Isto Lembra-me Uma História: Gary Lineker e a censura moderna
O antigo futebolista inglês, hoje comentador televisivo, está no centro de um episódio que deixa a televisão pública britânica com a imagem tremida.
É no mínimo curioso que uma estação de televisão com a dimensão e o prestígio da BBC se disponha, com maior urgência, a pedir desculpas pelas alterações de última hora no alinhamento da programação desportiva do fim de semana do que pelo inequívoco pôr em xeque dos princípios mais elementares da liberdade de expressão. Mas foi precisamente isso que aconteceu.
Começando pelo fim: a emissora britânica ficou sem elenco para apresentar e comentar os programas deste fim de semana [11 e 12 de março de 2023] dedicados à jornada futebolística, maioritária mas não exclusivamente dedicados à Premier League, escalão principal do futebol inglês. E os comentadores e pivots da programação recusaram-se a fazer os programas de sábado e domingo numa demonstração de solidariedade para com Gary Lineker, que foi temporariamente afastado do programa Match Of The Day. Os contornos do afastamento ainda não são claros, é provável que surjam novidades a este respeito nos próximos dias.
Lineker é um antigo craque do futebol inglês. Quem, tendo idade para tanto, não se lembra daquele avançado elegante e letal, ponta-de-lança daquela que foi, talvez, a última seleção inglesa a ter legítimas ambições de ganhar um campeonato do mundo, Itália 90, no caso? Gary Lineker integrava uma equipa que incluía, entre outros, Peter Shilton na baliza, Des Walker, David Platt, Paul "Gazza" Gascoigne, John Barnes e Chris Waddle. Era um portento, uma powerhouse, em bom inglês.
O prestígio que acumulou como jogador, e a facilidade e a clareza de discurso que sempre apresentou ao longo da carreira, dotaram Gary Lineker do perfil ideal para comentar e ser o rosto principal dum programa semanal dedicado ao desporto-rei. E assim a BBC contratou Gary Lineker há mais de duas décadas para integrar o elenco de Match Of The Day. Há cerca de três anos, as partes renovaram contrato e o antigo jogador passou a ser o apresentador mais bem pago da televisão inglesa, auferindo 1,3 milhões de libras por ano, o que dá quase um milhão e meio de euros.
A política de comunicação pública da BBC é bastante rígida com os seus jornalistas. Sob pretexto de proteger a imagem de independência e de imparcialidade associada à cadeia de televisão, que é também estação de rádio, os jornalistas são obrigados a acatar ordens de silêncio e abstenção relativamente aos assuntos mais quentes da atualidade política, bem como em relação a possíveis crises sociais que dividam opiniões. Estamos a falar de políticas que impedem os jornalistas de se expressar enquanto cidadãos e mesmo na sua esfera privada - nas suas páginas pessoais nas redes sociais.
E foi por causa dessas políticas, que configuram uma espécie de censura prévia aos jornalistas, que surgiu esta situação delicada que envolve a BBC e Gary Lineker. Essas políticas, aliás, não configuram apenas essa tal forma subtil de censura: elas teimam em alimentar uma ideia de neutralidade, esse mito impossível de cumprir, no jornalismo, uma profissão desempenhada por humanos informados e pensantes, que se cultivam e que questionam, que avaliam e descrevem, que ouvem, pesquisam e processam a informação que obtêm. Exigir aos jornalistas neutralidade é o mesmo que exigir a um árbitro de futebol que não tenha um clube favorito - como será isso possível? Porque não exigimos justiça, equilíbrio, bom-senso, razoabilidade e honestidade no tratamento dos factos? A neutralidade jornalística é utópica, até porque cabe ao jornalista fazer uma série de julgamentos, logo a começar pela pertinência dos assuntos - mas isso é tema para outro debate e para uma outra história.
O que Gary Lineker fez foi não só legítimo como até razoável: perante as políticas anti-refugiados que o governo Conservador britânico, liderado por Rishi Sunak, pretende implementar, o comentador de Match Of The Day publicou, em resposta a Suella Braverman, secretária de Estado dos Assuntos Internos do Reino Unido, um tweet em que afirmava "isto é para lá de horrível". Braverman apresentava as políticas de asilo que visam limitar o acesso de refugiados para território britânico vindos de França, atravessando o Canal da Mancha de barco. O governo inglês pretende que esses refugiados sejam tratados como migrantes económicos por considerar que vêm de um território - França - que não representa perigo nem dá sinais de hostilidade em relação a essas pessoas. A medida proposta é que os refugiados (ou migrantes, dependendo da perspetiva) sejam deportados para países como o Ruanda e, uma vez lá, possam desencadear os pedidos de asilo.
Good heavens, this is beyond awful. https://t.co/f0fTgWXBwp
— Gary Lineker (@GaryLineker) March 7, 2023
Gary Lineker não fez por menos e publicou o que pensa: é uma atrocidade, é uma medida de uma insensibilidade quase desumana. Defendendo que o fluxo de migrantes, ou refugiados, não é sequer significativo (o ex-futebolista compara, sem mencionar nomes, o Reino Unido a "outros grandes países europeu" - é fácil perceber que se refere à Alemanha, à Itália e à França), o comentador televisivo acusa o governo Conservador de, uma vez mais, atacar os mais fracos e desprotegidos de uma forma cruel e "usando uma linguagem que não é dissimilar daquela que a Alemanha usava no início dos [19] 30", sublinhando o caráter discriminatório das medidas.
O tweet mereceu críticas e aplausos, naturalmente. A dureza das palavras de Lineker não deixará ninguém indiferente, de um lado ou do outro da opinião sobre o assunto. Mas o pior foi o que fez o governo britânico: queixar-se à direção da BBC a propósito da imparcialidade de Lineker. E quando o governo de um país faz queixa à direção da estação pública de televisão desse mesmo país, estamos obviamente perante um caso de pressão desavergonhada. Que a direção da televisão tenha aceitado a queixa sem pestanejar e tenha decidido suspender o comentador "até que se chegue a um acordo acerca do que pode ou não publicar" nas suas próprias redes sociais, demonstra só a falta de caráter dos diretores.
É que Gary Lineker não é sequer jornalista, é um profundo conhecedor do futebol, em especial do futebol inglês, e é uma figura acarinhada pelo público inglês (e não só), o que justifica o seu ordenado principesco. Como - concordando-se ou não com a posição de Lineker - é que uma estação como a BBC não se envergonha de tentar silenciar um cidadão? A propósito, Lineker foi também criticado por ter comparado o governo inglês à Alemanha pré-Holocausto, mas o que o ex-jogador visava era apenas a linguagem usada, que deixava implícito um caráter discriminatório. O comentador não comparou o desempenho do governo britânico com as práticas nazis que mancharam de sangue a história europeia do século XX. E, pensando bem, talvez Lineker tenha razão em comparar a comunicação do governo inglês de 2023 com aquela do Terceiro Reich alemão. Os traços totalitaristas estão à vista.
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