Enólogos fora da caixa

António Maçanita, o astronauta do vinho

António Maçanita já foi distinguido como Enólogo do Ano e Produtor do Ano, entre outros prémios, mas o que realmente o move é continuar a desbravar novos caminhos. To boldly go where no “enólogo” has gone before!

18 de maio de 2021 | Bruno Lobo

Em fevereiro, António Maçanita viu-se literalmente "obrigado" a entrar numa cuba com centenas de litros de vinho. Vestido a rigor, de fato, gravata e lenço na lapela, ia ser fotografado para a capa da Revista de Vinhos, a propósito da sua eleição com Produtor do Ano. Não hesitou e o resultado revelou o lado mais divertido daquele que é considerado um enfant terrible. Irrequieto e irreverente, por vezes incómodo e até inconveniente, como também parecem pensar algumas entidades que regulam o setor, António Maçanita, com apenas 40 anos, tem uma obra de valor inquestionável - um pouco por todo o país.

António Maçanita
António Maçanita Foto: Arlindo Camacho

Olhando para um mapa de Portugal, encontramos projetos de Maçanita nas três sub-regiões do Douro em associação com a irmã Joana, também ela enóloga. Em Lisboa (Mafra), numa parceria com a Quinta de Sant'Ana. Na ilha do Pico, onde fundou a Azores Wine Company, e foi um dos pioneiros no renascimento da vinha na região. Já em Porto Santo, terra outrora afamada na produção vinícola e cujo panorama atual lhe recorda precisamente esses Açores de antigamente, também está a produzir um vinho que o deixa particularmente feliz: "Uma coisa muito engraçada, ao nível do que fazem de melhor nas Canárias, com a casta Listrão." Depois, está na Região dos Vinhos Verdes, mais uma vez com uma produção original - "nada de Alvarinhos" -, feita a partir de vinhas velhas e "sem eletricidade, como antigamente". Mas alerta: "é um vinho fino, nada de coisas turvas. A inspiração é tradicional, mas o conhecimento técnico e científico é de agora." Também já andou pelo Algarve, onde gostava de voltar, desta vez "com tempo, pegando numa vinha velha de Negra Mole, e recuperando-a." [Não se preocupe se nunca ouviu falar na casta, não está sozinho, mas é uma das mais importantes da zona e, dizem, a segunda mais antiga de Portugal.] Finalmente, António está no Alentejo. A base. Foi aqui que tudo começou, há sensivelmente 17 anos.

Sem ligações familiares ao vinho, nem terras onde produzir, tem sido um percurso notável com, curiosamente, um início muito pouco auspicioso. O primeiro vinho Maçanita foi o Preta, ainda hoje o topo de gama, mas em 2004 "não houve um único crítico que lhe tenha atribuído mais de 15 pontos. Isso não tem o nosso vinho menos pontuado hoje em dia!", conta. Com vinte e poucos anos, o menosprezo abalou algumas das certezas próprias da juventude, mas graças à vitória num Internacional Wine Challenge, em Londres, rapidamente se recompôs. "Só depois desse sucesso internacional é que o vinho começou a merecer outra atenção por cá, e aprendi então uma lição muito importante: não podemos fazer vinhos para a crítica. Devemos fazer o melhor que soubermos, e acreditar que alguém há de perceber."

Perto de Évora, transformou o Paço do Morgado de Oliveira, um solar do século XIII, numa adega moderna com vista ao enoturismo
Perto de Évora, transformou o Paço do Morgado de Oliveira, um solar do século XIII, numa adega moderna com vista ao enoturismo

Recentemente adquiriu, perto de Évora, o Paço do Morgado de Oliveira, um dos mais extraordinários solares de Portugal com raízes no século XIII. António Maçanita construiu uma adega moderna, eficiente e funcional, e tem vindo a recuperar o edifício histórico, bastante degradado. Para obviamente explorar como enoturismo. Nos terrenos da herdade, plantou várias parcelas que começam a dar os primeiros frutos e, entre eles, está o vinho que tem estado a provar com evidente orgulho, enquanto decorre esta entrevista.

A tecnologia é uma coisa terrível: permite-nos ter uma conversa à distância, entre Lisboa e o Alentejo, com uma clareza e uma nitidez quase iguais a partilhar a mesma sala, mas quando o entrevistado aproveita para ir provando um vinho novo - nunca lançado para o mercado - o entrevistador está em clara desvantagem e nem o cheiro consegue sentir…!

Na ilha do Pico, onde fundou a Azores Wine Company, e foi um dos pioneiros no renascimento da vinha na região.
Na ilha do Pico, onde fundou a Azores Wine Company, e foi um dos pioneiros no renascimento da vinha na região.

Sempre no Alentejo, investiu também numa velha vinha, no sopé da Serra d’Ossa, onde já os monges faziam vinho na Idade Média. Daí o nome, Chão dos Eremitas. Por aqui encontrou várias castas de encepamento antigo, que adora explorar: Trincadeira-das-Pratas, também conhecida por Tamarez, Alicante Branco, Tinta Carvalha ou Moreto são castas raras que elegeu para transformar em vinhos monocasta - e que lhe valerem alguns desentendimentos com a CVRA. "Sou o primeiro a admitir que a Tinta Carvalha não faz aquilo que agora entendemos como um vinho típico alentejano, mas isso resulta de uma alteração dos últimos 50 anos, em que o mercado queria mais cor, mais álcool e concentração. Por isso foram introduzidas castas estrangeiras que traziam essas características, mas este encepamento atual do Alentejo tem pouco a ver com o que era há 50 ou 100 anos.", explica.  "Não entendo como um Syrah pode ser considerado um típico alentejano e um Tinta Carvalha, casta que já se perdeu a conta de quando apareceu não tem o mesmo estatuto. Não podemos estar dependentes de um conjunto de provadores para decidir o que é ou não Alentejo." É por isso que António recorda com evidente emoção o telefonema de um senhor de 70 anos, que viu no Tinta Carvalha um vinho que lhe lembrava os que o seu avô fazia.

Vinho Tinta Carvalha
Vinho Tinta Carvalha

Nos Açores teve um choque parecido, quando lançou o Isabella, cognome "a Proibida", precisamente porque se trata de uma casta impedida na produção de vinho. Mais uma vez, "algo que não se compreende", refere, apontando conhecimentos científicos completamente errados para essa proibição - e de várias outras castas europeias - decretada há cerca de 100 anos". E acrescenta: "O Isabella pode estar na carta de restaurantes três estrelas Michelin nos Estados Unidos e no Canadá. Os críticos do lado de lá podem recomendá-lo, como fez o The New York Times, e não podemos vendê-lo cá?"

"Existe tanto disto em Portugal", desabafa. "Dá-me muito mais gozo fazer vinhos assim do que 100 mil litros de um vinho normal. Esta nossa filosofia não é aconselhada por nenhum manual de gestão. Seria muito mais fácil focarmo-nos em duas ou três marcas e tentar fazer volume, mas nós somos assim, não há muito a fazer. O meu desejo é que quando alguém pegue numa garrafa minha perceba que o que tem não é apenas mais um vinho, igual ao de qualquer um, mas onde existe uma ideia única."

E com isto, bebe mais um golo do novo vinho, que só vamos conseguir provar este verão, talvez em julho. Chamar-se-á Morgado de Oliveira, um monocasta 100% Arinto "com acidez e textura impressionantes".

Saiba mais António Maçanita, Lisboa, Revista de Vinhos, Portugal, vinicultura, vinhos, excelência
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