Prazeres / Sabores

Foi na casa onde nasceu que Nacho Manzano abriu um restaurante com três estrelas Michelin

O chef espanhol foi convidado para tomar conta dos restaurantes do hotel Tivoli Kopke, em Vila Nova de Gaia. Cresceu, viveu e trabalha numa pequena aldeia nas Astúrias.

Foto: DR
13:27 | Augusto Freitas de Sousa

Nacho Manzano cresceu numa casa e numa "loja" que os pais tinham em La Salgar, em Arriondas, uma povoação nas montanhas das Astúrias. Com apenas 23 anos, em 1993, fez algumas obras e abriu o restaurante Casa Marcial com as irmãs. Mais tarde, abriu restaurantes em Gijón e Oviedo, e um hotel com vista para os Picos da Europa. Chegou agora a Portugal e vai tomar conta dos restaurantes do hotel Tivoli Kopke em Vila Nova de Gaia. Na sua aldeia, ostenta uma placa na porta da Casa Marcial com três estrelas Michelin e uma estrela verde. Mas a gastronomia continua a basear-se na ideia que teve quando abriu o restaurante: cozinha com base na tradição, autenticidade e proximidade.

A Casa Marcial, onde mantém o restaurante com as três estrelas Michelin, é também a casa onde nasceu, cresceu e viveu com os seus irmãos?

Sim. Crescemos aqui como uma família normal numa das muitas pequenas aldeias das Astúrias. Os meus pais tinham um bar e uma loja, onde faziam muitas coisas. Era um sítio onde se cobriam as necessidades sociais da época. Nascemos e crescemos num sítio muito humilde, onde se vendia de tudo, desde uma camisa a um vinho e, de vez em quando, também se fazia uma refeição por encomenda.

Casa Marcial
Casa Marcial Foto: Siro Garcia

Em algumas aldeias portuguesas chamavam-se "vendas", tinham um pouco de tudo…

É verdade. Vendíamos comida, sal, açúcar, um pouco de tudo: azeite, bebidas, mercearia, drogaria. Aquilo de que precisavam os cidadãos que viviam nas aldeias.

Marcial, o seu pai, e Olga, a sua mãe, trabalhavam ambos na aldeia?

Exatamente. Tínhamos quatro ou cinco vacas, porcos, fazíamos alguma agricultura, o bar, e fazíamos sidra, como se diz aqui nas Astúrias, um "Chigre".

São quatro irmãos que trabalham nos negócios da família?

Três irmãs e eu. A mais velha, Olga, a Esther, que é cozinheira como eu, e a minha irmã mais nova, a Sandra, que é a chefe de mesa. Também temos uma empresa de catering e vários restaurantes, mas é na Casa Marcial que passamos mais tempo, o que nos ocupa mais.

Passou a sua juventude na aldeia?

Sim. Era uma aldeia muito pequena. Quatro casas e, a meio quilómetro, há outras cinco ou seis, e a dois quilómetros há outro grupo. Foi uma infância feliz, mas muito rural. Num local onde se criavam porcos, onde se tinha uma espingarda de madeira para brincar aos cowboys e uma fisga. Íamos para a escola em Arriondas, de autocarro, todos os dias, que ficava a cinco quilómetros.

A adolescência também foi por lá?

Ajudava o meu pai um pouco em casa. Fazia um pouco de tudo. Não era um bom aluno. No início e meados dos anos 80 começou-se a preparar refeições. A cozinha chamava-me a atenção e comecei a gostar muito.

Cozinhava alguma coisa?

Fazia um prato quando tinha 13 anos que continuamos a manter na Casa Marcial como aperitivo, e também o servimos nos nossos restaurantes mais informais, os Gloria, em Gijón e em Oviedo. Era um prato que fazíamos como um bolo de milho, farinha de milho misturada com água, sal e um pouco de farinha de trigo amassada e frita. O milho é muito importante porque, quando veio da América, adaptou-se muito bem nas Astúrias e durante o século XVII/XVIII foi a nossa base alimentar. Nas Astúrias há muitos rios e moinhos que moem os cereais, os grãos com a força da água. Os bolos de milho comiam-se em casa, não em restaurantes e a minha mãe fazia-os muito bem.

Mas como os começou a fazer?

Um dia fizemos um almoço por encomenda para uns senhores que, depois, ficaram a jogar às cartas e decidiram ficar para jantar. Não havia muito na despensa, porque eles já tinham comido ao meio-dia e nós pouco tínhamos. Comecei a fazer aqueles bolos de milho fritos e pus cebola, um pouco de queijo Cabrales, o queijo azul mais importante aqui nas Astúrias, uns ovos mexidos que punha em cima e um pouco de manteiga. Esse foi o meu primeiro prato quando tinha 13 anos.

Nacho Manzano
Nacho Manzano Foto: DR

Começou a trabalhar muito cedo?

Em março de 1987, com 15 anos, fui trabalhar para um restaurante importante em Gijón, Casa Víctor, que era de um amigo próximo do meu pai. Era um sítio muito prestigiado aqui nas Astúrias, intimamente ligado ao mar, ao peixe, ao marisco. Aprendi muitas coisas sobre a cozinha tradicional, mas havia também um conceito um pouco moderno, porque eram os anos em que a cozinha espanhola começava a estar na moda e a ter algum sucesso no País Basco, San Sebastián, Madrid e Barcelona.

Foi o início dos anos de ouro para Espanha?

Já havia um movimento em torno da alta cozinha, porque havia quem no País Basco tivesse ido para França. Quando tinha 18, 19 anos nas Astúrias, devido à sua proximidade geográfica com os bascos, também tivemos algumas influências, começámos a assistir a uma evolução.

A sua formação foi no restaurante Víctor?

Sim. Apenas.

De lá para a Casa Marcial?

Estive até novembro de 93, altura em que abri a Casa Marcial. Fizemos umas reformas, uma pequena melhoria nas instalações, e as minhas irmãs começaram a ajudar-me. Em novembro de 93 arrancou a Casa Marcial como restaurante.

Nunca se deixou levar pela cozinha molecular? Pela cozinha mais moderna?

Quando abri o restaurante queria fazer algo diferente, uma cozinha mais evoluída do que a minha mãe fazia ou do que se comia por cá. Mas não tinha a técnica, não tinha o conhecimento, não tinha estado a estagiar em restaurantes. Então comecei a fazer coisas diferentes, a pensar muito nas memórias do que os meus pais faziam e do que vivi em Gijón. E, com estes dois argumentos, juntamente com as irmãs, começámos a construir o nosso próprio estilo, definido. Comecei a reinterpretar um pouco todos aqueles aromas que vinham da matança do porco, do fumo, da horta, da cidra que fazíamos. Tive de pensar, repensar e para fazer coisas diferentes a partir desse curto conhecimento. Era muito duro porque a partir de 94-95-96 começa a cozinha espanhola a crescer em muitos cozinheiros e noutros locais e a começar um terramoto liderado por El Bulli. Foram duas décadas mágicas, de 95 a 2015, que colocaram a Espanha na liderança.

Mas aprendeu essas técnicas?

Através da tentativa, erro, vais aprendendo. No início tínhamos pouco conhecimento e isso deu-nos personalidade. Sempre cozinhámos muito com o que há à nossa volta, o mar que fica a sete, oito quilómetros de distância. As montanhas, a agricultura e a pecuária. O que no início era um problema tornou-se uma virtude, tornou-se um argumento para definir o estilo pessoal com base na proximidade, numa cozinha inspirada na tradição, numa cultura da memória, nas formas de cozinhar mais antigas, em fazê-las passar por uma visão mais pessoal. Criámos o nosso próprio estilo.

Mas hoje há mais técnica.

É verdade que depois incorporamos técnicas, mas, como disse, nunca foi o meu estilo cozinhar de uma forma mais moderna.

Como surge a estrela Michelin? Foi uma surpresa?

Absolutamente de surpresa. Quando abrimos em 1993, queríamos dar de comer com muito detalhe, gostávamos muito do pormenor. E as coisas correram muito bem. Fizemos um croquete de presunto, mas queríamos fazer um molho bechamel super fino, queríamos fazer uma cozinha delicada e boa. Mas a primeira estrela em 1999 foi uma surpresa, tal como a segunda estrela, em 2010.

Depois veio a terceira estrela no ano passado. Depois do guia Michelin, o que mudou?

Lembro-me que fizemos uma grande remodelação no restaurante. Queríamos melhorar tudo. Estávamos a ganhar novos clientes, mas também a perder outras pessoas que vinham à Casa Marcial. Este progresso também tem um lado negativo. O preço antes era de um restaurante mais humilde. A segunda foi um impacto muito importante, porque era muito invulgar para um restaurante num sítio tão pequeno com umas instalações humildes, quando não era habitual, na altura, em 2010, ter duas estrelas Michelin em Espanha. A maioria estava concentrada no País Basco, Barcelona e Madrid. E em restaurantes com muita importância no que diz respeito às instalações e os meios. Era e é uma aldeia com quatro casas.

Então qual terá sido a razão?

Penso que foi por termos feito uma cozinha muito terra-a-terra e muito, muito pessoal. E com um imediatismo em relação ao produto, à estação, porque estamos sempre muito ligados à natureza. Era uma personalidade de que a Michelin gostava.

Em 1999 teve um clique e centrou a cozinha em torno de Arriondas. Foi um marco importante?

Totalmente. É mesmo o eixo central do que fazemos, é a nossa despensa mais próxima. E a natureza que rodeia o restaurante. Com toda aquela infância que nos marcou em sabores muito primários e autênticos. Os legumes eram cultivados em minha casa. Havia gado, fazíamos sidra, havia uma economia circular na altura, não sabíamos o que era, mas era muito primário, muito autêntico. Matava-se os porcos para ter um bocadinho de carne para pôr nos potes todo o ano. Uma paleta de sabores e de autenticidade com a tradição asturiana, que é o que marca o nosso estilo até aos dias de hoje.

Nacho Manzano e a sua família
Nacho Manzano e a sua família Foto: DR

Continua a gostar muito de legumes e verduras.

Gosto muito das coisas mais simples para as estudar, tirar o máximo partido delas e levá-las à alta cozinha. Por exemplo, temos sempre pratos com favas e feijões. Em minha casa lembro-me que tínhamos sempre diferentes tipos. Era algo muito humilde, mas que levámos para a alta cozinha. Como aumentar o valor e ir cuidando ao máximo do pormenor, na combinação de outros produtos, mas procurando essa parte tradicional, mais íntima.

Como por exemplo?

Fazemos um feijão vermelho que cozinhamos num caldo que deixamos super fino. Acompanhamos com azeitonas, carnes de vaca que deixamos muito tenras, e perfumamos com gordura de chouriço. E depois alguns mirtilos, um fruto de verão em conserva para lhe dar alguma acidez.

Constrói pratos com base na memória?

Pesquisando um pouco também porque em minha casa, quando havia a loja, havia bacalhau seco e esses peixes salgados rústicos, que são aromas muito poderosos, mas também muito subtis, muito matizados. Por isso fazemos pratos onde juntamos influências diferentes e das que temos vivido em casa.

O pouco que havia em casa afinal era muito?

O repertório era um pouco escasso. Vivia-se, comia-se quase sempre o mesmo, quer dizer, não exatamente o mesmo, mas havia pouca variedade. Mas é preciso alargar os horizontes. Aqui também se pratica a caça, há cogumelos, há cabras e queijos, um ecossistema do rio de água doce muito importante para a truta, a enguia e o salmão. Começa-se a investigar e estudar e descobre-se coisas que, para mim, são muito próximas. Os pescadores vinham ao bar da aldeia quando paravam para beber um copo de vinho e talvez me dessem duas trutas que traziam no cesto de vime com os fetos. E essas memórias também me inspiram. À primeira vista parece que não há muitos produtos, mas quando começamos a reviver a nossa infância e tudo o que nos rodeia, muitas coisas vêm ao de cima. E o pensavas que era pouco, não é tão pouco.

Em 2014 em 2016 abriu o Gloria Oviedo e o Gloria Gijón. Muito diferentes da Casa Marcial…

O que fizemos foi uma cozinha informal com uma ligação estreita ao público. Fazemos uma omeleta de batata muito boa, alguns croquetes, guisados e estávamos à procura dessa cozinha. Bem feita, doméstica, com um toque.

E o restaurante e hotel Narbasu?

Em 2020 comprámos esse hotel num sítio maravilhoso com vista para os Picos da Europa. Fica a 20 minutos da Casa Marcial, num enclave local muito natural, muito selvagem, com uma grande quinta, onde havia um campo de golfe que transformámos em horta. É um hotel com 23 quartos e um restaurante que serve boa comida asturiana.

Ainda há o NM e o Nastura, em Oviedo.

Estão num centro comercial, tal como muitas cadeias de restaurantes. É uma zona moderna de Oviedo, onde funcionava a antiga Estação del Vasco. O NM fica num canto que não se esperaria, difícil de encontrar, e não se vê da rua. É preciso ir lá de propósito. Estamos num lugar muito eclético, podíamos estar em qualquer país do mundo porque tem uma decoração única. É um local pequeno, quadrado, mas bom, com uma acústica muito boa, tetos muito altos, todo em branco com tecidos. E a cozinha é de parede a parede com um balcão onde cabem seis pessoas mais quatro mesas. Como se fosse parte da Casa Marcial, mas num ambiente muito urbano. Tenho a possibilidade de ver a nossa cozinha num cenário completamente diferente.

Está nessa zona da cidade mais residencial. Leva-me à pergunta sobre se a responsabilidade social é importante para si?

Absolutamente. Temos influência sobre as restantes cozinhas da comunidade e sobre as pessoas. Quando cozinhamos e nos esforçamos por atingir a máxima excelência, trabalhamos com a natureza e temos de ser conscientes disso.

Um cozinheiro pode ser um ativista?

Temos de ser activistas do bem e dar o exemplo. Trabalhamos com a natureza e por isso devemos ser hiper respeitosos e muito conscientes. Utilizar produtos que sejam capturados com os canais de sustentabilidade, apesar de ser uma palavra que está muito gasta. Temos de ser rigorosos para transmitir uma mensagem à sociedade de respeito e esperança.

Preocupa-o o que o rodeia? As crises, as guerras… isso impacta a cozinha?

Estamos a viver tempos difíceis muito convulsivos e isto gera inquietação em todos os setores da sociedade. E para nós também, logicamente, porque no fundo vendemos luxo. Precisamos de uma economia forte para podermos manter os modelos, para podermos ter solvência, porque para fazer alta cozinha é preciso ter independência económica.

No mundo de hoje, há um fosso cada vez maior entre as classes sociais, o que me incomoda e, logicamente, não me agrada.

De Espanha para Portugal, agora é o novo chef responsável pelos restaurantes do hotel Tivoli Kopke, em Vila Nova de Gaia. Como se relaciona com o nosso país?

Sempre adorei o Porto e Portugal. Creio que é um país com personalidade que também tem esse respeito pelas tradições num mundo tão globalizado e por vezes tão pouco autêntico. Em Portugal, encontro-a. Existe este arco atlântico que nos liga ao norte de Espanha e norte de Portugal, esse mar selvagem que nos liga.

O que vai acontecer nos restaurantes em Vila Nova de Gaia?

Num dos restaurantes, casual, quero que haja referências do norte de Portugal e do norte de Espanha, com "confort food". No bar de vinhos preparamos tapas, muitos petiscos para beber um vinho. E depois o 1638, que vai ser um restaurante mais gourmet, mais gastronómico. Não tem uma sala opulenta ou luxuosa, mas tem uma vista linda e vai ser um menu onde quero que haja um toque mais pessoal, mais como a Casa Marcial com um menu de degustação.

É de esperar uma estrela Michelin no restaurante 1638?

Vamos fazer um menu com muita qualidade na matéria-prima e acho que pode vir a ter uma estrela Michelin se formos capazes de dar uma boa atenção também à sala, que é o que queremos. Mas não é o objetivo a curto prazo, não seria uma frustração se não chegasse no próximo ano. Acredito que poderá ter uma estrela Michelin no futuro

Disse uma vez que gostava de caminhar e de estar em casa em silêncio absoluto. Que podia passar um dia sem falar com ninguém e ser feliz. Pode explicar?

Passo o dia a falar com o pessoal, com os cozinheiros, com os clientes e com as minhas outras equipas de restaurantes. Preciso de paz, de tranquilidade. Gosto de poder olhar pela minha janela num dia de chuva e ver as montanhas sem ouvir nada. Dá-me repouso, inspiração, calma e recarga. Digo sempre que, para mim, o som mais bonito que existe é o silêncio. Nem sequer penso em cozinhar… Descansar a mente e recarregar as energias para enfrentar a semana, não?

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