60 anos do Renault 4, o terceiro modelo mais vendido da história do automóvel
Chamaram-lhe ‘blue jeans’, já que dava para todas as ocasiões e cumpria todas as funções – seja de fato-macaco ou de ‘tailleur’ completo. O Renault 4 está a comemorar 60 anos e é um dos modelos mais marcantes da história do Automóvel.
Este 2021 é particularmente rico em efemérides automóveis. Até ao final do ano ainda iremos regressar a elas, particularmente a duas. Mas neste artigo a ribalta vai por inteiro para o Renault 4 – também conhecido cá pelo retângulo (Portugal) como "4L", e em França, no hexágono, pelo literal "Quatrelle". O modelo da marca do losango – e este parágrafo já parece um compêndio de Geometria – comemora neste segundo semestre 60 anos: seis décadas, três das quais em produção ininterrupta nas fábricas da Renault, mais de 8 milhões de unidades vendidas em 100 países, o que faz dele o terceiro modelo mais vendido da história do Automóvel, só suplantado por outros dois marcos da indústria: "o" Volkswagen e o Ford T.
Por falar em História, um pouco dela não faz mal a ninguém
França, segunda metade dos anos 50. A década do pós-guerra tinha sido dominada pelo concorrente Citroën 2CV e, numa escala e para um mercado diferente, pelo Renault 4CV – de notar que o "CV" significava de facto "cavalos", mas não a potência do motor: eram, sim, cavalos fiscais, uma fórmula francesa de calcular o imposto sobre o automóvel.
Voltando à França desse final de década, Pierre Dreyfus – presidente da então recém-nacionalizada Régie Nationale des Usines Renault – sonhava com a noção de um carro ‘blue jeans’. Nas suas próprias palavras, um carro igual a essa peça de vestuário, que também "se pode usar em todas as circunstâncias, sem pretensões, nem snobismos nem conformismo social, que dá para todos os serviços, que se leva para todo o lado, que não é caro e se pode substituir sem nos sentirmos deslocados" (sic).
Para Dreyfus, o automóvel também iria ter o seu "blue jeans" – essas calças de trabalho feitas de ganga, um tecido quase indestrutível, nascido para vestir os operários americanos do New Deal e popularizado em todo o mundo junto de estudantes e artistas, que rapidamente se transformou num fenómeno de moda ao entrar no guarda-roupa feminino. Unissexo, igualitário, mais rebelde do que verdadeiramente revoltado, James Dean e Marlon Brando ajudaram a fazer dele a peça de vestuário mais popular da segunda metade do século XX.
Mas Pierre Dreyfus sabia que a aposta só seria ganha se o novo modelo (nome de código "350", já lá iremos) fosse suficientemente barato para apelar às existentes população urbana e rural, e também à nova e crescente população suburbana. E fixou-lhe um preço: não poderia custar mais que 350 mil francos – daí o ‘codename’ – mas eram francos dos antigos, algo como 530 euros hoje em dia, sem contar com a correção da inflação.
Em julho de 1961 saía da fábrica de Boulogne-Billancourt o último Renault 4CV, que já datava de 1947. Ato contínuo, a linha de produção foi desmontada e reconstruída com novas máquinas e ferramentas para começar a produzir imediatamente o novo modelo. Em agosto, na região da Camargue, o novo Renault 4 era apresentado à imprensa nacional e internacional. E em outubro, no Grand Palais, assumia-se como a estrela do Salão Automóvel de Paris.
O que diferenciava o Renault 4?
Simplicidade. Baixo custo no fabrico e na utilização. E, principalmente, polivalência. Do ponto de vista tecnológico, o Renault 4 foi inovador à época. Um piso rebaixado e acessível, fácil de carregar coisas pesadas, uma porta de acesso na traseira (a que se chamava na altura a "porta de serviço"), amortecedores horizontais, tração dianteira – o primeiro Renault não profissional a adotar essa transmissão – tudo a contribuir para um piso bastante plano e sem obstáculos volumosos. O design da carroçaria inaugurou o que se viria a chamar "dois volumes": compartimento do motor mais um volume que engloba o habitáculo e a área de carga, que podia ser aumentada consoante as necessidades, avançando o banco traseiro. De um momento para o outro, o carro de família transformava-se em carro de trabalho.
Outros detalhes muito próprios deste modelo incluíam uma plataforma plana à qual era afixada a carroçaria (ao contrário da tendência, já crescente nessa época, de uma estrutura monocoque); e o mais famoso de todos, a distância entre eixos diferente de um lado em relação ao outro: mais 45 mm do lado direito do que do lado esquerdo, resultado da suspensão por barras de torsão e quatro rodas independentes. Outra famosa característica: o comando da caixa de velocidades, colocado ao centro do painel e ao lado do volante, que acionava um tirante quando se empurrava ou puxava, à medida que se engrenava uma das velocidades (de um total de quatro mais marcha-atrás), e que deu azo à famosa lenga-lenga "toma lá um café" e "dá cá um café". E tal como a calça de ganga não se passava a ferro, também o Renault 4 deixava de necessitar de frequentes ações de lubrificação da carroçaria nem de controlo dos níveis dos fluidos, através de um novo sistema de arrefecimento do motor. Este era o 4 cilindros em linha de baixa cilindrada, primeiro 603 cm3, depois substituído pelo 747 cm3 que debitava uma potência de 26.5 ou 32 cavalos, dependendo do preço da versão e do tipo de carburador utilizado. Com o passar dos anos, a cilindrada foi gradualmente aumentando, até atingir os 1108 cm3 e 34 cavalos do famoso motor Cléon-Fonte, que equipou vários outros modelos Renault ao longo dos seus 40 anos de vida. A potência podia não ser muito grande; no entanto, era suficiente para movimentar os 600 a 750 kg do Renault 4 (consoante a versão), um carro bastante ligeiro nos seus 3.66 m de comprimento, 1.485 m de largura e 1.47 m de altura.
O Renault 4 estava votado ao sucesso...
Cedo a Renault percebeu que estava perante um caso sério de sucesso comercial, mas também do ponto de vista sociológico. À medida que os ritmos de produção aumentam, também as vendas acompanham a tendência de liberdade dos ‘sixties’ e que carro melhor soube ler esses novos tempos? Líder de vendas em França, o Renault 4 estendeu a sua fama a todo o mundo e ganhou uma série de alcunhas locais (prova de uma implantação que só os modelos históricos conseguem atingir). Exemplos:
- em Itália, era conhecido como "Sapo";
- em Espanha, "Cuatro Latas";
- na então Jugoslávia, "Katcra" (diminutivo de Catarina);
- na Tunísia, era conhecido como "R4 Monastir" (a cidade natal do presidente Habib Bourguiba);
- na Rodésia do Sul (atual Zimbabwe), foi alcunhado "o carro do Noddy";
- na Argentina, "El Correcamiños";
- na Finlândia, "Tiparellu" (gotícula);
- e na sua nativa França, "Quatrelle", uma sonoridade também adotada em Portugal.
... também no desporto automóvel
Quem diria que o "4L" deixaria marcas na competição automóvel? Em 1974, a Renault criou um troféu de corridas em pista de terra, a Taça de França Cross Elf, exclusiva para este modelo. Mas já antes ele tinha competido em várias provas. Logo em 1962, a dupla Bernard Consten e Claude Le Guézec ficaram em 5º da categoria no temível Rally Safari, no Quénia; e o ponto alto da carreira do modelo foi o 3º lugar à geral no Paris-Dakar de 1980, com os famosos irmãos Marreau, Claude e Bernard. Os mesmos que, anos antes, tinham usado um de série para guiar mais de 15 mil quilómetros entre Capetown e Argel, em preparação para o recorde que viriam a bater, em 1971, com um Renault 12 Gordini. E o que dizer de quatro mulheres que, em 1965, percorreram ao volante de dois Renault 4 os 40 mil quilómetros que separam Ushuaïa (Terra do Fogo) de Anchorage (Alaska), ou seja, a totalidade do continente americano?
O pôr do sol
Em dezembro de 1992, o bom e leal Renault 4 saía das linhas de produção francesas (ainda seria fabricado mais dois anos na Eslovénia e em Marrocos) e com ele terminava uma era da história do Automóvel. Antes mesmo do termo "globalização" ser inventado e empregue, já este modelo respondia a aspirações de mobilidade comuns a vários pontos do planeta, a necessidades práticas e simples de transporte, ou ainda a noções essenciais do que deve ser uma ferramenta de trabalho... com quatro rodas. O sonho de Pierre Dreyfus tornou-se realidade.
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