Maradona: o triunfo de um homem comum
Astro, deus e génio são nomes que nunca farão justiça ao que foi a carreira e a vida de El Pibe. Maradona, o último grande herói do futebol romântico, morreu ontem, na sua Buenos Aires, aos 60 anos. Deixa um legado próprio de ícone pop, mais do que de artista dos relvados.
O dia 22 de junho de 1986 ficará para sempre como o dia em que Diego Armando Maradona carregou a sua Argentina ao colo rumo à vitória sobre a Inglaterra, no Mundial do México, num feito que está para lá do desporto. Além dos dois golos geniais, o da mano de Dios e aquela obra-prima que a Fifa considera o golo do século -- um sprint em finta sobre seis adversários e a finalização, já em queda, sobre o guarda-redes Peter Shilton –, a partida a contar para os quartos-de-final revestia-se de dramatismo extrafutebol. Quatro anos antes, as duas nações haviam estado em guerra pelas ilhas Malvinas, a que os ingleses, vitoriosos nesse capítulo, chamam Falklands. Aquele era o momento de obter a revanche possível e Diego Armando, então com 26 anos, era o homem certo no momento certo para protagonizar o dia mais brilhante da história do futebol.
Este é apenas o grande momento de uma carreira que começou nas ruas de Lanús, nos subúrbios de Buenos Aires. Aos nove anos, o pequeno Diego juntou-se aos Argentinos Juniors. Pouco depois, com apenas 16 anos, fez a sua estreia pelos seniores, e, daí, saltou para o gigante argentino, o Boca Juniores, onde os seus 35 golos em 40 jogos o elevaram a semideus. Não pecamos por excesso (em 1998, fãs argentinos criaram a Igreja de Maradoniana, com culto dedicado a El Pibe e até datação "antes e depois de Maradona"). A ida para Barcelona, onde foi um dos protagonistas de uma batalha campal numa partida com o Atlético de Bilbau, fez dele estrela mundial e a mudança para o Nápoles, a conquista dos dois únicos títulos da história do clube e os rumores de ligações à máfia da Camorra, com aquele Mundial pelo meio e drogas à mistura, fizeram o resto. Cumpria-se o desígnio.
O eterno 10 da seleção argentina pertence ao restrito lote de futebolistas que elevaram o jogo a um patamar próximo do da arte. Nomes como Pelé, Di Stéfano, Johan Cruijff ou Puskás e, já no século XXI, Cristiano Ronaldo e Messi. Porém, El Pibe distingue-se de todos os outros precisamente pelo que simbolizou fora do campo tanto quanto dentro das quatro linhas. Enfant terrible, mulherengo, com uma vida pautada pelo uso de drogas, Maradona está para o futebol como Sid Vicious para a música popular, ele é o ícone punk-rock caído em desgraça, ao passo que Pelé se aproxima mais da aura aristocrata de Frank Sinatra. Tal como todos estes ícones do século XX, este foi um produto do seu tempo. Apenas pôde ser Maradona porque o mundo ainda não conhecia a Internet e as redes sociais. As fotografias a fumar cubanos, as noites de excessos que vinham a público e o comportamento demasiado excêntrico só foram possíveis porque "o melhor do mundo" o foi numa época em que os futebolistas não eram obrigados a ser modelos de virtudes ou a dar o exemplo. Ninguém confiaria a educação de um filho a El Pibe. E foi precisamente esta liberdade de que o astro usufruiu que o deixou ser ele próprio.
Ao contrário do basquetebol, onde os mais altos são favorecidos, ou do râguebi, em que impera a lei do mais forte, o futebol é o desporto democrático por definição. Se necessitássemos de provas disso bastar-nos-ia olhar para os atributos físicos do seu mais exímio praticante. De estatura baixa, com apenas 1,65m, e propensão para o excesso de peso Maradona singrou onde muitos outros, mais atléticos do que ele, falharam. Dele disse o jornalista, escritor e intelectual uruguaio Eduardo Galeano que foi "o mais humano dos deuses." E foi um humano demasiado comum. Como quase todos os exemplos de grandes futebolistas, também o filho pródigo de Lanús veio de um meio pobre. O pai, Diego Maradona "Chitoro", era operário numa fábrica de produtos químicos; a mãe, carinhosamente conhecida como doña Tota, era doméstica. O casal teve oito filhos, com Diego a ser o primeiro rapaz, depois de duas meninas.
Talvez tenha sido este início de vida marcado pelas dificuldades que o transformou também num homem sem medo das suas opiniões. Politicamente ativo, esteve sempre ao lado dos regimes de Esquerda da América do Sul. Depois da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, apelidou o presidente George W. Bush de assassino e foi visto em público com uma t-shirt que o equiparava ao regime nazi. Apoiante da causa palestiniana, foi amigo de Hugo Chávez e de Fidel.
Nos últimos anos, o astro era já uma caricatura de si próprio. Na sua última entrevista, ao jornal argentino Clarín, para comemorar 60 anos de idade, Maradona perguntava-se em jeito de balanço se as pessoas iriam continuar a gostar de si. Dias depois, no início de novembro, após um internamento num estado anémico e desidratado, foi operado a um hematoma no cérebro. A sua Argentina, a mesma de Evita, de Che Guevara, de Borges, decretou três dias de luto nacional à data da sua morte, que partilha com Fidel, 25 de novembro. Um dia em que a cultura pop ficou mesmo mais pobre.
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