as dúvidas que se levantam e que são, no mínimo, legítimas. Resta-nos esperar que John Barnett não tivesse razão e que não há qualquer tragédia iminente a cruzar-nos os céus.

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