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Crise na restauração: Agora, todos lamentam, mas nada foi feito para prevenir a situação

Aquela palavra de que ninguém gosta anda de novo nas bocas do mundo: crise. Nas bocas e nas barrigas, porque esta não é uma qualquer, é a crise da restauração. E o encerramento de dois eminentes restaurantes de Lisboa deu origem a um debate tão interessante quanto urgente. Conversa com Leopoldo Calhau, Vítor Adão e Hugo Brito.

Foto: Reuters
23 de agosto de 2024 | Diego Armés

Até pode parecer de mau gosto falar-se em "tempo das vacas gordas" quando o assunto é comida e gastronomia, mas a verdade é que parecemos estar perante o fim dessa era no que toca à restauração em Lisboa. Ou, melhor dizendo, a um tipo de restauração que prosperou e se propagou pela cidade durante um tempo de fartura. Falamos dos restaurantes de autor, com todas variantes que o conceito, que é lato, abarca.

Durante os últimos anos, e mesmo contando com uma pandemia pelo meio, não havia rua nem beco, arcada ou esquina que não tivesse o seu restaurante "com um conceito". Foi um tempo de fartura. Todavia, os lisboetas são agora surpreendidos - alguns, pelo menos - pelos anúncios de encerramento de dois ilustres exemplares da cozinha contemporânea na cidade: o Izcalli, resturante mexicano na Av.ª Infante Santo, liderado pelo chef Ivo Tavares, e o Boi-Cavalo, no coração do bairro de Alfama, onde o experimentalismo contemporâneo do chef Hugo Brito faz as delícias de quem tem audácia no palato e curiosidade no coração. E os lamentos, necessariamente tardios como lágrimas sobre leite derramado, não se fizeram esperar, já que se trata de dois sítios especiais da cidade, verdadeiros refúgios da gastronomia de verdadeira excelência que a cidade ainda tem para oferecer a quem nela reside ou a quem a visita.

Juntamente com os lamentos, tem-se assistido a um interessante debate nos círculos próximos da gastronomia e do lifestyle, tanto nas redes sociais como na imprensa. Como é que é possível que a restauração esteja em crise? Os números do turismo apontam todos no sentido contrário, o da prosperidade. O ano de 2023 foi o de todos os recordes de visitantes e dormidas na capital portuguesa e, segundo os dados recolhidos até julho deste ano, as taxas de ocupação na cidade de Lisboa mantinham-se num nível semelhante ao do ano anterior, contrastando com a quebra que se vai registando um pouco por todo o País, e em especial no Algarve. O próprio Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, declarou em 2023, a propósito das Jornadas Mundiais da Juventude, que "o turismo representa 20% da economia de Lisboa. O turismo é emprego!" Como é então possível que a restauração definhe ao invés de prosperar, numa era em que o turismo continua em altas?

"A crise não começou agora, e porque dois restaurantes anunciaram que iam fechar. Prevê-se que outros fechem." Quem o diz é Leopoldo Calhau, chef da Taberna do Calhau, restaurante de autor situado na Mouraria, fora daquilo a que chama "os sítios de passagem". "A crise não começou agora, começou sim, muito silenciosa, há um ano, e poucos quiseram ver e perceber. Pouco se fala, não é assunto interessante. Usando uma expressão popular, o tempo da vaca gorda acabou, foi de férias por tempo indeterminado." Não somos só nós a usar a expressão, portanto.

Falámos com três chefs de três restaurantes lisboetas que cabem no conceito de cozinha contemporânea de autor. Além de Leopoldo Calhau, também Vítor Adão, do Plano, e Hugo Brito, o próprio, do Boi-Cavalo, acederam gentilmente a partilhar connosco as suas perspectivas e reflexões sobre a questão. Há aspetos que todos apontam como causas que contribuem para a tal crise, que importa perceber, antes de mais, que resulta de uma conjuntura e que não se deve a apenas um fator. Isto é, em simultâneo, uma boa e uma má notícia. Boa, porque não há um culpado, um fenómeno concreto, ou um agente do sistema que possa ser isoladamente responsabilizado pelo que se passa; má, porque torna tudo mais difícil de resolver, já que implica um olhar complexo que contemple todo um sistema económico - ou não: o mais provável é que a lógica de mercado siga o seu curso, deixando a sobrevivência para os mais fortes e robustos, ou seja, os grupos de investimento, enquanto aniquila os pequenos estabelecimentos, os que são verdadeiramente, e de uma ponta à outra, "de autor".

SATURAÇÃO

Uma busca rápida na plataforma TheFork é suficiente para resumir o panorama. Puxa-se o filtro para "preço médio acima dos €50 por pessoa", et voilá: há dentro dos limites da cidade de Lisboa 56 restaurantes que se qualificam automaticamente. Se baixarmos para os €45, a oferta sobe automaticamente para os 77 estabelecimentos. Alta cozinha, cozinha de autor ou simplesmente trending spots: a oferta deixa-nos assoberbados. Há obviamente um excesso de oferta ambiciosa, porém nem sempre diferenciada. Muito do que encontramos são conceitos repetitivos ou fracos em qualidade, que se copiam uns aos outros sem acrescentarem, que têm como objetivo único anunciar que inovam, como se a inovação fosse, só por si, uma coisa maravilhosa. Inovar deve acrescentar, surpreender e, podendo, melhorar o que já existia - ou, pelo menos, apresentar uma espécie de possibilidade alternativa de desfrutar de um prato, como se fosse duplicado num universo paralelo.

"Tentando falar de maneira articulada, há demasiados restaurantes em Lisboa." Hugo Brito é perentório e, como veremos à frente, os outros dois chefs afinam pelo mesmo diapasão. "É mais fácil abrir um restaurante do que abrir uma agência imobiliária. Nem sequer é preciso que nenhuma das pessoas que lá trabalham tenha formação. Na verdade, não é preciso nada. Deve ser mais fácil abrir um restaurante do que abrir quase qualquer outro negócio", continua o criador do Boi-Cavalo. E tenta encontrar razões para que tantos estabelecimentos tenham surgido nos tempos recentes, começando pelas pessoas "que querem ser patrões de si próprias, a quem meia dúzia de amigos dizem ‘fazes um bacalhau à Brás mesmo bom, devias abrir um restaurante’, sei lá. Ou até para pessoas que perderam o emprego, que têm algumas poupanças, que estão numa reforma ativada. Deve haver 500 mil justificações". Conclui lamentando que seja "demasiado fácil abrir um restaurante".

"Enquanto nós não regularizarmos a abertura dos restaurantes em Portugal, isto vai ser uma pescadinha de rabo na boca", defende Vítor Adão. O chef do Plano afirma que não percebe "porque é que na arquitetura, na engenharia, é preciso que haja sempre um arquiteto, um engenheiro para uma casa, para um projeto, e tu para abrires um restaurante não tens regulamentação rigorosamente nenhuma". Adão considera que é também por isso que "continuam a abrir e a fechar centenas de restaurantes de pessoas que sabem fazer qualquer coisa de jeito e que dizem que a paixão delas é cozinhar". Só que, considera o chef, "a paixão delas não é cozinhar, é estar dentro deste mundo" - um mundo de onde saem com demasiada facilidade, prejudicando e tirando espaço aos "restaurantes que estão consolidados". Vítor Adão diz lamentar profundamente o encerramento do Boi-cavalo e do Izcalli, considerando que se trata de "uma perda tremenda para a cidade, pois um [Boi-Cavalo] era dos restaurantes mais criativos e mais ousados, e outro [Izcalli] talvez o melhor mexicano, se calhar o único mexicano de raiz". "Sinto que não vão ficar por aqui muitos restaurantes, outros restaurantes famosos vão acabar por fechar se tudo se mantiver desta forma, porque nós temos uma carga elevadíssima de impostos e não estou a ver que haja clientes para todos."

Leopoldo Calhau mostra sintonia e ainda acrescenta ingredientes à receita. "Mesmo assim, continuam a abrir novos espaços todas as semanas, restaurantes de todos os géneros (mas sobretudo asiáticos e ‘europeus’) cheios de conceitos, bares de vinhos nem se fala, casas de brunchs, etc. Agora, restaurantes tradicionais poucos querem abrir, e com isto a nossa identidade e a nossa cultura também se vão. Será que caminhamos para todos sermos iguais?" O chef lança a pergunta, mas logo diz que isso é tema para outra conversa. Fica no ar, talvez um dia lá voltemos.

ECONOMIA

"Não é só a restauração que está em crise, pensar só isso é não pensar sobre a questão no todo." Leopoldo Calhau tem razão e não seria preciso dados e números para lhe consubstanciar a opinião. Ainda assim, aqui fica um dado incontornável: em 2023, segundo números publicados pelo Jornal de Negócios em novembro desse ano, a pobreza cresceu 42% na Grande Lisboa. Um aumento percentual, sendo relativo, será sempre abstrato se não tiver referência, mas podemos deixar aqui um número fixo: em 2022 eram um pouco mais de 300 mil, no ano seguinte passaram a ser quase 450 mil pessoas em situação de pobreza numa área metropolitana com três milhões de habitantes. Numa economia estagnada, "sofrem os donos dos restaurantes e os empregados, mas também os fornecedores. A cadeia toda fica afetada, porque se os restaurantes não vendem, depois também não compram; não comprando, irá começar a haver excesso de produção. Sobre esta questão falou-se muito do vinho. É uma crise económica, é uma crise de consumo. A economia, não circulando, o ciclo interrompe-se", diz o chef. Isto devia ser o bê-á-bá.

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"Nota-se um decréscimo de clientes um pouco por todos os restaurantes. Eu falo por mim, tenho uma quebra de clientes, essencialmente portugueses. Mas sei de outros colegas, com quem falo." Vítor Adão tenta encontrar uma justificação para esta quebra. "O que é que eu sinto? Eu sinto que temos aqui vários fatores que são importantes. O primeiro, e talvez o mais pesado, é o aumento do custo de vida. É impossível um português conseguir aguentar uma casa, mais refeições em restaurantes como o meu regularmente, porque estamos a falar de um custo de vida que aumentou drasticamente, não consigo precisar em quantos por cento, mas acredito cerca de 30% a 40% de custo de vida mais caro." Adão sublinha "sobretudo o aumento das casas, que veio tirar poder de compra". Tem, na equipa, um exemplo, "uma funcionária minha que passou de pagar 400 euros para quase 900 euros por uma casa, ou seja, mais do dobro".

Adão diz não ter problemas em encontrar pessoal para trabalhar no Plano, "tenho pessoas a trabalhar comigo há cinco, seis, sete anos, a equipa é muito coesa", mas este tipo de aumentos na habitação pode criar dificuldades acrescidas a quem procura contratar mão de obra, sobretudo se for especializada. Ou seja, a crise imobiliária também contribui, mesmo que não seja diretamente, para o aumento dos custos da restauração. "As pessoas querem receber mais", diz Hugo Brito quando elenca as diferenças entre a dedicação e a entrega dos funcionários hoje e num passado mais ou menos recente, antes de os restaurantes se terem tornado trendy. Queremos saber se o custo da habitação não poderá contribuir grandemente para esse tipo de exigência. Brito concede, "também, sim", diz. "Quem é que consegue viver em Lisboa com um ordenado de mil euros? Ou, em alternativa, quem é que quer perder duas horas diárias em transportes para isso [trabalhar na restauração na cidade]?" Diríamos, se pudéssemos opinar, que há quem estivesse disposto a perder essas duas horas se elas fossem só duas horas, de facto. Mas quem é que consegue viver com mil euros por mês a menos de uma hora do centro de Lisboa, hoje em dia? Leopoldo Calhau tem muita razão quando diz que a crise é sistémica e deve ser vista como um todo.

TURISMO E EDUCAÇÃO

"Começaram a aparecer os Chipres da vida, as Albânias da vida, aquilo que Portugal era. São destinos mais acessíveis e são capazes de te dar o mesmo ou quase o mesmo que Portugal dá neste momento." Vítor Adão fala dos turistas. Para onde foram? Os números dizem que continuam a vir nas mesmas quantidades que vinham - para Lisboa, entenda-se - em 2023, o ano-epítome do turismo na capital. "Nós somos um país caro e com muito pouco para oferecer. Isso é um problema que debato há anos. Tu vais para Santorini, custa-te o mesmo que ir para o Algarve, e Santorini tem muito melhores condições do que tem o Algarve." Se Portugal mudou - e mudou: ficou mais caro -, então é normal que o tipo de turista também tenha mudado.

Contudo, não se pode culpar o turismo, de um modo genérico, pela crise que agora reconhecemos existir. Hugo Brito fala do exemplo do seu Boi-Cavalo e de como o turismo, num dado momento, impulsionou o negócio. Só mais tarde, com aquilo a que chama "extrema massificação", se deu o efeito inverso, mas mesmo esse não difere, em termos práticos, da atitude geral do público português. "Nós começámos por ser um restaurante de lisboetas e a cidade também era uma cidade principalmente feita para lisboetas. Havia alguns turistas, havia um número bom de turistas, mas eram turistas que vinham para uma Lisboa que ainda era uma espécie de segredo, de cidade pouco divulgada, um bocadinho um tesouro que eles sentiam quase que tinham descoberto eles próprios."

E isso mudou. "Isso mudou muito, não é? Isso mudou muito e nós passámos a ter cada vez mais turismo e, durante uns tempos, isso foi ótimo, durante uns tempos isso permitiu e sustentou a criação de uma série de restaurantes de autor, uma série de restaurantes de classe média-alta, uma série de conceitos mais autónomos e mais específicos." Só que, depois, a partir de certa altura, houve realmente uma massificação. "Isso pode ser bom, mas aconteceram várias coisas", sublinha Brito, antes de sentenciar: "Culpam-se os turistas e nunca se tem culpado os portugueses." "Eu vou dizer uma coisa que não é lá muito popular. Desculpem, há dez anos que eu abri e o público português não está mais polido, não está mais informado em termos gastronómicos, não está mais culto, não está mais curioso. Aliás, provavelmente está pior. É a minha opinião pessoal. Não vejo as pessoas à procura de coisas que mais ninguém conhece."

Este à-parte serve para Hugo Brito explicar a sua ideia acerca dos benefícios daquilo a que poderíamos chamar "bom turismo" para os restaurantes de autor. "A maior parte dos restaurantes de repente viram-se com um influxo enorme de turistas e muitos de nós, vamos ser sinceros, voltámo-nos para esses turistas porque são melhores clientes - gostam, não são chatos, deixam gorjeta, vêm à cozinha dar-nos um abraço, adoram, em vez dos portugueses mal encarados, sempre a refilar, que querem que os tratemos por doutor e por sua excelência só por nos darem a honra de vir ao nosso restaurante. Sim, é muito mais fixe trabalhar para estrangeiros, muito mais fixe. O problema é que, durante um certo período, isto era fazível porque havia menos restaurantes e tínhamos turistas que vinham um bocadinho à procura desse tipo de experiência. Com a massificação tremenda que aconteceu nos últimos três anos, passámos a ter outro tipo de turista, que é tão pouco informado e tão pouco culto e tão pouco interessado quanto o cliente português. E pronto, então começas a ter só pessoas que não estão interessadas realmente numa coisa que não seja barata ou uma caricatura de portugalidade."

Leopoldo Calhau acrescenta elementos para a caracterização dos clientes que acabam por não valorizar o trabalho deste tipo de restaurantes. "Temos os clientes ‘das novidades’, que só vão uma vez, vão para dizer que vão, para mostrar que foram. Na semana seguinte abre um novo e lá estão eles a querer mostrar ao mundo que chegam primeiro que os outros e dão a novidades, mas depois fazem a sua publicação e já não voltam. Iludem os novos negócios, fazem acreditar que tudo vai correr bem." Há desilusão nestas palavras de Leopoldo, mas o chef rapidamente mostra atitude e otimismo - e, quiçá, uma pista a caminho da solução. "Desde que quis vir para esta área que baseei as contas e o negócio na fidelização dos clientes. Muitos só se lembram disto quando o turismo diminui ou desaparece ou passa a consumir menos. Os clientes locais também são muito importantes." Porém, de um modo geral, o chef da Taberna do Calhau concorda com Hugo Brito e com Vítor Adão quando diz que "o tipo de turista mudou, o consumo diminuiu, os portugueses da classe média reagiram como se esperava e não se deixam ver tão regularmente". "Lisboa deixou de ser apetecível para o tipo de turista de há dois anos, boa parte dos turistas de hoje faz lembrar as histórias do turismo de Barcelona", conclui.

O FUTURO

"Restaurantes vai sempre haver", diz Hugo Brito, "mas se calhar projetos que tentem empurrar...Nesse ponto, acho Lisboa particularmente frágil, se calhar disso vamos ter bastante menos nos próximos anos". "Aquilo que nós fizemos, e que alguns fizeram quando nós fizemos, e que foi acontecendo durante alguns anos, eu acho que cada vez se torna mais difícil, porque os montantes financeiros e o risco inerente a abrir um restaurante é cada vez maior."

O chef do Boi-Cavalo, agora que o restaurante que criou fecha as portas, não esconde a sua visão pessimista. "Lisboa vai-se esvaziar de projetos independentes e, cada vez mais, como muitas cidades - se calhar, como a maior parte das cidades e das capitais europeias e mundiais -, vai cada vez mais esvaziar-se de pequenos projetos independentes e cada vez mais ser povoada por grupos de restauração, muitos deles que nem sequer têm atividade exclusiva no campo da restauração, mas que são estruturas económicas e empresariais, pensadas e desenhadas dessa maneira, e não projetos de amor, e projetos criativos." Fica a cidade a perder. Ou o que restar dela.

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Apesar de ser a face mais visível da restauração, o cargo não tem o glamour dos chefs de cozinha. Ricardo Silva do Feitoria, João Marujo, do Loco, ambos em Lisboa, Paulo Cambundo, do Hilton Garden Inn em Évora, Pedro Silva, do Le Monument e Pedro Marques, do Restaurante Gastronómico do The Yeatman Hotel, ambos no Porto, e ainda Julieta Carrizzo, do Sult, em Cascais, respondem.