Isto Lembra-me Uma História: De Mónica a Joana, os homicídios sem corpo
O juiz da opinião pública decidiu e parece tê-lo feito em sintonia com a justiça a sério: Mónica Silva foi assassinada pelo ex-companheiro. Só falta que se lhe descubra o cadáver e se prove que está, de facto, morta.
"Eu não lhe fiz mal, eu só a matei." A frase, célebre e infame, terá sido pronunciada, segundo documentos oficiais e autenticados pelo Ministério Público, por João Manuel Domingos Cipriano. O homem tê-la-á pronunciado durante um dos inquéritos da investigação à suposta morte de Joana Cipriano - Joana Isabel Cipriano Guerreiro -, desaparecida a 12 de setembro de 2004 em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas. A resposta de João Cipriano, "eu não lhe fiz mal, eu só a matei", foi obtida no decorrer de um interrogatório quando um dos inquisidores lhe perguntou o seguinte: se João abusara sexualmente de Joana, sua sobrinha, de oito anos de idade. Joana era filha de Leonor Maria Domingos Cipriano, irmã de João.
A tese da Polícia Judiciária acerca do caso do estranho, misterioso e indecifrável desaparecimento da pequena Joana assentava no pressuposto de que a criança teria sido morta. Os responsáveis pelo assassinato seriam Leonor, a mãe, e João, o tio, ambos Cipriano de apelido. Na base do crime hediondo estaria, supostamente, o facto de a pequena Joana ter apanhado a mãe e o tio em flagrante enquanto estes mantinham relações sexuais incestuosas. Tudo isto já em pleno século XXI e nos arredores da cidade de Portimão, no Algarve, ou seja, não se trata de um caso que remonta a uma era antiga e obscura ocorrido num lugar recôndito e inacessível.
Tanto Leonor como João Cipriano negaram sempre e com veemência a autoria de qualquer crime. Isto é, sempre, exceto nos interrogatórios da Polícia Judiciária - mas durante esses, alegaram os alegados homicidas, estavam sob coação física e no limiar da tortura: segundo os irmãos, as confissões acerca do homicídio da pequena Joana foram obtidas debaixo de violência física e psicológica. Sem corpo e assentando toda uma tese de acusação em suposições e provas vagas - objetos contendo sangue de Joana e pouco mais -, além de uma insuportável falta de explicação para o súbito desaparecimento da criança, que não deixou rasto substancial, além das gotas de sangue na esquina de uma mesa da sala.
Muito se especulou acerca do caso, na altura. Numa das confissões, João Cipriano diz ter cortado o corpo já de si pequeno da pequena Joana em pedaços ainda mais pequenos. Há quem acredite que esse corpo despedaçado, esquartejado, praticamente desfeito, foi posteriormente dado de comer a uns porcos das redondezas que, esfomeados, trataram de apagar o rasto de Joana. Leonor e João Cipriano acabariam por ser condenados a 16 anos de prisão por tribunal de júri pelas acusações de homicídio e ocultação do cadáver da criança. A 11 de março de 2019, João Cipriano foi libertado da prisão, cerca de um mês depois de a sua irmã ter saído também da cadeia. Tanto um como o outro afirmaram, na ocasião da saída de cada um em liberdade e com grande veemência, que acreditavam que a pequena Joana Cipriano estaria viva. João, à saída do estabelecimento prisional da Carregueira, onde cumpriu pena durante década e meia, garantiu ainda nunca ter dito em tribunal a famosa frase, "eu não lhe fiz mal, eu só a matei".
É-me impossível não recordar este caso num momento em que as autoridades, a comunidade local de Murtosa, no distrito de Aveiro, e jornalistas e telespectadores de canais noticiosos acompanham avidamente todo e qualquer desenvolvimento relacionado com o caso do misterioso desaparecimento de Mónica Silva, uma mulher que saiu grávida para se encontrar com o seu ex-companheiro e provável - segundo as autoridades - pai da criança que trazia no ventre, e que nunca chegou a casa.
O desaparecimento de Mónica ocorreu a 3 de outubro. Mónica saiu para se encontrar com Fernando Valente. Levou consigo as impressões de uma ecografia. A certa altura, terá avisado os filhos - um de 12, outro de 14 anos - que ia regressar a casa. Mas depois nunca voltou. Desapareceu. O desaparecimento foi sublinhado pelo facto de o telefone de Mónica ter sido desligado nesse dia. No dia seguinte, o mesmo telefone voltou a ser ligado. O sinal foi detetado muito longe dali, algures no concelho de Cuba, no Baixo Alentejo, distrito de Beja; ao mesmo tempo, o sinal do telefone de Fernando Valente foi detetado a mais de 400 quilómetros de distância, em Vila Nova de Gaia. O que terá acontecido a Mónica?
As autoridades, bem como a opinião pública, já terão tirado as suas conclusões - Fernando matou Mónica - e tomado a sua decisão - Fernando tem de ser julgado e preso pela morte de Mónica. A população de Murtosa mobiliza-se, agora, em buscas desesperadas pelo corpo de Mónica nas matas da zona. De cada vez que surge um novo indício - um pedaço de metal que podia fazer parte do aparelho dentário; um tapete desaparecido de uma outra casa de Fernando, que talvez tivesse vestígios de sangue; um saco atirado para a mata que pode conter salpicos de sangue, e esse sangue talvez seja de Mónica -, o povo mobiliza-se, os jornalistas alinham-se, armados de câmaras e microfones apontados ao vazio, ao abstrato, ao vago, ao desinformado, ao especulativo, àquilo que cada um acha, ao que o cidadão médio sofre por causa de tão triste desaparecimento, agravado pela dor dos filhos que cá ficam e ainda mais por aquele que foi impedido de nascer; as autoridades, confusas ou não, perdidas ou não, desorientadas ou não, compactuam, deixam correr, deixam rolar, que se dane, o que importa é que haja um culpado, mesmo que não exista um corpo, um cadáver ou, em último caso, sequer um homicídio.
Não me interpretem mal: qualquer pessoa de bom-senso tenderá a concordar que, sim, Fernando Valente é suspeito, tem motivos para ter feito o que quer que seja a Mónica e, na verdade, Mónica desapareceu repentina e misteriosamente depois de ter estado com ele. Isto é o que sabemos e é a partir daqui que a nossa imaginação, mais ou menos fértil, mais ou menos mórbida, irá tecer as linhas com que se cose toda esta história macabra. Mas faz-me espécie que se procure mais insistentemente culpar e prender alguém do que se pretenda esclarecer o melhor possível, e para lá de todas as dúvidas, o que poderá ter acontecido a Mónica Silva. É quase como se a opinião pública desejasse que lhe tivesse acontecido o pior para que o julgamento leviano do criminoso acabasse por bater certo e isso viesse trazer-nos a todos alguma paz, alguma satisfação. Pela minha parte, nada me traria mais paz e satisfação do que uma notícia qualquer a dizer que Mónica fora encontrada a tomar o pequeno-almoço tranquilamente numa praia da Costa Nova, numa manhã de sol e frio - de preferência, na companhia de Joana Cipriano, adulta e feliz.
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