Joaquim Arnaud: “Sou um afinador de vinhos”
Produtor, agricultor e especialista em vinhos e e iguarias tradicionais, Joaquim Arnaud é um dos nomes mais enigmáticos e reservados neste meio. Da vida pessoal ao trajeto profissional, conta-nos um pouco das peripécias da sua vida.
O Joaquim Arnaud tem uma grande tradição familiar no Alentejo, e tem o mesmo nome que os seus antepassados. Vai haver continuidade?
O meu pai, avô e bisavô chamavam-se Joaquim Arnaud. Pelo menos desde 1882 que existe um. A primeira vez que fui tomar café com a minha mulher disse-lhe que estava interessado nela para namorar e para um dia casar, mas com uma condição: tinha de aceitar o nome de Joaquim Arnaud para o filho. E ela curiosamente aceitou.
Tem a sua propriedade em Pavia, no Alentejo. São muitas gerações?
Os Arnauld estão em Pavia desde 1640. O primeiro que veio para Portugal chamava-se Arnao, Guilherme Arnao, para ser mais preciso. Descendente dos Condes de Arundel, veio de Inglaterra para Portugal para acompanhar D. Filipa de Lencastre. Anos mais tarde foi o único estrangeiro que morreu na batalha de Alfarrobeira ao lado do D. Pedro contra o D. Afonso V.
Mas acabaram por sair de Pavia.
Foram para a zona de Coimbra e com o apoio a D. Pedro ficaram na mó de baixo. Mas um ramo da família estabeleceu-se em Pavia. O ramo que eu represento.
Continua a haver uma relação com a nobreza?
É uma pequena nobreza no Alentejo, mas os condes de Arundel, uma família católica inglesa, são atualmente representados pelo duque de Norfolk.
A presença do vinho é antiga?
Corria-me no sangue pelo lado da minha mãe que sempre esteve ligada ao vinho.
Onde nasceu?
Oficialmente em Pavia, mas na verdade nasci no Hospital de Évora. Estava o meu pai a registar-me em Pavia quando saiu no jornal de Évora um artigo a dar os parabéns ao provedor da Misericórdia, que na altura era o meu pai, pelo nascimento da criança em Évora.
Os seus pais viviam em Pavia? O que faziam?
O meu pai era essencialmente agricultor. Como a Santa Casa da Misericórdia foi fundada por um antepassado, sempre estivemos envolvidos. A minha mãe era formada em indústria hoteleira e tinha o curso de economato, mas depois de casar acabou por ficar a ajudar o meu pai. E foi ela que aguentou o barco depois da morte do meu pai quando eu tinha um ano e meio.
O que fazia a sua família em Pavia?Tinham a sua casa agrícola no meio da vila. É um antigo castelo transformado em casa pelo meu bisavô. Uma casa-fortaleza.
Chegou a morar lá quando nasceu?
Nasci em 1973 no período do "verão quente" e acabei por ir viver para a zona de Carcavelos.
Visitava a casa nesse período conturbado?
Ia desde pequeno só no verão, mas só saía acompanhado, nunca sozinho. Depois os tempos acalmaram.
Continuava a viver em Carcavelos?
Mudei de casa algumas vezes e aos 18 anos assentei em Cascais, mas sempre indo ao Alentejo. Também foi com essa idade que comecei a minha casa agrícola.
Onde estudou?
Em Carcavelos e na Parede. Depois cheguei a entrar em Economia, mas ao mesmo tempo decidi comprar umas vacas em Pavia que eram lindas de morrer. Houve muitos problemas na reprodução e, por isso, acabei a fazer 22 partos manualmente. A parte financeira da casa agrícola estava em muito mau estado e tive de largar tudo para ir para lá tentar dar a volta.
E a enologia?
Sou um afinador de vinhos e não um enólogo. Vou afinando.
Foi então para Pavia. O que tem?
Cerca de 850 hectares com vacas, vinhas, olival e pastagens.
Nessa altura a propriedade era sua?
Fiz partilhas com a minha mãe e fiquei com uma propriedade de 166 hectares. Dois anos depois, assumi as suas dívidas e fiquei com o restante, cerca de 400 e tal hectares. De resto fiz um contrato de arrendamento com a minha tia – uma das pessoas que mais me influenciou e que, basicamente, substituiu o meu pai.
Como foi o início?
Fui à banca para montar a minha exploração e no final do ano paguei. No final de três ou quatro anos pus a empresa a andar. Mas como não queria voltar aos bancos, em 1998 montei uma empresa de sementes e adubos que serviu para me financiar.
O que faz na herdade?
São terras de sequeiro, mais pobres. Mas estamos a desenvolver projetos como o enoturismo e, entre outras coisas, vamos voltar a semear o grão à antiga. Falo no plural porque é uma casa agrícola: somos nós e os funcionários que trabalham connosco. Além de mim, são seis.
Tudo biológico?
Estamos em modo biológico desde 1999. Fomos das primeiras casas de grande dimensão em agricultura biológica em Portugal, mas numa exploração de sequeiro era fácil fazer essa transição.
Mas não tem essa referência na garrafa…
Produzo porque acredito e não preciso de pôr o selo. O que vendo é o meu nome.
E a vinha?
Foi plantada em 2021. Queria fazer um vinho no Alentejo, mas diferente. Ali temos uma acidez nos solos natural e brutal, porque estamos numa zona de calcário. Fiz uns furos para água, mas estavam todos secos e, quando comprei as cepas para plantar, vinham infetadas com uma doença de enraizamento, portanto estava condenado ao insucesso.
Isso mudou os planos?
Transformei a vinha que era para ser de regadio numa vinha de sequeiro com produções muito baixas.
O que acabou por plantar?
Alicante Bouschet que sempre foi a minha casta favorita e ainda é. A variedade Aragonês também plantei por aconselhamento mas, se soubesse o que sei hoje, não o teria feito por ser mais propícia a doenças. Também tenho a casta Trincadeira, que em cada 10 anos, três são colheitas excecionais e os outros mais complicados. O Syrah funciona um pouco como sal e pimenta: é bom para temperar.
E brancos?
Tenho muito pouca tecnologia, portanto temos um pouco de branco que curiosamente vai parar dentro dos tintos.
A marca é?
Arundel e, para já, só tintos.
Um deles tem escrito 36…
Foi uma história muito engraçada. Um vinho de 2009 que em 2011 estávamos a engarrafar, quando me puseram fogo à vinha. No meio do incêndio esqueci-me de duas barricas. Em 2013 estava a passear na adega quando dei com os dois cascos. Foi corrigido e estava ótimo. A única coisa a que não se consegue dar a volta é a morte. Tudo o resto se consegue.
Também tem vinagre. De vinho, claro…
Espero conseguir lançar no final de setembro um vinagre de 2003. Nesse ano não gostei do vinho e foi todo para a vinagreira. Quando não gosto dos meus vinhos, maioritariamente vão para vinagre. Já temos mais de quatro mil litros em casa. Nada se perde e tudo se transforma.
Fez o primeiro presunto de vaca em Portugal…
Surgiu a ideia de fazer uma cecina de vaca, mas até foi a minha mulher que me sugeriu chamar presunto. Em Portugal não se trabalha muito a conservação de carnes como se fazia há 200, 300 anos, que é uma cura com sal. Na zona de Leão, onde mando fazer a cura, até se fazia presunto de vaca, cavalo e burro.
Continua com os enchidos?
Agora em pequena escala porque neste momento estou mais focado em trabalhar os vinhos. Além disso, estou a recuperar a casa. Nas antigas cavalariças há um museu de alfaias agrícolas, dois automóveis antigos, um dos anos 20 e outro dos anos 50, uma biblioteca com mais de cinco mil livros, uma biblioteca de livros de cozinha com mais de 700 exemplares e o arquivo da casa agrícola com documentos desde 1700 até hoje.
Passa lá muito tempo?
A base é em Cascais, mas vou lá muitas vezes.
Também passa por Alenquer.
A minha mulher e os irmãos são proprietários da Quinta dos Plátanos. Como só tinha tintos precisava de brancos. A zona de Alenquer dizia-me muito porque era de lá o outro ramo da família. Fui à quinta trabalhar os vinhos e, no meio de uma palete, apareceu a minha futura mulher [risos].
Atualmente qual é o seu foco?É voltar ao básico, voltar a Pavia, trabalhar no enoturismo e concentrar-me vinhos. E, mais tarde, revitalizar a charcutaria.
Nos vinhos que faz em várias regiões não utiliza as certificações das comissões vitivinícolas.
Faço o vinho à minha maneira como eu acredito que deve ser feito. Tanto no Alentejo como em Lisboa não uso o selo da comissão. É a minha abordagem.
E as vendas para fora? Singapura?
É um projeto que tenho muito carinho. O arquiteto Carlos Macedo e Couto, que fez o pavilhão de Portugal em Xangai, tem uma paixão enorme por Portugal e abriu um restaurante chamado Tuga em Taiwan. Queria trabalhar comigo, mas na altura já tinha um distribuidor naquele mercado. Finalmente em 2020 já podíamos trabalhar, depois de um namoro de cinco anos.
Como foi o processo?
Sou agricultor e por isso habituado a prazos longos. O Carlos veio ter comigo a Pavia porque gosto que as pessoas conheçam o que faço antes de trabalharem comigo. Quando conhecem e percebem a filosofia é muito mais fácil.
Sempre regressa a Pavia.
É a minha amante. O dinheiro que ganho com os vinhos é para manter a casa, mas não sou o dono da terra, porque a terra é para a geração seguinte. Fui educado assim.
Chegou a candidatar-se à Câmara de Mora pelo CDS.
Só um maluco como eu se ia meter isso. Mas achei que era um dever.
Ganhou o PS, mas não o incomoda?
Estão a fazer um ótimo trabalho. Já tive algumas reuniões com eles e creio que podem fazer muita coisa para dinamizar o concelho. Têm a segunda maior mata nacional em produção, o fluviário, muita coisa interessante e perto de Lisboa.
Sei que uma das suas atividades era reunir os registos da sua família. Encontrou algo interessante?
Havia muita coisa espalhada e diversa. Encontrei um documento fabuloso: uma apólice da Lloyds em Londres com 45 nomes que era um seguro de acidentes de trabalho. Sempre houve preocupação social na nossa casa.
Com faz a gestão?
Sou o meu próprio comercial, por isso tenho de vender o vinho. Em Pavia dou as diretrizes e acompanho. Mas os trabalhadores que lá estão sabem que o contrato é vender o vinho para ter o dinheiro para lhes pagar.
Quem são os seus clientes? Como funciona o negócio?
Temos pequenos distribuidores espalhados pelo país inteiro. Temos desde clientes desde a Póvoa do Varzim até à Madeira, aos Açores, um bocadinho por todo o lado. Alguma coisa em Londres Espanha e França.
Pequenas quantidades?
Somos e queremos ser pequenos. Não quero ter 100 mil garrafas. Tenho de surpreender os clientes. O nosso target é alta restauração, pessoas que queiram provar coisas diferentes.
Não só do Alentejo…
Considero-me um bocadinho alentejano. Tenho sangue minhoto, alentejano, beirão e do Oeste. Tenho de pensar que não somos alentejanos ou não somos minhotos, somos apenas portugueses. Podemos trabalhar em todo o nosso território e temos de olhar o nosso próprio solo em cada sítio, não a região A ou a região B. Não há um Alentejo, há vários, como não há um Minho.
Na promoção dos vinhos como faz?
Somos portugueses. Na exportação não faz sentido estar a promover o Alentejo ou promover Lisboa, mas sim Portugal. Temos de ter orgulho. Não faz sentido regionalismos num país tão pequeno.
Uma queixa habitual passa pelos preços baixos…
Nesse caso sou a pessoa errada. O meu vinho mais barato custa dez ou 12 euros. O mais caro mais de 100.
Pouco e caro ou muito e barato?
Vale a pena fazer coisas diferentes e conseguir valor acrescentado em vez de fazer muito e barato. Todas as vezes que tentei fazer vinhos baratos tinha mais dificuldade em os vender.
O que falta fazer então para que Portugal tenha esse papel mais relevante no mundo dos vinhos?
É mostrar que existe um país fantástico, fabuloso e atlântico, chamado Portugal. E termos honra em sermos portugueses. Uma das formas seria ter os nossos emigrantes como embaixadores do vinho, ótimo, caro, mas nosso. Temos de sair da zona de conforto e tentar ajudar o país. Há tanta coisa boa. O azeite espanhol está por todo o mundo. E apesar de haver ótimos azeites em Espanha, o nosso é melhor.
Próximo passo?
Escrever nos rótulos vinhos de Portugal.
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