Os novos heróis de ação
Já não há Rambos nem Exterminadores porque o Cinema mudou. Não abdica de criar figuras a que reagimos com mais entusiasmo ou mais desconfiança. Precisa deles para continuar a levar público às salas. E não se incomoda com o “render da guarda”, tanto nas personagens como nos atores que lhes dão vida.
Quando se preparava para completar 65 anos, passando, assim, a ter direito ao passe social dos transportes reservado à Terceira Idade, Sylvester Stallone, que sempre teve mais faro comercial do que talento, decidiu aplicar um novo "golpe do baú". O homem que vestiu a pele de Rocky Balboa por sete vezes e a de John Rambo por outras quatro, o actor que se desdobrou pelos papéis, sempre muito activos, de Raymond Tango, de John Spartan, de Ray Quick (com um belo "prémio" final: a Sharon Stone de O Especialista), de Robert Rath, de Jack Carter ou de Frankie Delano, todos com um body count elevado quando aparecia a palavra Fim, decidiu aplicar, a seu favor, claro, a velha ideia "com a verdade me enganas". Criou uma saga chamada Mercenários, que até hoje rendeu três filmes (2010-2012-2014), aceitavelmente divertidos, em que alguns dos nomes mais destacados do cinema de acção aceitavam reunir-se em mais um momento cheio de balas, de murros, de facadas e de bombas, tudo isto sem esconderem a sua condição de pré-reformados. À sua maneira, Sly juntou muitos daqueles que estavam prestes a passar o testemunho a uma nova geração de heróis – Arnold Schwarzenegger, Bruce Willis, Jet Li, Dolph Lundgren, Eric Roberts (irmão de Julia, mas não se nota nada…), Randy Couture (vindo das Mixed Martial Arts), Mickey Rourke, Chuck Norris, Jean-Claude Van Damme, Terry Crews, Liam Hemsworth, Ronda Rousey (outra campeã das artes marciais), Wesley Snipes e Antonio Banderas "picavam o ponto" nesta hora de saída. Até rapazes de outra criação, digamos assim, como Harrison Ford ou Mel Gibson, fizeram questão de passar por ali, por filmes que ganham maior ironia com o título original, The Expendables, o que, traduzido à letra, significa Os Descartáveis.
De todo o elenco, e ainda por cima em lugar de destaque, só destoava um nome – demasiado novo e demasiado sedento de desafios para aparecer, já, a tratar da conta "poupança/reforma" –, o do inglês Jason Statham, apenas com 43 anos à data da estreia do filme que iniciou esta série. Statham que integrou a selecção de saltos para a água do seu país e que, por três vezes, ficou à porta das Olimpíadas, começou por ser descoberto pelo realizador Guy Ritchie, o ex-Senhor Madonna, num filme chamado Snatch – Porcos e Diamantes em que se juntava a Brad Pitt e a Benicio Del Toro e em que assumia a narração. O grande salto em frente, do ponto de vista da contribuição para as receitas dos filmes, por um lado, e para a sua própria carreira, acontece com Correio de Risco (2002), em que é chamado ao papel de Frank Martin, um "motorista para todo o serviço" que faz questão de cumprir o seu contrato, qualquer que seja o custo. Statham aproveitou esse franchise por mais duas vezes, para outras tantas sequelas em que voltou a repetir a gracinha da primeira: dispensou os duplos na esmagadora maioria das cenas, desde as perseguições automóveis até aos momentos de mergulho. Com alguns outros filmes a valerem êxitos estrondosos junto dos públicos sedentos de "agitação e de molho", casos de Veneno no Sangue, Killer Elite – O Confronto e Homefront: A Última Defesa, Statham representa bem a transição de uma geração de actores para outra. Embora seja também um praticante afincado de artes marciais, não se identifica já com aquele protótipo do justiceiro musculado, uma espécie de missionário sem angústias que, nitidamente, passou de moda.
Hoje, se algo apoquenta os heróis do celulóide (designação aconchegante, capaz de simbolicamente englobar o digital…) é precisamente o facto de serem muitas vezes apontados ao divã, de serem apresentados com traumas e dramas que vão do mais profundo ao mais corriqueiro. Gostamos de pensar que tudo começou com um herói de charneira, de viragem, a braços com a iminência de um divórcio que quer evitar, a todo o custo, e que, em última instância, o empurra originalmente para a condição de herói contrafeito: o inesquecível e inefável John McClane, sempre apresentado a preceito por Bruce Willis. Coube-lhe, se nos restringirmos a estes blockbusters em que a cordialidade fica à porta, ajudar a alterar, decisivamente, o paradigma: menos músculos e mais cérebro, menos bravata e mais instinto de sobrevivência, menos perfeição e mais dúvidas, mais ansiedades, mais "psicologia". Ainda, com Bruce Willis na imagem, uma prova definitiva de que os tempos estão a mudar e que, por mais que alguém possa implorar, não voltam mesmo para trás: em 2018 foi anunciado um sexto filme da saga Die Hard, ainda por estrear. Ora, a respectiva acção tem lugar em 1979 e na actualidade. Aqui, não há problema em darmos de caras com o actor que brilhou em Pulp Fiction e em O Sexto Sentido, hoje um respeitável sexagenário (62 anos). Mas, quando o cenário recua quase quatro décadas, já a coisa faz torcer o nariz a quem dirige e produz, razão pela qual Willis vai dar o lugar a um actor mais jovem que há-de substituí-lo nesse período.
Há bons exemplos de quem nos chega por uma porta e, uma vez "dentro do sistema", segue um caminho no mínimo improvável. Recordemo-nos de uma revelação chamada Matt Damon, exposto aos olhos do mundo cinéfilo com a escrita do argumento (juntamente com Ben Affleck) e com a entrega de um belo papel em O Bom Rebelde. Depois disso, uma sequência bastante calma, com a parte de anjinho inocente em O Resgate do Soldado Ryan, com o seu papel de conciliador em Rounders – A Vida É Um Jogo, passado entre jogos de cartas clandestinos, com um soberbo, mas muito frio, assassino em O Talentoso Mr. Ripley, uma das melhores versões do clássico de Patricia Highsmith, com uma dimensão mística em A Lenda de Bagger Vance e com uma presença secundária em Descobrir Forrester. Não havia nada a fazer prever que este curso, em que toda a violência era do foro do pensamento ou, então, perfeitamente pontual, sofresse tão drástica alteração, tão radical mudança. Fica a ideia de que Damon, hoje com 47 anos e acabadinho de filmar o primeiro filme da saga Ocean, iniciada por George Clooney e Brad Pitt, mas que, agora, será continuada quase exclusivamente no feminino (Ocean’s Eight, com Sandra Bullock, Cate Blanchett, Helena Bonham Carter, Dakota Fanning, Anne Hathaway, Katie Holmes, Rihanna, Sarah Paulson e Olivia Munn, além de Matt) e estreada em Junho de 2018, começou, de repente, a trocar a biblioteca pelo ginásio, a ganhar peitorais e abdominais e a querer afirmar-se como um Action Man e não apenas como um moço simpático. A partir de 2002 e com reincidência mais próxima em 2016, surgiu a avalanche de filmes em que o centro das atenções é ocupado pela personagem de Jason Bourne, uma espécie de "fugitivo" dos tempos modernos, alguém que, além de apontar à liberdade, persegue também durante algum tempo a própria identidade, algo que casa muito bem com a corrida sem travões dos dias que vivemos. Chegou-se a tal ponto que um dos filmes deste franchise, O Legado de Bourne (2012), utiliza o nome mágico no título, não estando presentes na acção, nem a personagem nem o actor – o protagonista está entregue ao actor Jeremy Renner. Damon não se ficou por aqui, se pensarmos noutras fitas com sobrecargas de acção, como Indomável (um western), Os Agentes do Destino (ficção científica). Elysium (guerra e sci-fi) ou The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros (guerra). De alguma forma, fica provada a polivalência de Mr. Damon, que, à força de pulsos – e de punhos… –, foi capaz de ultrapassar a sua cara de eterno menino.
Outro duro que também nos levou ao engano, em determinada altura, foi o gigante escocês Gerard Butler. Poucos se lembrariam da sua participação, menor e secundária, em 007 – O Amanhã Nunca Morre; mais alguns seriam capazes de localizá-lo em Lara Croft: Tomb Raider - O Berço da Vida, a enfrentar uma duríssima Angelina Jolie. Mas, para efeitos de arrumação, a primeira vez que o nome de Butler nos é vendido com pompa e circunstância ocorre na campanha de lançamento de O Fantasma da Ópera de Andrew Lloyd Webber, realizado por Joel Schumacher, em que o homem fez questão de aproveitar a sua experiência como cantor de rock, na sua Escócia natal e numa banda chamada Speed. Aquilo que só com dotes adivinhatórios se poderia prever seria a "curva apertada" e a "via rápida" de Gerard, em direcção aos filmes de acção. Hoje, são poucos os currículos que podem apresentar presenças de primeira linha em tantos campeões de bilheteira, em tantas fitas de culto, em tantos exemplos de predomínio da pancadaria. Senão vejamos: em 2006, ele foi o rei Leónidas dos espartanos em 300; em 2008, encabeça o espantoso elenco (Tom Wilkinson, Mark Strong, Idris Elba) de RocknRolla: A Quadrilha, outro trabalho de Guy Ritchie; em 2009, vestiu de carne e osso uma personagem típica dos vídeo games, em Jogo; no mesmo ano, deixou explodir a sua sede de vingança pela inaptidão da Justiça, em Um Cidadão Exemplar, de F. Gary Gray; em 2011, constrói a figura de um antigo traficante de droga que "encontra" Deus e se torna, à lei da bala, um protector de crianças ameaçadas de genocídio e escravidão, em O Rebelde Salvador, de Marc Forster. Como se não bastasse, encarnou por duas vezes Mike Banning, agente dos Serviços Secretos norte-americanos que, em Assalto À Casa Branca (2013) e em Assalto A Londres (2016), salva a vida ao presidente dos Estados Unidos, numa mão-cheia de ocasiões. A novidade vem a seguir: Banning vai renascer, em 2018, em Angel Has Fallen, cujo enredo nos mostrará que o alvo dos terroristas deixou de ser POTUS e passou a ser, precisamente, o seu anjo da guarda… Se quisermos extrapolar, por aqui se vê também a importância de Butler no ranking dos heróis de acção.
Será justo referir que a polarização de outras eras deu lugar a uma fragmentação na lista de candidatos ao título, além dos já referidos, entre os actuais e não entre os que já passaram os momentos de glória no campo da acção, será injusto esquecer nomes como os seguintes: Clive Owen, apesar de os anos de Rei Artur, Sin City: Cidade do Pecado, Os Filhos do Homem e Killer Elite – O Confronto parecerem já parte de um passado que dificilmente regressará; Michael Fassbender que já provou ter os talentos tão bem distribuídos que consegue conciliar filmes como Fome (sobre o militante irlandês Bobby Sands) ou Um Método Perigoso (sobre Freud e Jung) como fitas que são verdadeiros festivais de "batatada", para não ir mais longe, como Sacanas Sem Lei, Jonah Hex, O Conselheiro ou Assassin’s Creed; Idris Elba, em alta desde que participou na antológica série de TV, The Wire, não deve ser desprezado, depois de deixar a sua impressão digital em 28 Semanas Depois, Gangster Americano, Intruso Suspeito ou The Gunman – O Atirador.
O rol estender-se-á de acordo com as preferências de cada um. Aos irmãos Chris e Liam Hemsworth, a Sam Worthington (mesmo antes de começarem a surgir as quatro-sequelas-quatro que estão previstas para Avatar e que iniciarão o respectivo desfile em 2020), a Channing Tatum (se se dedicar mais ao género), a Jeremy Renner, ao musculado Dwayne Johnson (ou The Rock, como preferirem) ou, se calhar, mais do que a todos estes, a Tom Hardy, que já começa a ser considerado um amuleto por Hollywood, depois de marcar presença – e que presença! – em filmes que foram louvados pela crítica e reconhecidos pelo público, como A Origem, O Cavaleiro das Trevas Renasce, The Revenant: O Renascido e, de uma forma explosiva ao ponto de fazer esquecer Mel Gibson, como Mad Max: Estrada da Fúria. Mas, aqui chegados, outra questão se levanta: será legítima a eliminação sumária, nesta apresentação de candidaturas, do processo que diz respeito a um actor que já vai nos 65 anos, que tem uma longa relação com o drama, mas que protagoniza uma das mais bem-sucedidas trilogias dos últimos dez anos, com cada capítulo a parecer mais "pró-activo", mais requintadamente combativo do que o anterior? O homem em causa chama-se Liam Neeson, é dono de uma carreira com quase 40 anos e nunca andou muito longe da acção, desde Excalibur e Na Lista do Assassino, até à sua passagem pela saga de Star Wars ou pela versão para cinema de Os Soldados da Fortuna, bem como por Non-Stop, um filme de acção e suspense que, de forma magistral, aproveita o ambiente fechado de um avião. Nada disto se compara, ainda assim, com as ondas alcançadas pelo seu papel de Bryan Mills no franchise de Taken (que é como quem diz: Busca Implacável, de 2008, Taken – A Vingança, de 2012, e ainda Taken 3, de 2014), que parece ter caído no goto dos espectadores, muito porque o herói é chamado a distribuir violência sem limites porque precisa de resgatar, ou vingar, a família. Numa época de "vacas magras", os três filmes conseguem um lucro acumulado e conjunto superior a 810 milhões de dólares. E, agora, quem se atreve a deitar fora Liam Neeson?
Convirá atentar-se nesta outra dimensão da realidade, determinante para os passos correntes do Cinema: os seis maiores estúdios lançam, na actualidade, menos 30 por cento de filmes se tivermos em conta os números alcançados há uma dezena de anos. Essa alteração acaba por se reflectir, naturalmente, na concentração de orçamentos em fitas que se entendam representar uma menor margem de risco e que acabam, muitas vezes, por nos recontar, reciclando, histórias, enredos e argumentos que já conhecemos e de que o próprio Cinema já se encarregou anteriormente. Daí, também, o sistemático recurso a adaptações de histórias e de heróis (ou super-heróis) vindos da Banda Desenhada e dos comics norte-americanos. Se dúvidas houvesse quanto à fonte inesgotável que representam, a compra da Marvel (editora de comics fundada em 1939) pelas produções Walt Disney, em 2009, e a série considerável de filmes que daí resultou, chegaria para deixar tudo muito claro. Claro está que neste quadro, calculista e pouco propenso a aventuras (financeiras, bem entendido), o cinema de acção acaba por ser dos menos afectados pelo filtro afunilado que vai recaindo sobre a produção norte-americana.
Não se estranha, por isso mesmo, que actores com outro tipo de registo não hesitem em mergulhar na acção, sobretudo se puderem contar com o papel de (super-)heróis. Veja-se o caso desse portentoso Robert Downey Jr. que não hesitou em cruzar o desempenho, sempre honroso, de Sherlock Holmes, com o vestir da pele (ou do fato, se formos ao concreto) de Tony Stark nos três filmes de O Homem de Ferro. Mas essa tentação nem sequer vem de hoje, se nos recordarmos que até os maiores – Robert De Niro, Jack Nicholson e Al Pacino – puseram o pé em ramo verde, por razões monetárias, por desejo de aumentar o índice de popularidade ou por puro e simples divertimento. Felizmente, todas as conclusões de hoje podem estar ultrapassadas amanhã. Por agora, vai sendo certo que o herói de acção mudou, primeiro com Bruce Willis (ou com John McClane), em que se percebeu que o "bom" poderia "perder", embora tal não acontecesse nunca. Depois, com figuras como Nicolas Cage ou John Travolta, foi dado ao público um outro recado: era possível "ganhar" mais com a atitude, com a pose, do que com a mera exibição e utilização de bíceps. Hoje, o herói que procuramos – e isso poderá ser explicado por psicólogos e sociólogos – é alguém mais próximo de nós, com medos e angústias, com contradições. Mas não deixa, por isso, de ser um herói, que age e nos leva a agir, nem que seja indo ao cinema.
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