Isto Lembra-me Uma História: O Algarve e o pequeno dinheiro local
As queixas sucedem-se e as notícias repetem-se: os portugueses deixaram de gostar do Algarve e andam a gastar dinheiro noutras paragens. Talvez exista para isso uma boa explicação - e uma explicação simples.
Uma recordação que guardo com muita clareza dos tempos cada vez mais distantes - e cada vez mais revestidos de um manto surrealista, como se uma entidade externa e superior, capaz de coordenar o tempo e o destino, tivesse chegado e dito "alto, vamos fazer uma pausa absurda" - da pandemia e dos confinamentos. Quando foram introduzidos os primeiros milímetros de afrouxamento às severas medidas de contenção do vírus infame, os primeiros visados na economia nacional pelas mais urgentes medidas de salvamento foram justamente os negócios de restauração.
Digo "muito justamente" não de um modo leviano: num tecido empresarial composto maioritariamente por micro e pequenas empresas, sendo estas na sua maioria ligadas aos serviços de restauração (cafés, restaurantes e snack-bars), importava - urgia! - garantir que não se atingia o colapso. O fim dessas empresas e todas as dificuldades que elas enfrentassem, e enfrentaram, durante esse período duríssimo para a economia nacional - e global - teriam inevitavelmente repercussões na vida de todos nós, uma vez que o próprio sistema seria abalado por fenómenos trágicos de consequências muito difíceis de digerir e ainda mais de contrariar. Às falências em massa seguir-se-iam o desemprego em larga escala, a falta de capacidade do Estado para apoiar indivíduos e famílias que entretanto estariam em dificuldades - e tudo o que acontece a partir daí e qualquer sociólogo do século XXI saberá explicar com muito mais propriedade do que eu, mas que poderia incluir, por exemplo, um aumento da pequena criminalidade (porque o desespero transforma as pessoas), a desvalorização abrupta da mão de obra e a perda de direitos básicos que hoje temos como fundamentais para qualquer trabalhador.
Uma das outras potenciais consequências desse colapso dos pequenos estabelecimentos seria, pelo contrário, não do foro económico, mas antes do emocional. Certas pessoas esquecem-se muitas vezes - demasiadas vezes, possivelmente embrutecidas pelos números, pelas tendências e pelas estatísticas - que há um peso grande, e se calhar imensurável, do lado emocional numa economia, sobretudo quando falamos do consumo privado. Mas a verdade é que um indivíduo - cada indivíduo - dispende o seu dinheiro de acordo, na maioria das vezes, com o seu gosto e as suas preferências, pelo que a satisfação emocional é não apenas o objetivo último de uma compra, mas também um ingrediente essencial a todo o processo de uma aquisição. Os cuidados do atendimento, a atenção que se recebe, o acompanhamento de proximidade, tudo isso é de uma valor inestimável para o sucesso de uma transação, seja ela qual for.
E é neste ponto de seja qual for a transação que nem sempre o fornecedor de um serviço ou o vendedor de um produto falham. Sabemos que, à partida, a compra de um relógio de luxo, de um imóvel ou até de um automóvel serão merecedores de cuidados e atenções quase ao nível do babysitting, mas quantas vezes assistimos a maus atendimentos e ações e preços injustificados quando lidamos com os pequenos serviços do dia a dia, com as pequenas compras, aquelas que envolvem o dinheiro pequeno, se lhe podemos chamar assim?
Voltemos ao início e à recordação clara daqueles tempos da pandemia em que os estabelecimentos foram piedosa e justificadamente autorizados a proceder à venda ao postigo - a expressão será inesquecível, pelo menos para mim. Nessa altura, assistiu-se - ou, pelo menos, eu assisti, na minha vizinhança e redondezas - a verdadeiros movimentos sociais espontâneos de pessoas que decidiram fazer compras, não tanto pela necessidade, mas por solidariedade, por saberem que encomendar um prato aqui fazia diferença, que levar um café de acolá tinha importância. As pessoas mexeram-se para que a economia não parasse e para que os seus estabelecimentos pudessem sobreviver. Faço aqui um pequeno à-parte, porque temos muitas vezes de nós, portugueses, a ideia de que somos muito individualistas e que nos regozijamos com o insucesso do vizinho: pois, desenganem-se, fomos um povo muito digno e fraterno, unido em torno de uma causa maior, que foi a saúde económica de um país inteiro.
Contudo, houve algumas nuances. Não tenho dados estatísticas que sustentem o que digo, mas tenho a memória desses tempos e dos que se lhes seguiram, e posso assegurar que vi fechar alguns estabelecimentos, da mesma forma que vi outros não só sobreviverem mais ainda prosperarem, tendo saído da crise mais fortes e robustos do que eram quando a crise lhes tinha chegado. E constatei também que havia um padrão: os estabelecimentos que, antes da crise, souberam cuidar e preservar a clientela local, não os trocando pelos novos clientes trazidos na enxurrada turística, foram alvo de uma muito maior atenção solidária por parte dos que cá estavam na hora do aperto. Os outros, aqueles que quando os cruzeiros começaram a atracar em Lisboa começaram a vender águas com gás a três euros e cafés a dois, tiveram como destino o desinteresse de uma população a quem não diziam nem nunca disseram nada. E isto mostra-nos que, mesmo voltando-nos para o turismo, devemos sempre continuar a prestar atenção ao nosso público mais próximo, que é aquele que permanece, seja qual for o fenómeno que enfrentemos - e certamente haverá no futuro novos fenómenos que contrariarão a lógica do dinheiro rápido e fácil vindo dos bolsos de quem viaja em low-cost ou a bordo dos monstruosos navios de cruzeiro.
Eu não percebo nada de economia nem de finanças, nem sequer sou dos números, ignoro o que seja uma estratégia de marketing, um público alvo, uma tendência de mercado ou até mesmo a gestão dos recursos humanos, mas acredito que há certas coisas que podiam perfeitamente ser analisadas com base no bom-senso - e depois, então, chamava-se os especialistas. Enquanto não chamamos os especialistas, aqui fica a minha análise de treinador de bancada: toda esta história vem a propósito das notícias que vamos recebendo do que está a acontecer este verão no Algarve. Sim, lembra-me esta história da pandemia. Quando leio que há estabelecimentos em dificuldades e na iminência de fechar portas porque não têm clientes portugueses, pergunto-me: será que se houvesse clientela estrangeira, essa falta dos portugueses seria sentida? Ou sentem agora a falta do cliente nacional porque aqueles que, durante décadas, preferiram os trocaram agora por outros mercados, mais competitivos, mais apetecíveis, possivelmente até com melhores condições de acolhimento e mais atenção prestada a quem lá deixa o pequeno dinheiro?
É que me custa saber destas queixas vindas de uma indústria que nos últimos largos anos tem transformado a oferta portuguesa em, por exemplo, hambúrgueres e pizzas, caril de camarão, chop suey e tostas mistas. Há uns tempos, em Lagos, assisti à venda de doses de sardinhas - cinco sardinhas - a 15 euros. O prato médio no centro de cidades como Portimão ou Albufeira deve rondar os treze, catorze euros. Uma garrafa de vinho, que no supermercado custa não mais que cinco euros, é em qualquer esplanada vendida a dezoito. Diante desta realidade, sinto que estes estabelecimentos não estão a trabalhar para mim nem dispostos a tratar-me bem, a começar pelo facto de que me tentam enganar. Porquê? Porque não se importam comigo, porque estão habituados a ter dinheiro de outras origens, possivelmente menos exigentes, ou apenas menos conscientes da realidade deste país.
Acontece que eu, como muitos outros, tenho essa consciência e conservo alguma exigência na hora de abdicar do meu pequeno dinheiro em troca de um pequeno serviço ou de um pequeno produto. E se esses, por alguma razão, não me satisfazem, eu pego no meu pequeno dinheiro e levo-o para outras paragens onde sinto que ele tem uma melhor correspondência com a minha expectativa. É triste que a indústria no Algarve atravesse dificuldades, mas a debandada dos portugueses é só uma consequência natural de décadas e décadas de falta de cuidado e de atenção para com o público local. All-Garve, it’s not me, it’s you.Isto Lembra-me Uma História: Lisboa, it’s not you, it’s us
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