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Isto Lembra-me Uma História: Paul Schrader e uma mão cheia de nada

Um filme que lembra outro filme. Dois realizadores que podiam ser irmãos. Gémeos. Infelizmente, não podem ser, uma vez que se trata da mesma pessoa. É tudo lamentável.

Foto: IMDB
18 de dezembro de 2023 | Diogo Xavier

"Paul Schrader", lembro-me de ter pensado, "conheço o nome" - mas não sabia ao certo de onde nem o porquê de conhecer. Não dei muita atenção nem suficiente importância: estava na sala de cinema, bem instalado na minha cadeira, o anfiteatro estava pouco mais do que vazio, seríamos seis a oito pessoas, talvez, numa plateia capaz de levar talvez trezentos indivíduos. Era uma segunda-feira pacífica, era um daqueles serões que até apetece. Não comprei pipocas - não porque não goste de pipocas, mas porque me incomoda o barulho, o cheiro e a sujidade que ficam no fim. Estamos ali para ver filmes, para apreciar a arte nobre de fazer cinema, não para nos entretermos como se estivéssemos numa feira de verão, distraídos com os sons, as luzes e os aromas de todo um universo em movimento, kitsch, imparável. Estas ocasiões, cada vez mais raras para mim, infelizmente, exigem respeito. Nada de pipocas, tudo pelo cinema.

"Schrader, Schrader, Schrader", murmurava eu já depois dos créditos iniciais, em busca da razão de saber tão bem aquele nome, como se o conhecesse perfeitamente - só que sem lhe conseguir chegar completamente, como se pairasse num plano mais elevado, inacessível: o plano onde a nossa memória não consegue ascender porque tem mais que fazer e agora é preciso prestar atenção à história porque acaba de entrar em cena a Sigourney Weaver e quem, como eu, tem Sigourney Weaver no topo da consideração depois de Alien e suas sequelas legítimas - só as legítimas (e nem todas, porque aquele do Jeunet é um desastre) - estagna diante dela e para para ouvir. E ouve o quê? Uma banalidade inane, sem ponta por onde se lhe pegue, em que as próprias falas pareciam inseguras, talvez inadequadas, possivelmente inconsistentes - os próprios tempos de fala eram erróneos, trôpegos, descompassados.

Dias mais tarde, quando, por curiosidade, fui ler críticas a O Mestre Jardineiro, o tal filme de Paul Schrader, fui informado pelos especialistas cinéfilos de que não se tratava de mau desempenho e, muito menos - longe disso! -, de má escrita ou má realização. Pelo contrário, era, isso sim, uma grande ensaio dramático acerca da interpretação, do desempenho da palavra, da contenção das emoções e do evitar do gasto excessivo - exceto no tempo, porque nesse filme de quase duas horas durante as quais pouco acontece (e em que o que acontece parece pouco plausível, ou desajeitado, ou forçado, ou simplesmente irrelevante), o tempo é esbanjado em hesitações, respirações e pausas, como se a audiência fosse compelida a assistir contra-vontade ao desabrochar e florescer das plantas de que Joel Edgerton cuida no papel de Narvel Roth, até que todos na sala percebam definitivamente a mensagem que Paul Schrader quer fazer passar: a vida é feita de ciclos que se fecham e cuidar das flores é acreditar no futuro

Tudo muito filosófico, tudo muito poético. Mesmo quando as abundantes tatuagens do protagonista começam a ser reveladas - suásticas, símbolos das SS, por aí fora, num exibicionismo tão ostensivo, tão parolo e tão caricatural que somos levados a pensar se aquele antigo neo-nazi terá feito um implante cerebral depois de ter deixado de ser nazi e ter passado para o lado do Bem, o lado de cá, aquele onde se dedica às flores e a plantar sementes na Sigourney Weaver às quintas-feiras, depois do jantar. Depois, e por causa de certas alterações nas refeições semanais com a patroa, Narvel Roth vem a arranjar problemas: a moça com quem se envolve, e que é mestiça (obviamente, ou a redenção do ex-neo nazi não estaria completa), tem problemas com drogas, com o ex-namorado, que é drogado e traficante de droga, e ainda com a tia avó, que é precisamente Sigourney Weaver. Tudo perfeitamente normal, tudo completamente plausível, natural, acidental, praticamente orgânico. E tudo isto sem que os diálogos, o diário de Narvel ou a linha narrativa a que o espectador é exposto consigam explicar ou conferir alguma lógica ao que quer que seja: tudo isto acontece como acontecem os sorteios da lotaria, ao calhas, aos trambolhões e inesperadamente.

E foi então que eu pensei "este filme lembra-me aquele que é uma grande seca, O Contador de Cartas (2021)" - e fez-se luz: a-ah! Esse também era do Paul Schrader. Embora fosse menos mau, não deixava de ser um filme penoso, com um protagonista de enorme potencial, ainda por cima interpretado pelo enorme e brilhante Oscar Isaac, só que padecendo exatamente destes mesmos males: cadência arrastada e forçada, tiques inexplicados e ilógicos, uma mensagem pobre com pretensões filosóficas e profundas, um vazio de ideias surpreendente, já que as premissas e pressupostos da história eram riquíssimos, cheias de potencial e com inúmeros caminhos por explorar - e que assim ficam: virgens, inexplorados.

Paul Schrader desmascara-se a si mesmo a cada filme que realiza. Vai piorando, vai mostrando a indolência cinematográfica que o vem caracterizando há já algum tempo e de onde se salvam raríssimas exceções, como Fé Corrompida (2017), que está alguns patamares acima desta dupla preguiçosa e facilitista, feita para colher encómios de críticos que terão, certamente, cristalizado a figura de Schrader nos argumentos brilhantes que escreveu no passado - mas num passado muito longínquo -, de entre os quais se destacam algumas histórias que assinou para que Martin Scorsese realizasse. À cabeça, obviamente, estará Taxi Driver (1976). Só que este Schrader, estes diálogos de Schrader, estas ideias básicas de Schrader, tudo isso mudou. Pode-se dizer que evolui, se considerarmos que a evolução pode ser negativa. É sintomático quando uma história é tão má e tão pobre que faz lembrar outra, igualmente má e pobre, e no momento "Eureka!" concluímos "ah, mas é claro: o filme é do mesmo realizador, aquele tipo que faz cinema aborrecido e pretencioso, mas a quem a crítica gosta de elogiar gratuitamente". Daqui não leva gorjeta.
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