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Casal Garcia: 85 anos depois, o que continua a fazer deste um vinho de sucesso?

"Gosto de encomendar frango de churrasco que adoro acompanhar com Casal Garcia", diz Martim Guedes, co-CEO, numa entrevista franca sobre o Casal Garcia, conduzida por Augusto Freitas de Sousa.

Foto: DR
11 de junho de 2024 | Augusto Freitas de Sousa

Em 1939, Roberto Guedes proprietário da Quinta da Aveleda contratou o enólogo francês Eugène Hélisse que por ali tinha parado quando, da janela do comboio entre o Douro e o Porto, avistou as vinhas alinhadas e delimitadas consoante a casta usada, ao estilo francês. Da parceria nasceu um vinho branco que conquistou o mercado português e ultrapassou fronteiras. Martim Guedes, co-CEO celebra os 85 anos e conversa com a MUST.

Sendo que a Quinta da Aveleda se posiciona com vinhos mais caros e com mais qualidade, o terroir é mais importante para os vinhos de gama mais alta do que para o Casal Garcia?

Os vinhos com maiores produções como Casal Garcia são feitos com uvas de várias zonas da região dos vinhos verdes, e, portanto, têm um pouco de cada terroir. Na maioria dos vinhos da gama Aveleda, trabalhamos com parcelas mais específicas com um terroir e uma casta particular. Por isso, são conceitos bem diferentes.

Exatamente como é feito o vinho Casal Garcia? Castas, viticultura, vinificação…

São uvas nossas e uvas compradas de toda a região dos vinhos verdes, predominando o Loureiro, Arinto, Azal, Fernão Pires e Trajadura. É todo vinificado no nosso centro em Penafiel, num processo de prensagem e fermentação muito controlada, sendo o controle e estabilidade das temperaturas um fator crítico. Por exemplo, hoje com vindima mecânica, temos a maior parte das uvas a chegar à adega de noite, o que é uma grande vantagem qualitativa pois garante baixas temperaturas em todo o processo.

"A estratégia é ser uma marca omnipresente, que consegue estar em todos os canais. Isto acontece bem em Portugal e em países de língua portuguesa, mas noutros mercados a presença na restauração é muito difícil." Foto: DR

Há uma perceção de baixo preço e pouca qualidade nos verdes "com gás, leves e para serem bebidos jovens". Concorda com esta afirmação?

Os fatores que por vezes são criticados nestes vinhos são exatamente o que lhe dá a identidade própria que têm todas as grandes regiões do mundo, como por exemplo Champagne. É um estilo bem definido que o consumidor conhece e consegue associar a certas ocasiões de consumo. Nos almoços de verão gosto de encomendar frango de churrasco que adoro acompanhar com Casal Garcia. Nessa ocasião é perfeito. Isto não quer dizer que seja para todas as ocasiões. Historicamente os vinhos verdes eram vinhos mais baratos, hoje essa diferença desapareceu, assumem-se pela qualidade e não pelo preço.

Diz-se entre produtores que há a necessidade de ter um "vinho que pague os ordenados" que normalmente é uma entrada de gama. O Casal Garcia é esse vinho?

Todos os vinhos do portefólio têm de ajudar a "pagar os ordenados". Mas há naturalmente uma "base da pirâmide" que sustenta a organização e lhe dá solidez, e temos muito orgulho em ter a marca Casal Garcia a fazer esse papel.

Tendo em conta a história do vinho e a relação com Eugène Hélisse e ainda as parcelas delimitadas consoante a casta usada, ao estilo francês, porque é que a aposta não foi num vinho desse estilo? Porque não evoluiu nesse sentido?

À época, havia pouco know-how em Portugal, e o "estilo francês" era muito mais evoluído. Felizmente não é esse o caso e achamos que os vários estilos portugueses podem ombrear com os grandes vinhos franceses. Temos orgulho nesta diferença e no estilo marcadamente português.

Nos anos 60 o baixo teor em calorias e álcool não era propriamente um atestado de qualidade e no caso do álcool era o contrário. Os consumidores de Casal Garcia fora de Portugal tinham outros hábitos? Não era o tradicional consumidor de vinho?

É muito interessante essa mudança no consumidor. Se antigamente, quanto mais forte e mais alcoólico, melhor, hoje esse paradigma mudou. Hoje o nosso "claim" de "naturally lower in alcohol" é um fator de diferenciação positiva muito forte. A título de curiosidade, já nos anos 30 havia quem tivesse essa visão. Encontrámos um velho recorte de jornal onde era citado Ricardo Jorge dizendo que "o vinho verde é um vinho leve e fresco, que respeita a inteligência".

Quem foi o autor e "implementador" da frase "Haja Alegria, Haja Casal Garcia"? Ainda é usada?

É muito usada ainda. Foi uma ideia de uma agência de comunicação, foi tão forte que nunca a deixámos. Na época foi inovador, ninguém comunicava vinhos assim. Era sempre uma comunicação muito séria, tradicional, com adegas escuras e pipas de vinho servidos em mesas requintadas. Esta linha de comunicação ajudou a rejuvenescer e democratizar o consumo de vinho, sobretudo entre os jovens. Ainda hoje define a marca, todas as inovações têm de estar alinhadas com o vetor da alegria.

"A qualidade é muito importante em todos os vinhos e Casal Garcia não é exceção." Foto: Martim Guedes

Houve alguma prova cega que o Casal Garcia tenha conseguido um bom lugar? Pode dar exemplos?

Para dar dois exemplos, o vinho verde branco teve 90 pontos dados pelo reputado provador James Suckling e o rosé ganhou o prémio de melhor do ano na Finlândia há poucos anos. A qualidade é muito importante em todos os vinhos e Casal Garcia não é exceção. Trabalhamos sempre com o mote da "melhoria contínua" e por isso a fasquia da qualidade tem de estar cada vez mais elevada.

Quando começaram e porquê as versões branco sweet, rosado, rosado sweet, tinto e tinto sweet?

O primeiro foi o Casal Garcia Rosé (ou rosado) em 2008. Na altura parecia algo muito arriscado, para uma marca tão tradicional. Avançamos com testes piloto com todos os cuidados e foi um sucesso imediato. Aqui percebemos que esta marca tem uma capacidade única para aliar tradição e inovação de forma sinérgica. Percebemos que não é um paradoxo, mas um novo paradigma. As versões doces "sweet" dos vários produtos foi uma ideia do nosso importador alemão. Uma ideia tão simples como eficaz que rapidamente se propagou noutros mercados.

Porquê os Fruitzy? Como são feitos? Quais são os números associados?

É simplesmente um conceito de vinho e fruta (vinho com aroma natural de fruta), que já existia noutros mercados. Não inventamos nada de novo, mas executámos muito bem, com boa integração na marca e um produto de qualidade muito bem conseguido. Foi muito fácil o consumidor "descodificar" a proposta de valor, e por isso, as vendas dispararam rapidamente e hoje representam mais de 700 mil garrafas por ano.

Já agora as sangrias… qual foi a ideia?

Este foi o caso mais interessante. Um choque cultural, para uma empresa vinícola tradicional passar a fazer sangria. Uma categoria tradicionalmente de baixo valor. Um risco para as marcas. Não era evidente. Mas tínhamos um insight: num estudo que indicava que 70% dos consumidores afirmavam consumir sangria no restaurante, mas apenas 12% o fazia em casa. Faltava no mercado uma solução conveniente, uma sangria de qualidade, pronta consumir, que não obrigasse a ter uma receita e descascar fruta. No primeiro ano tínhamos uma previsão de 30 mil garrafas e ultrapassamos as 300 mil. Foi extraordinário.

Onde é vendido o Casal Garcia no estrangeiro? Grandes superfícies, restaurantes, garrafeiras?

A estratégia é ser uma marca omnipresente, que consegue estar em todos os canais. Isto acontece bem em Portugal e em países de língua portuguesa, mas noutros mercados a presença na restauração é muito difícil. Existe, mas é menos do que gostaríamos. Na grande distribuição, a evolução é muito boa nos vários mercados, por exemplo na Alemanha, onde a marca consegue estar em todos os hipermercados e num grande número de supers. Tem presença em todo o país.

"Se antigamente, quanto mais forte e mais alcoólico, melhor, hoje esse paradigma mudou. Hoje o nosso "claim" de "natually lower in acohol" é um fator de diferenciação positiva muito forte." Foto: DR

É possível separar números e faturação do Casal Garcia branco que faz 85 anos dos outros "casais"?

A referência original "vale" dois terços das vendas. As referências mais novas fazem um terço no total, mas ganhando peso, como é normal num caminho de inovação.

Se em 2022 a faturação da Aveleda chegou aos 45 milhões de euros, qual foi o valor em 2023? Qual é a previsão para este e próximos anos?

Foi já superior a 47 milhões em 2023. Em 2024, estamos muito focados o número "redondo" dos 50 milhões, sabendo que vai ser difícil. Mais importante para nós, 2023 foi o 12º ano consecutivo com crescimento de faturação e queremos é ser consistentes e crescer todos os anos.

Pode detalhar os números em Portugal e nas exportações?

Da faturação que referi, um terço é mercado doméstico, dois terços exportação, onde se destaca EUA, Brasil, Alemanha, Canadá e França.

Hoje quem são os clientes em Portugal e no estrangeiro do Casal Garcia. Há um perfil?

É muito transversal. Ao contrário do que se pensa, mesmo as inovações acabam por apelar a consumidores de todas as idades e segmentos. Esta combinação de tradição e inovação torna a marca muito eclética.

O legado está nas mãos dos primos Guedes, ambos CEO do Grupo Aveleda. São apontados como bem distintos. Quais são estas diferenças?

Temos a sorte de ter uma grande convergência nos valores e na forma de ver a empresa, mas, por outro lado, temos valências complementares, já que o António estudou Agronomia e eu estudei Gestão. Assim, dividimos com naturalidade as áreas produtivas e de gestão, consensualizando as decisões estratégicas.

"É todo vinificado no nosso centro em Penafiel, num processo de prensagem e fermentação muito controlada, sendo o controle e estabilidade das temperaturas um fator crítico." Foto: Martim Guedes

Como foi assumir a liderança da empresa?

Foi um processo muito gradual, muito bem gerido pelos nossos pais (meu e do António, que eram irmãos). Trabalhei seis anos com a geração anterior e foi uma passagem de testemunho tão natural que temos dificuldade em perceber a partir de quando é que fomos nós a ficar com o peso da responsabilidade. Em empresas familiares, há que dar muito valor a líderes que começam voluntariamente o processo de sucessão de forma planeada. Há demasiados exemplos em sentido contrário…

Desde que está como CEO o que mudou na estratégia da empresa que tenha a sua (ou vossa) marca?

Sabemos que os primeiros anos são importantes, é quando há mais energia, mais vontade de mudar, de arriscar. A nossa geração ficou na liderança formal a partir de 2013 e, em 2014, desenhámos um plano de seis anos (14-20) que foi muito transformador. Convidámos um administrador muito experiente, externo à família, o Miguel Calado, que nos ajudou muito nesta fase. Nesses anos triplicámos área de vinha, comprámos duas quintas no Douro (incluindo a Quinta Vale D. Maria), uma no Algarve (Villa Alvor), triplicámos o número de produtos, contruímos um novo portefólio de vinhos premium, o volume de negócios cresceu mais de 40% e foi uma revolução silenciosa como disse na altura um jornal.

Quantos hectares e castas de vinhas próprias têm para as marcas da Aveleda?

Na região dos vinhos verdes temos 450 hectares de vinha, o que nos permite abastecer entre 30 e 40% das nossas necessidades. Temos por isso várias castas e solos. Mas há duas castas que se destacam na plantação: Loureiro e Alvarinho.

Como imagina a Aveleda daqui a dez anos? E o Casal Garcia?

Sei que vamos ter de ser mais ágeis a trabalhar um leque de produtos mais alargado, pois o consumidor assim o exige. Espero conseguir manter o mesmo ADN da empresa, o nosso propósito da "melhoria contínua" e o foco em "cultivar grandes marcas", mas sempre adaptados às novas gerações de colaboradores e consumidores. A marca Casal Garcia continuará sempre atual, sempre jovem, na linha da frente da inovação, a espalhar alegria.

Saiba mais Conversa, Casal Garcia, 85 anos, Roberto Guedes, Quinta da Aveleda
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