Como AkaCorleone criou um “templo” e uma "nova religião em Marvila
A MUST falou com AkaCorleone, alter-ego de Pedro Campiche, o artista multidisciplinar que, durante o confinamento, quis criar uma nova religião. “Todas as coisas pelas quais eu passei na pandemia estão todas espelhadas nesta exposição. O bom, o mau, tudo”, diz.
"Como foi o teu confinamento?" é uma pergunta que se popularizou no último ano. No caso de Pedro Campiche, artista lisboeta que dá pelo nome de AkaCorleone, a resposta pode ser encontrada na Galeria Underdogs, em Marvila, até 31 de julho. A exposição Temple of Light retrata o período passado pelo artista em casa, durante o confinamento, altura em que foi tomado pelo desejo de criar uma nova religião.
A mostra, uma experiência visual e auditiva, inclui ainda um livro, peça que AkaCorleone define como chave para compreender a exposição. "É o que explica o processo do início ao fim. É o que explica o contexto em que é criada esta nova religião, que acaba por ser um diário pessoal de alguém que está a atravessar a quarentena com um relato do que se está a passar. O livro vai revelando que após o processo inicial da pandemia há uma luz, uma epifania, e é através dela que se cria a religião do Temple of Light", diz.
O Pedro foi dos primeiros artistas a expor na Galeria Underdogs, em Marvila. De onde partiu a ideia para, desta vez, fazer da Underdogs um templo?
A ideia partiu de várias situações. É a quarta exposição que faço na galeria Underdogs e para mim o desafio é sempre tentar fazer algo que seja pelo menos novo para mim ou que seja um desafio. Este foi o ponto de partida: como é que eu faço uma exposição que seja diferente das três anteriores que fiz. E isso passava muito por transformar o espaço de alguma forma. A solução que eu encontrei foi escurecer a galeria e criar um ambiente mais imersivo. Com esta ideia de mudar a galeria surgiu a ideia de criar um templo. Depois as peças foram todas encaixando. Desde que a pandemia chegou que estou completamente obcecado com este tema e sinto que fui completamente engolido pelas circunstâncias. O meu trabalho desde essa altura é muito inspirado e até condicionado pelo tema. Já desde o primeiro confinamento que estava a criar peças sem saber um pouco no que viria a dar e acabei por encontrar aqui uma solução para ir buscar várias ideias que tinha. Portanto o Temple of Light é de facto fruto da pandemia. É o ponto de partida desta exposição.
As peças surgiram antes da ideia da exposição ou já a pensar nela?
Mais ou menos. Eu quando trabalho numa exposição a primeira coisa em que tenho de pensar, e nesta em especial, é na história que quero contar. Algo em que esta exposição difere das que fiz anteriormente é que é uma exposição em que realmente eu consegui explorar bastante mais o conceito e o tema. Tudo começou com a ideia do templo e de criar uma nova religião. E depois com isso vieram ideias de peças em específico e de como comunicar esta ideia. Mas a ideia foi: vou criar uma nova religião como consequência da pandemia.
Enquanto artista essa ideia partiu de onde? Do isolamento, de um aproximar da espiritualidade?
A pandemia e o confinamento, especialmente o primeir, mudaram muito a minha forma de trabalhar. Perdi muito trabalho, tive muito trabalho cancelado, surgiu um vazio enorme de trabalho, de ideias, e de facto o processo pelo qual eu passei está refletido nesta exposição. O facto de tudo ter mudado, de virem todas as inseguranças [ao de cima] e de não saber o que é que isto é foi realmente o que inspirou todo o projeto. Portanto, sem dúvida que o início disto tudo foi o início da pandemia e todo o desconhecimento, falta de informação, sentimento de paranoia, de insegurança, de não saber nada do que aquilo era. O facto de ficar sem muita da atividade que eu estava habituado a ter obrigou-me a repensar muito no no futuro. Também me obrigou a sair da minha zona de conforto e a experimentar algo novo. Acabou por ser quase uma residência artística, porque acabei por me libertar dos clientes, dos briefings, de trabalho encomendado, nada disso existia. Tinha realmente muito tempo livre para fazer coisas que já não experimentava ou não fazia há muito tempo porque os últimos anos têm sido sempre [passados a] trabalhar para objetivos muito específicos. Com todo este tempo livre acabei por começar a explorar outras linguagens, outras ideias, que foram ficando um pouco a crescer na minha cabeça e que precisavam de um fim, de uma plataforma para poderem existir. Esta exposição transformou-se nessa plataforma. Todas as coisas pelas quais eu passei na pandemia estão todas espelhadas nesta exposição. O bom, o mau, tudo. É um reflexo mesmo deste período.
Para um artista que passou da rua, do graffiti, para as galerias, onde é que se sente mais livre criativamente?
Onde me sinto mais livre criativamente é sem sombra de dúvidas a fazer exposições. As exposições para mim são incrivelmente importantes por essa razão: porque são um laboratório. Ou seja, onde eu realmente posso sair da minha zona de conforto, trabalhar materiais que ainda não trabalhei, técnicas que ainda não explorei, e realmente fazer algo que as pessoas ainda não esperavam de mim ou não conheciam. Isso é o que realmente me motiva. E normalmente numa exposição acaba por existir este lado que eu chamo de laboratório porque o que eu faço numa exposição é experimentar uma série de ideias e técnicas novas e normalmente as que resultam transformam-se no meu trabalho daí para a frente. Se há uma técnica ou uma ideia que realmente resulta e me dá gozo e me tira da zona de conforto e gosto do resultado, o meu trabalho nos anos seguintes está muito guiado por essas experiências que faço em galeria. O muralismo, mesmo trabalhos comissionados que surgem depois da exposição, normalmente é resultado do que eu gostei ou do que eu acho que resultou numa exposição. Daí eu chamar às exposições laboratórios. É onde eu vejo: isto resulta, isto não resulta, e o que resulta vou continuar a explorar e tentar que cresça. O que não resulta fica por ali.
Hoje quando olhamos para o seu trabalho há um código de cores, há uma estética que já se reconhece. Quando é que acha que se encontrou criativamente enquanto artista?
Houve vários momentos [de viragem]. Embora eu sinta que o meu trabalho não está completamente definido. Ou seja, eu não sinto que tenha uma fórmula e que a partir de agora esta é a minha fórmula e eu vou repeti-la até não dar mais. A minha ideia é sempre a oposta, é [pensar] ok, o que é que eu já fiz e o que é que eu ainda não fiz e o que é que eu posso fazer de novo. Só que, como é óbvio, há momentos e trabalhos em específico que ajudam a definir e a encontrar uma identidade. A primeira exposição na Underdogs chamava-se Find Yourself in Chaos (2014) foi um ponto de viragem no meu trabalho porque, lá está, foi um laboratório em que muitas das peças que eu fiz acabaram por resultar como uma expressão da minha identidade. Quando falamos das cores, das transparências, até mesmo de uma linha estética que hoje talvez seja conhecido por ela, acho que foi consolidada nesta primeira exposição. E depois há projetos que realmente ajudam a definir. O projeto Equality (2020) que fiz para o Festival iminente no ano passado, que está no panorâmico de Monsanto, foi também um ponto de viragem. Foi do ponto de vista estético o caminho que eu descobri com esse projeto que me levou a esta exposição. Ou seja, a génese estética desta exposição começa com essa peça no panorâmico de Monsanto.
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