Cozinheiros estrangeiros em Portugal: o que os trouxe, o que mais e menos gostam e a inevitável gastronomia
Dois chefs italianos, dois brasileiros e um francês falam da sua experiência em Portugal, da gastronomia e das primeiras impressões. Gostam da vida que levam e a qualidade das matérias-primas e das receitas portuguesas não deixam dúvidas aos cozinheiros que, quase todos, mantêm a vontade de ficar por cá.
Emanuele Zingale tem os restaurantes Arte Bianca em Aljezur, na Arrifana e em Sagres. Silvio Armanni é chef no italiano Libertà Kitchen em Lisboa e Lucas Azevedo no japonês Ryoshi também na capital. Maycon Melo lidera o Mirante Rooftop, no Senhora da Rosa Tradition & Nature Hotel em São Miguel, nos Açores, e Julien Montbabut está no Porto no restaurante Le Monument – com uma estrela Michelin – do hotel Le Monumental Palace.
A ideia era procurarem um sítio para viver. Depois de terem viajado longamente pelo sul da Europa, Espanha, Canárias e ilhas portuguesas, Emanuele Zingale e Manuela Mattavelli rumaram ao Algarve. Ambos são surfistas há mais de 25 anos, mas a costa escolhida acabou por ser a vicentina em Aljezur. Emanuele Zingale recorda que de uma forma geral foram sempre "bem recebidos e muitas pessoas ajudaram e incentivaram desde o princípio e de várias maneiras". O chef italiano garante que Portugal "foi e é um país de oportunidades, onde basta acreditar nos objetivos e ter ideias inovadoras". Emanuele gosta de dizer que vive "num canto da Europa, precioso, onde às vezes parece que o tempo parou". Porém, pela negativa, identifica "a carência de serviços básicos", mas deixa ficar a ideia de que "há sempre um preço a pagar para viver no paraíso".
O brasileiro Maycon Melo veio para Portugal reunir-se com o seu pai que tinha imigrado em 2000. A morte da mãe precipitou a vinda "que sempre teve o sonho de nos ter com ele e proporcionar uma vida melhor". Recorda com humor que, quando chegou a Lisboa, "nos primeiros dez minutos, parecia que estava num país que não falava a língua portuguesa, mas isso rapidamente passou com a familiarização com o sotaque". Quanto às primeiras impressões, o chef garante que foram "muito positivas". Refere que valorizou aspetos como "a qualidade de vida e a organização das coisas" e o "gostar de receber bem, de viver, comemorar, estar junto, partilhar momentos, apreciar boa comida, bons vinhos, um pouco como o povo brasileiro", o que fez com que entrar na área da gastronomia "fosse quase natural".
Maycon Melo ficou encantado por ver um povo "que gosta muito de festejar e honrar as suas tradições, algo que surpreendeu muito pela positiva", uma vez que vem de uma cidade pequena no Mato Grosso do Sul que também vive muito "o regionalismo, a partilha e o convívio". O chef brasileiro que foi morar para São Miguel nos Açores, tem saudades dos produtos típicos brasileiros, mas conclui que foi bem recebido "pelos portugueses e especificamente pelos açorianos, já que a maior parte da vida foi passada nas ilhas".
O "estrelado" cozinheiro Julien Montbabut foi convidado pela família de clientes do seu restaurante em França para abrir a cozinha de um novo hotel no Porto. Diz que cedo se sentiu "muito bem e bem recebido" e vai dizendo que "os portugueses são pessoas mesmo lindas e agradáveis". Acrescenta que "o país é pequeno, mas oferece uma variedade de paisagens e terroirs super interessantes". Ficou surpreendido pela gentileza das pessoas e do sentimento de bem-estar dentro da cidade, mas como aspeto negativo nunca pensou ver "tanta chuva no Porto", até porque vai de bicicleta trabalhar todos os dias, o que "não é sempre muito chique".
Silvio Armanni conheceu o nosso país porque o seu pai se reformou e foi viver para o Algarve. O chef esteve cerca de oito anos entre Tóquio, Xangai e Hong Kong e queria mudar-se para a Europa. Lisboa pareceu-lhe "uma cidade cheia de oportunidades", veio em março de 2020, em pleno início da pandemia, e acabou por "abraçar a oportunidade de criar este conceito de comida italiana autêntica tirando partido dos melhores produtos portugueses".
Inicialmente ficou com a ideia de que "ainda há muito para fazer". Vinha de Hong Kong onde, garante, "há uma diferença de cerca de 10, 15 anos em termos de eficiência", mas considera que "está a mudar". Quanto aos portugueses, reconheceu um povo "mais fechado, menos mediterrânico" e, e ainda pela negativa, "a falta de pontualidade e não avisar quando se chega atrasado". Por outro lado, Silvio Armanni lembra que viveu em Tóquio, onde o mercado de peixe "é extraordinário, mas aqui superou as expectativas pela qualidade e variedade do peixe e do marisco".
Com 16 anos, o cozinheiro Lucas Azevedo chegou em 2001 a Portugal para estudar. O pai vivia cá há 20 anos e por isso refere que a integração foi "tranquila, mas na medida em que existem muitas diferenças culturais". Recorda que as primeiras impressões foram "completamente diferentes" das que tem atualmente. Explica que "a sociedade era mais fechada, o que exigia uma adaptação maior tanto na escola como no dia-a-dia". Diria até "mais desconfiados para com aqueles que não conhecem, o que de certa forma se compreende". Reconhece que aos 16 anos "nem sempre se compreende a vida da mesma forma e, obviamente nem tudo foi fácil, nomeadamente no percurso escolar". Ainda assim, afirma que experimentou "um sentimento de pertença a Portugal" e sentiu-se "integrado e incluído". Garante que o país é a sua casa apesar do Brasil continuar sempre a fazer parte de si.
Por razões óbvias, a gastronomia portuguesa, é uma parte essencial da vida de cada um dos cozinheiros. Para o brasileiro Lucas Azevedo "é muito rica em sabor e em produto, quando aliada à tradição de alguns pratos que, ainda hoje fazem parte do quotidiano". Refere que a nossa gastronomia "é uma das melhores, mas está a sofrer uma crise de identidade". O cozinheiro explica que "este aspeto não é necessariamente mau, porém tem que ser acautelado para que não se criem situações desrespeitosas para com os mestres do passado e que são muitos".
Reconhece que "a nova geração de cozinheiros e chefs estão a trazer uma nova interpretação da cozinha" e que, "em alguns casos está a correr muito bem, na medida em que se alia conhecimento e técnica numa reinterpretação de pratos, mantendo ou até exaltando sabores". Lucas confessa "adorar" uma "boa mão de vaca com grão" e, cozinhar um peixe fresco grelhado com batata cozida e um bom azeite fazem do chef "um comensal feliz". Aponta a cereja do Fundão como especial e, noutra abordagem, "também o medronho", mas porque considera que "o seu uso tem sido bastante subestimado pela alta cozinha".
O italiano da Costa Vicentina não tem dúvidas que na última década a gastronomia portuguesa viveu uma mudança profunda "com muita inovação e pesquisa e com um grande tesouro em matéria-prima artesanal que o mundo não conhece e devia conhecer". Emanuele Zingale admite "adorar" comer sardinhas e de as cozinhar de todas maneiras como "em tempura ou marinadas". O chef sustenta que cruza a cultura italiana com a matéria-prima portuguesa "como os queijos de ovelha de meia cura panados em flocos de milho e fritos em azeite extra virgem, o que em Itália se chama Tomino". Garante que podia escrever um livro sobre o tema dos produtos, mas salienta que é um aficionado pelos queijos portugueses de cabra, ovelha, mais ou menos curados, usados frequentemente nas suas cozinhas, além dos "azeites extras virgem rigorosamente biológicos, prensados a frio", com aromas que, não sabe porquê, "nos levam a uma viagem na história".
Para Julien Montbabut, a culinária no nosso país encerra "um grande património e uma grande diversidade do Gerês até ao Algarve". Destaca que "a cozinha tradicional ainda se pode encontrar facilmente nos restaurantes" e lamenta que isso se tenha, de alguma forma, "perdido em França". Aponta o "cozido" como seu prato favorito e lembra que foi nas Furnas nos Açores que o provou a primeira vez. Garante que os mariscos são incríveis: "Com a temperatura da água, as ondas... acho que nunca provei mariscos desta qualidade. Amêijoa, berbigão, percebes, aparecem sempre nos meus menus".
Maycon Melo salienta que "Portugal levou muita coisa para o mundo inteiro, é um país muito rico e isso reflete-se na sua gastronomia". O cozinheiro brasileiro diz que a gastronomia portuguesa "é um encanto para quem gosta de comida e os produtos falam por si", como, entre outros, os alimentos "de extrema qualidade dos Açores". Maycon refere que se tivesse de fazer uma lista do que mais gosta, "ela seria enorme". Garante que "é um sonho conhecer as tradições portuguesas, especificamente as açorianas, e trabalhar com produtos típicos como o ananás, a açafroa, o peixe e o marisco da costa". Acrescenta que gosta muito de "uma boa açorda de migas regionais feitas com a pimenta da terra, de um peixe açoriano" e, quanto aos ingredientes especiais já os mencionou, mas tendo de escolher um, seria o bacalhau por ser "muito versátil e permitir fazer vários pratos na cozinha".
O italiano Silvio Armanni considera que a cozinha portuguesa "tem ingredientes incríveis, mas a forma de cozinhar por vezes é demasiado simples e falta alguma técnica". O chef admite que também "faltam meios para se ter produtos próprios de alta qualidade", e dá o exemplo de Portugal que, "vende porcos pretos alentejanos a Espanha, e eles é que ficam com a fama de ter bom presunto". Silvio destaca a cataplana, o polvo e o pregado e, além do peixe e marisco que referiu antes, gosta especialmente "do porco preto alentejano", que colocou recentemente na carta do seu espaço.
Silvio Armanni do restaurante italiano Libertà Kitchen em Lisboa sente-se bem na cidade, considera o percurso positivo e conclui que não tem planos para se ir embora.
Já Lucas Azevedo no japonês Ryoshi, também na capital, vê-se a continuar por cá com a sua família e entre amigos, mas do ponto de vista profissional "há muito trabalho a fazer e aí sim, os planos estão além-fronteiras". O chef deixa o futuro nas linhas do poeta Fernando Pessoa: "Eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura".
Maycon Melo, que está no Mirante Rooftop, no Senhora da Rosa Tradition & Nature Hotel em São Miguel, nos Açores, salienta que está a viver outro sonho da sua vida que é ser pai. Diz-se "com os pés bem assentes no chão e muito feliz tanto a nível pessoal como profissional". Os seus planos para o futuro passam por continuar neste restaurante em São Miguel, mas quem sabe, "porque não, talvez um dia ter um projeto próprio e dar continuidade ao velho sonho do pai, quando veio para cá, de continuar a dar uma boa vida para a família".
Julien Montbabut, do restaurante Le Monument do hotel Le Monumental Palace no Porto, não pensa em sair até porque a sua empresa está a abrir outro hotel, Maison Albar em Vila Verde, mais pequeno que o Monumental.
Emanuele Zingale, proprietário e chef dos restaurantes Arte Bianca em Aljezur, na Arrifana e em Sagres, não tem previsão nem vontade para sair de Portugal. Diz que os últimos três filhos nasceram cá, moram há 12 anos em Aljezur e o sonho de vida está concretizado: "Amamos este lugar e aqui continuaremos".
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