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Isto Lembra-me Uma História: Succession, os ricos, o poder e a natureza humana

No momento em que a série regressa, para a sua quarta e última temporada, vale a pena olhar para o que move a família Roy e apreciar a arte dos criadores de Succession.

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26 de março de 2023 | Diogo Xavier

Quando Kendall - um fantástico Jeremy Strong - dá um beijo ao pai, Logan - um notável Brian Cox -, no último episódio da segunda temporada de Succession, pensei para comigo "isto lembra-me uma história" e exclamei alto: "É o beijo de Judas!" E era mesmo. São, pelo menos, três os relatos bíblicos, Mateus 26:47–50, Marcos 14:43–45 e Lucas 22:47–48, acerca do princípio da Paixão de Cristo que mencionam o beijo de Judas Iscariotes como meio de denúncia de Jesus, o Nazareno, ao soldados judeus que o foram buscar e prender, com os sacerdotes e os guardiões do templo. "Amigo, a que vieste?", perguntou-lhe Jesus e já não houve resposta, pois a resposta todos a sabiam, e acima de todos, Jesus de Nazaré. Vinham prendê-lo para o julgar em público, sem piedade, e crucificar em martírio.

E foi precisamente isso que fez Kendall Roy quando, depois de menosprezado e dado pelo pai ao sacrifício ("Pai, afaste de mim esse cálice", pediu Jesus duas vezes antes de ser traído e entregue ao martírio), denuncia o aparentemente indestrutível Logan Roy, um dos homens mais ricos e poderosos do planeta, que usara de todos os expedientes para tentar ocultar uma história que o salvasse, a ele e à empresa, a Waystar RoyCo, empresa de comunicação social e flagship brand de um conglomerado familiar que inclui outros negócios e investimentos de lazer e de entretenimento, tais como parques de diversões e viagens de cruzeiro. E foi nesta última que tudo se precipitou depois das denúncias públicas de abusos sexuais, ameaças e até mortes não muito acidentais, tudo ocorrido duas décadas antes terem chegado ao Senado dos Estados Unidos da América.

A primeira temporada foi lançada em 2018. Na imagem, o pai, Logan Roy.
A primeira temporada foi lançada em 2018. Na imagem, o pai, Logan Roy. Foto: HBO

Neste novelo de enganos, traições e atropelos que é Succession, há um ingrediente que nunca falta, ou uma receita que nunca desaponta: a série é uma espécie de telenovela über-sofisticada acerca dos instintos mais primitivos do ser humano, a começar pela própria sobrevivência. Numa primeira leitura, corremos o risco de ser levianos na interpretação do panorama, do cenário, das personagens e das motivações. "Ah, são jogos de poder", "é tudo manipulação", "é tudo sobre ganância e egoísmo" - e não está errado, é certo que também é isso. Mas é muito mais que isso. Se fosse assim tão simples, Logan Roy teria pensado "também tu, Brutus?", na hora da traição, e não foi isso que ele pensou. Logan terá pensado - eu tenho a certeza que foi isso que pensou - "ao que vens, meu filho?" E é nestas nuances, nesta sofisticação do gosto, das escolhas pequenas (mas que fazem toda a diferença) das palavras e dos gestos de cada personagem e dos carreiros por onde o enredo segue, às vezes devagar, outras vezes com vertigem, que Succession consegue a formidável proeza de, ao mesmo tempo, surpreender e revelar precisamente aquilo que esperamos da história.

O exemplo daquele episódio - o 20.º no total da série (e eu, sortudo, ainda só vi duas temporadas, o que significa que ainda tenho a terceira à minha disposição antes de chegar àquela que agora se estreia) - é apenas um de entre vários que raiam o sublime. Para quem, como eu, Os Sopranos ou West Wing representam o grau máximo da escrita ficcional televisiva, esta incrível criação de Jesse Armstrong (Reino Unido, 1970) entra diretamente para o Olimpo reservado à melhor escrita televisiva de sempre.

É que em Succession nada é deixado ao acaso. Nada. Nem um detalhe. Por exemplo, há uma passagem (penso que é no segundo episódio da série - por falar nisso: o episódio de abertura é uma lição magistral de escrita de ficção: apresentam-se, de uma assentada, as personagens, o enredo, as premissas, as fraquezas, as fragilidades, as ambições e a direção do plot sem desvendar um milímetro que seja do que pode vir a acontecer) em que Kendall, substituindo temporariamente o pai, que sofrera um AVC, se apresenta no escritório vestido como um verdadeiro presidente executivo. Porém, o casaco do fato assenta-lhe mal. As mangas são demasiado compridas. Por instantes, parece que olhamos para uma criança com o casaco do pai. Um à parte: Kendall é, talvez, a mais complexa das personagens. Equilibrado num arame fino, entre a perdição das drogas, a inegável inteligência, a falta de força dos cobardes e possivelmente detendo o coração mais puro e bondoso da dinastia, é das figuras mais difíceis de definir da história da ficção televisiva. Ou seja, Kendall é, sozinho, uma obra-prima.

Esta será a última temporada da série de Jesse Armstrong.
Esta será a última temporada da série de Jesse Armstrong. Foto: HBO

Mas há mais detalhes que fazem com que a série ascenda ao mais alto patamar de qualidade. Por exemplo, a ostentação retratada em pormenores que podem passar despercebidos, até porque são discretos. Os óculos de sol e os relógios que cada personagem usa - se os filhos ostentam, de Prada para cima, Logan Roy, velho conservador que nasceu pobre, contenta-se com um Persol de refinado bom-gosto. Também os discursos e diálogos apresentam uma finesse e uma inteligência raras. Se todo o episódio em que os Roy se reúne com os Pierce para um fim de semana genialmente desastroso, há outros momentos da série em que a narrativa é tão exigente que não seria de esperar que conseguisse superar-se. Mas a verdade é que consegue, como naquela passagem em Siobhan "Shiv" Roy (Sarah Snook) tenta demover uma potencial delatora dos casos horrendos ocorridos nos cruzeiros. A explanação lógica de Shiv é tão absolutamente lógica e franca e persuasiva que eu próprio dei por mim a falar com o ecrã, "não sejas parva, faz o que ela diz, ela tem toda a razão, não te desgraces". Como é que alguém consegue disfarçar uma ameaça ao ponto de esta parecer um bom conselho? E ao ponto de o espetador acreditar, sem hesitar, que esse conselho faz todo o sentido?

Parte do elenco nos Emmys, em 2022.
Parte do elenco nos Emmys, em 2022. Foto: Getty Images

Há que dar todo o mérito e todo o valor aos autores de Succession. Para além de tudo o que foi dito atrás, conseguem, retratando uma família de arrivistas, populistas e que revelam a pior face dos republicanos americanos - uma família composta por quatro filhos, todos eles com perfis que se situam entre o mimado irritante que nunca teve de fazer pela vida e o débil mental com flutuações -, dizia eu que conseguem pôr-nos, telespectadores, a torcer por eles, por essa família, e a desejar que sejam bem-sucedidos (todos menos, talvez, o Tom - Matthew Macfadyen, para quem nunca mais conseguirei olhar da mesma maneira depois desta série). Pelo menos, durante mais uma temporada, para que isto não acabe. Depois, logo se vê. Não importa se são Judas ou se são Brutus. O que nós queremos é sangue e imoralidade. Se calhar, Succession é mais sobre nós do que pensávamos. A natureza humana ali retratada talvez não a dos Roy, mas a de cada um de nós.

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