Como apanhar um assassino. Este homem sabe
Richard Taylor conta a Audrey Ward como foi trabalhar com alguns dos mais célebres criminosos do Reino Unido, desde o “Estripador de Camden”, Anthony Hardy, até ao imã radical Abu Hamza. Por Audrey Ward
Numa manhã de 2002, Richard Taylor, consultor de psiquiatria forense, estava a levar a sua filha à escola quando deu de caras com um antigo paciente. O homem, Eugene, um talentoso músico na casa dos 40 anos, saudou-o alegremente. Taylor tinha tratado Eugene durante muitos anos, depois de ele ter morto o seu pai à pancada durante um surto psicótico. Ele tinha deitado fogo ao corpo do pai antes de enfiar um termómetro de carne no seu estômago. Quando depois o avaliou, já na prisão, Taylor perguntou-lhe por que motivo tinha feito aquilo. "Para ver se ele já estava bem passado, suponho" – foi a resposta de Eugene.
"Tratou-se de um ataque extremamente violento", diz Taylor, um homem grande e prestável, com 55 anos. "Na prisão, ele revelou-se incrivelmente perturbado e violento". Eugene foi considerado culpado de homicídio com responsabilidade diminuída, mas, após muitos anos de tratamento intensivo, um prolongado período estável e rigorosos testes, foi libertado sob estreita supervisão. "Quem era ele, papá?", perguntou a filha de Taylor, de 5 anos, ao prosseguirem a caminhada pela frondosa rua da zona norte de Londres. "Oh, é apenas uma pessoa com quem trabalhei", respondeu-lhe o pai.
Taylor, um dos mais experientes psiquiatras forenses britânicos, diz que não se sentiu perturbado com o inesperado encontro com Eugene. "Achei engraçado", afirma, esboçando um sorriso. "Mas a ideia de contar a história dele à minha filha era obviamente absurda".
Embora nessa altura não lhe tenha contado, Taylor escreveu agora um livro onde relata a arrepiante história de Eugene, bem como a de outros prisioneiros e pacientes que avaliou e tratou ao longo de uma carreira que percorre três décadas. O livro dá-nos uma perspetiva desconcertante sobre o seu trabalho com autores de crimes graves, incluindo alguns dos mais célebres prisioneiros do Reino Unido – como Anthony Hardy, conhecido como Estripador de Camden, e Abu Hamza al-Masri, o pregador radical que incitava ao ódio.
Taylor diz que se sentiu inspirado a escrever o livro porque "os casos mais interessantes calharam-me a mim". "Tive um homicida psicótico, um homicida por violência doméstica, uma homicida com síndrome de mulher agredida. Há toda uma tipologia psiquiátrica para as situações de homicídio. Não tinha conhecimento de já se ter escrito sobre isso para o público em geral".
Psiquiatras como Taylor estão menos focados no "whodunnit" [quem matou – who done it] e mais no porquê de terem matado. A maioria dos homicídios envolve os extremos de estados mentais normais, como a raiva, ciúme e medo, mas há uma linha muito ténue entre estes estados e um transtorno mental – e Taylor é frequentemente chamado a determinar se essa linha foi ultrapassada quando um indivíduo perde a noção da realidade e é apanhado nas malhas dos delírios e alucinações da psicose. A sua avaliação pode resumir-se a uma única pergunta: esta pessoa está insana ou é má?
"Há duas questões", diz ele. "A pessoa deveria estar no hospital para ser tratada? E como é que o tribunal lida com essas pessoas em termos de nível do crime? Por isso, tudo se resume ao facto de ser insana ou má".
O seu trabalho também implica ser chamado para apresentar provas como testemunha pericial nos julgamentos e sentenças, e determinar se os pacientes devem ser elegíveis para uma libertação com supervisão. Três quartos dos pacientes internados em hospitais de alta segurança vêm referenciados dos tribunais ou transferidos da prisão. Os restantes 25% vão sobretudo referenciados por outros hospitais psiquiátricos ou, ocasionalmente, pela comunidade.
"É bastante comum irmos a uma prisão para entrevistar uma pessoa – sobre a qual sabemos aquilo que lemos no seu dossiê e temos uma ideia do que fizeram – e sermos surpreendidos com quem encontramos", diz. No caso de Abu Hamza, cujos problemas médicos e psicológicos foram avaliados por Taylor antes do seu julgamento, "eu estava a par de toda a cobertura dada pela imprensa e é claro que o via com um temível gancho [Capitão Gancho era uma das suas alcunhas devido aos ganchos de metal que substituíam os seus antebraços amputados]. Ele era visto como o inimigo público n.º 1 nessa altura. Achava que seria difícil criar uma ligação com este homem impenetrável e rude. E afinal fiquei abismado com o facto de ele ser altamente inteligente, articulado e galante. Desenvolvemos uma relação cordial ao longo de uns quantos anos".
Mas nem todos os encontros se revelaram tão conviviais. Taylor foi agredido meia dúzia de vezes e agora leva consigo um alarme pessoal, junto ao cinto das calças, quando visita alas de segurança. "Não foi nada de grave, mas fui esbofeteado, levei um murro nas costas e outra vez fui perseguido corredor fora por um homem que acreditava que estava a ser espiado por pigmeus". Taylor conta que são os seus diligentes colegas da enfermaria, que cumprem turnos longos nessas alas, que suportam a parte mais pesada de qualquer comportamento agressivo.
Taylor nasceu em Singapura e cresceu no sul de Inglaterra. Formou-se em medicina e em 1993 decidiu especializar-se em psiquiatria, antes de se familiarizar com a psiquiatria forense numa formação. Foi "o cruzamento entre o direito e a psiquiatria" que o atraiu. Um dos primeiros casos de Taylor envolveu um paciente que sofria de doença mental crónica e que tinha fugido de um hospital. "Ele entrou numa sociedade de crédito imobiliário com uma banana embrulhada num saco do lixo e cometeu um roubo", mas, para as vítimas envolvidas, ele tinha uma arma verdadeira.
O primeiro caso de homicídio em que Taylor trabalhou envolvia uma jovem mulher, Stella, que tinha morto o seu filho recém-nascido, que não tinha sido planeado nem era desejado. Isso levou-o a pensar no impacto das doenças mentais na sua própria família. "Fiquei mais curioso", revela Taylor, referindo-se a um sombrio segredo de família, cujos detalhes desvenda lentamente.
Há 60 anos, quando a sua tia materna Georgina tinha 30 e poucos anos, casou-se e deu à luz a sua primeira filha, Louisa, uma bebé que estava sempre com cólicas e que chorava constantemente. "Georgina teve delírios antes de ter a bebé. Ela era bastante paranóica, tinha a estranha crença de que as pessoas lhe mexiam nas coisas". Com o nascimento de Louisa, a tia de Taylor desmoronou-se. Um dia, pegou numa almofada e sufocou a sua filha de cinco meses. "Acho que foi uma psicose pós-parto", refere Taylor.
A sua tia foi condenada por infanticídio e, depois de inúmeras tentativas de suicídio, foi lobotomizada. O procedimento, por meio do qual se seccionam as vias que ligam os lobos frontais ao resto do cérebro, já não é praticado. As primeiras memórias que Taylor tem da sua tia remontam à década de 1970, anos após o incidente. Ele lembra-se dela nos natais, em que "excetuando o facto de ser uma pessoa sem grandes inibições, nunca mais teve outras psicoses, pelo que a lobotomia funcionou".
Georgina acabou por ter outra filha, Hannah, que ficou à guarda do tribunal e que passou muitos anos a entrar e a sair de casas de acolhimento de crianças. Hannah acabou depois por vir a sofrer de depressão e suicidou-se aos 40 e tal anos.
"Senti-me eviscerado", explica Taylor ao falar do momento em que soube da notícia. "Estávamos em inícios de janeiro, uma altura deprimente do ano. Nesse dia estive reunido com um grupo de pessoas bastante afetadas a nível psicológico. Elas tinham histórias marcantes de negligência e abuso na infância, pelo que foi emocionalmente esgotante para mim. E fiquei abalado com o facto de ter colocado tanta energia a ajudar este grupo durante muitos anos e de, no entanto, não ver a minha prima há imenso tempo. Tive este pensamento: "se ao menos eu tivesse aproveitado a semana de férias de dezembro e a tivesse ido visitar … perdi essa oportunidade".
Ao longo do livro de Taylor percebe-se que a sua carreira é uma carga pesada. As memórias das vítimas intrometeram-se em muitos momentos familiares preciosos. Enquanto brincava no parque com os seus filhos quando eles eram mais novos, as pilhas de folhas de outono debaixo das árvores fizeram-no recordar-se do local de um crime. Será que alguma vez consegue libertar-se do seu trabalho? "Pode ser muito benéfico processar todo este material através da partilha com um parceiro, porque ele compreenderá aquilo por que estamos a passar", diz, sublinhando que muitos psiquiatras têm companheiros do mesmo ramo profissional.
Taylor lê romances policiais nórdicos para desanuviar, o que não parece ser o ideal, e os seus gostos musicais dificilmente fogem ao tópico: "só comecei a gostar verdadeiramente de ópera quando me iniciei na psiquiatria forense, mas muitas óperas têm como tema o assassínio e a vingança", salienta.
A preocupação com casos é um compreensível risco do seu trabalho e Taylor admite que se sente atormentado com o receio de que alguém que tratou acabe por vir a cometer suicídio ou um homicídio devido a algo que lhe escapou. "Isso é um grande peso", diz. Ele acha que este sentimento de imaginar o pior remonta a dois homicídios horrendos em que trabalhou em inícios da sua carreira, um dos quais envolvia Anthony Hardy, conhecido como o Estripador de Camden. Em janeiro de 2002, a polícia deslocou-se ao apartamento de Hardy, em Londres, depois de ter sido chamada por causa de uma desavença entre ele e um vizinho. Ao entrarem no seu apartamento, descobriram o corpo de uma prostituta, Sally Rose White, na sua cama. Hardy, que já tinha sido investigado por uma série de violações e atentado ao pudor, tinha sido diagnosticado como tendo um transtorno bipolar, características de personalidade anormais e abuso de álcool.
Hardy foi condenado pelo homicídio de Sally Rose White, mas um médico legista determinou que a causa provável da sua morte tinha sido um ataque cardíaco. Taylor e quatro outros especialistas avaliaram Hardy ao longo do ano seguinte. Atendendo às constatações do exame post-mortem, tiveram de agir baseados na conclusão de que não tinha tido qualquer envolvimento na morte de Sally, mas diagnosticaram uma leve perturbação mental e alertaram para o risco que ele colocava para as mulheres. Depois de alguns meses de tratamento, Hardy teve alta de um hospital psiquiátrico sem o conhecimento de Taylor.
Saltemos para a véspera de Ano Novo de 2002, quando foram descobertas num caixote do lixo partes de corpos de outras duas prostitutas, Elizabeth Valad e Bridgette Maclennan. Hardy era o principal suspeito. Chegou-se à conclusão de que a morte de Sally tinha muito mais pertinência do que aquilo que Taylor e os seus colegas pensavam. "Foi uma noite simplesmente aterradora. Acho que penso nisso em todas as vésperas de Ano Novo". Enquanto dragava o Grand Union Canal à procura do resto dos corpos das vítimas, a polícia fez mais uma descoberta horripilante – "uma cabeça, mas de um outro caso. Foi difícil de superar", diz.
Um inquérito público escrutinou se Tayor e os seus colegas poderiam ter evitado aquelas duas mortes subsequentes. Embora os nomes dos cinco peritos que tinham consultado Hardy durante o ano de 2002 nunca tivessem sido mencionados na imprensa, Taylor dá-se a conhecer, no seu livro, como sendo um deles. Posteriormente, acabaram por ser encontradas falhas no primeiro exame post-mortem realizado a Sally e a causa provável da sua morte foi alterada para asfixia. O patologista foi demitido e o seu registo de qualificação médica foi removido do General Medical Council por desonestidade, incompetência e inúmeros erros. Taylor e os seus colegas foram exonerados com base nos dados de que dispunham aquando da avaliação que fizeram. "Senti-me aliviado, mas fiquei ensombrado pelo persistente pesar quanto ao terrível rumo dos acontecimentos que se sucederam", explica.
Apesar dos desoladores prognósticos de alguns dos seus pacientes, Taylor testemunhou a recuperação de muitos deles que sofriam de graves perturbações mentais e a sua presença foi de extrema importância na sustentação dos seus progressos. Ele diz que os pacientes que se saem bem podem acabar por conseguir viver num alojamento com serviço de apoio, alcançar um melhor nível de estabilidade mental e participar em atividades estruturadas.
"De vez em quando temos resultados ainda melhores do que esse, com pessoas que conseguem um emprego a tempo inteiro e que rumam no sentido de terem um alojamento independente. Há outros indivíduos que adquirem discernimento, apercebem-se do que aconteceu e participam de bom grado nos tratamentos. Esses pacientes são os mais gratificantes e alguns deles regressam para ajudarem outros pacientes que estão nas unidades de terapia".
O que diria a qualquer aspirante a psiquiatra forense? "Há vagas", diz com um sorriso. "É preciso ter estômago – e determinação. Nós vamos ao encontro dos pacientes, não são eles que vêm ter connosco. Temos de nos deslocar a prisões isoladas em locais remotos. E temos de ser capazes de lidar com pessoas a praguejar junto ao nosso rosto e não nos sentirmos ameaçados com isso. Temos de ser capazes de absorver tudo isso". Talvez não seja a melhor publicidade que se possa fazer a um emprego, mas Taylor acrescenta: "Não é para todos, mas é fascinante".
Créditos: Audrey Ward/The Sunday Times/Atlântico Press
Tradução: Carla Pedro
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