Viver

Como podemos viver sem a noite?

Outrora festivas, espaços de experiências e de liberdade, as nossas noites, confinadas, escurecem e escapam-nos, a ponto de desaparecerem. Até mesmo o nosso sono está a perder qualidade, degradado pela angústia. Como podemos viver privados do tempo noturno, salvador que rompe com o quotidiano? Por Sofiane Zaizoune

Lost in Translation (2003)
Lost in Translation (2003) Foto: IMDb
29 de janeiro de 2021

No elétrico, como em todo o lado, Louise anda de máscara. Mas, na estação seguinte, é obrigada a retirá-la, ela que testou positivo à covid-19. Na plataforma, e depois no elevador da estação, Louise baixa a cabeça e respira o menos possível para não projetar gotículas contaminadas. Esta jovem estudante de Rennes, com 23 anos, teve este pesadelo praticamente todas as noites depois de o seu teste ao coronavírus ter dado positivo. "Estava aterrada com a ideia de ter podido contaminar os mais próximos e sonhei com isso durante duas semanas", conta. Desde então, os seus pesadelos permanecem, só mudam de cenário. Fazem-na acordar sobressaltada e reaparecem assim que volta a adormecer, como episódios de uma série de terror. "Sinto-me absolutamente esgotada", diz, com um suspiro.

Aumento da ansiedade

Tal como acontece com Louise, a pandemia agita as noites de muitos. Por variados motivos, que por vezes se entrecruzam. Por um lado, o contexto geral, que gera grande ansiedade, provoca insónias. Por outro lado, a monotonia dos dias confinados sob o mesmo teto, nalguns casos, ou – noutros casos – a distância que afasta os amantes que não vivem juntos, comprometem as nossas vidas sexuais, maioritariamente noturnas, e o bem-estar que isso que nos traz. A proibição de sair, mais acentuada de noite do que de dia, priva-nos de experiências que são agora impossíveis, como ir beber um simples copo com os amigos, fazer um longo passeio pela cidade ou desfrutar de uma noite de dança. Por último, o poder regenerador da noite, que é suposto dar-nos forças para mergulharmos num novo dia, está a ser comprometido por uma morosidade ambiente, por uma confusão entre o dia e a noite – por vezes envolta num mesmo véu depressivo. Em suma, será que estamos em vias de perder a noite?

Lost in Translation (2003)
Lost in Translation (2003)

Inevitavelmente, o consumo de soníferos aumentou: os médicos receitaram mais comprimidos para dormir do que o previsto. O mesmo sucedeu com os ansiolíticos e os antidepressivos. E este aumento da ansiedade prossegue.

O medo de contaminação, imagens de hospitais saturados, proibição de sair, crise económica e social… o contexto é propício a uma angústia difusa quase constante. "Acima de tudo, a impossibilidade de se projetar e o sentimento de se estar à mercê dos acontecimentos são a fonte de um intenso stress", explica a psiquiatra Sylvie Royant-Parola, presidente da rede de especialistas do sono francesa Morphée. E isto é particularmente notório junto dos mais jovens e dos mais precários, que são os mais duramente atingidos pela escalada dos problemas de ansiedade ou depressão. Nada de surpreendente, se pensarmos que uns se arriscam a perder o seu emprego, ao passo que os outros se questionam sobre se algum dia encontrarão emprego. E já nem dormem à noite. "A angústia provoca tensões musculares e uma hiperativação, a nível cerebral, de processos estimulantes. É um estado de alerta para responder a uma ameaça. Só que não há, neste caso, uma resposta imediata possível, pelo que temos de ficar à espera".

O escape impossível

As horas prolongam-se, sobrecarregadas com perguntas e pensamentos. "E percorro o meu calvário, nas escadarias da noite", cantava Barbara na canção Les Insomnies. "O sono é a única forma de escape que ainda nos é permitida", diz o filósofo Michaël Fœssel. "É uma forma de liberdade: o corpo, relaxado, já não está obrigado a atender às exigências de produtividade, de estética ou de fingimento de si próprio", sublinha Michaël Fœssel, que é professor da Escola Politécnica e autor de La Nuit, vivre sans témoin (Éditions Autrement) (1). "Mas o sono é um refúgio. Não é uma forma de habitar a noite", ressalva.

Será que ainda reconhecemos a noite, confinados da maneira que estamos? O que conseguimos ver na noite, quando esta se resume à escuridão de um quarto de dormir? Será que, neste momento, perdemos a noite? "Sim, enquanto espaço de experiências radicalmente diferentes daquelas que se vivem durante o dia", responde o filósofo. A começar pela possibilidade de celebrar. Há já sete meses que os clubes noturnos fecharam e que os bares só abrem ao sabor das vagas epidémicas. A noite festiva é restrita, limitada, distanciada. Por natureza, a festa, na medida em que une corpos estranhos, parece a exata definição daquilo que a pandemia nos interditou. Ela é o inverso do distanciamento social. "Qualquer encontro constitui um risco de contágio. Com o confinamento, aquilo que é impossível de dia tornou-se duplamente impossível à noite", prossegue Michaël Fœssel. "Concebemos muito claramente a noite como uma não-temporalidade que deve ser abolida durante o sono".

Lost in Translation (2003)
Lost in Translation (2003) Foto: IMDb

Um espaço catártico

Há quem resista e desafie a interdição. Neste verão, milhares de foliões acorriam todas as semanas ao parque de Vincennes, em Paris, para festas dignas do mundo de antigamente. O mesmo acontecia em Nièvre, Gironde e noutros lugares de França. Desde a rentrée, as noitadas clandestinas têm vindo a multiplicar-se. Na cidade, ocorrem em edifícios de escritórios, onde ninguém ouve a música que faz estremecer as paredes. Outros esforçam-se por fazer entrar as festas, as danças e os copos no estreito quadro do confinamento. As misturas de DJ’s difundidas em direto na Internet atraem multidões. No ecrã, todos veem desfilar os rostos de outros notívagos impedidos de sair. E dançam – sozinhos, aos pares ou em família – como que para esquecer que estão na sala de estar.

Projecto X: Uma Festa Fora de Controlo (2012)
Projecto X: Uma Festa Fora de Controlo (2012) Foto: IMDb

Mas que se procura alcançar com estas festas quase fictícias? Um pouco de liberdade, responde Michaël Fœssel. À noite, longe dos olhares, despimos o papel social que assumimos durante o dia, para nos tornarmos outra coisa. "O ponto comum a todas as noites, festivas ou não, é a menor intensidade da luz, que torna o olhar menos transparente. Podemos deixar-nos envolver pela noite para nos abstrairmos das exigências de identidade que sentimos ao longo do dia. Esta possibilidade de escape é uma forma muito particular de liberdade".

O reino das minorias

Uma liberdade que nos dá, por vezes, o paladar da revolta. Para as minorias étnicas, sexuais ou de género, a noite é um local de união e de compromisso militante. Exemplos disso são as Marchas do Orgulho LGBT+, que nasceram de uma rebelião – em junho de 1969 – por parte dos clientes do bar Stonewall Inn, em Nova Iorque, um dos raros bares gays da cidade [depois de terem sido alvo de uma rusga policial]. Mulheres transgénero negras e hispânicas fizeram frente à polícia. É em comemoração dessa noite, etapa crucial da afirmação dos direitos dos LGBTQ+, que nasce a primeira Gay Pride. A noite, pelo facto de desinibir e nos libertar para sermos quem realmente somos, é também um espaço de conquista. Por isso, lamentar que o sono seja a única possibilidade das nossas noites não é um capricho dos foliões.

Por outro lado, nunca dormimos tantas vezes oito horas como hoje em dia. Antes do final do século XVII, praticava-se aquilo que o historiador norte-americano Roger Ekirch, professor na Universidade Virginia Tech e autor em 2012 de At Day's Close : Night in Times Past (2), chama de sono fragmentado. Os nossos antepassados iam para a cama a seguir ao jantar, levantavam-se durante uma ou duas horas pela meia-noite, e depois voltavam a dormir até de manhã. Essas horas em que despertavam eram canalizadas para ler, conversar, rezar ou fazer amor. No século XVII, as cidades europeias começaram gradualmente a ter iluminação pública, uma forma de as elites recuperarem o controlo da escuridão, povoada de trabalhadores domésticos, marginais, bêbados e prostitutas. O historiador Craig Koslofsky, professor na Universidade de l'Illinois e autor de Evening's Empire (3), apelida de "noturnização" esse esforço de domesticar a noite para a tornar mais segura.

A escravização da noite

Posteriormente, com a industrialização, a noite foi colocada ao serviço da atividade económica. Dormimos para descansarmos do dia de trabalho e para nos prepararmos para o dia seguinte. O tempo noturno, privado, é racionalizado, tal como o tempo – diurno – do trabalho. Do ponto de vista médico, começamos a saber cada vez mais sobre o impacto negativo da privação de sono, que aumenta os riscos de patologias cardíacas, da diabetes ou de hipertensão. Assim, não dormir é também resistir a esta dupla injunção. "Os notívagos, tal como os vigilantes, marcam a disparidade, e essa disparidade é um luxo na aceção daquilo a que Georges Bataille chamava de despesa improdutiva", explica o filósofo Michaël Fœssel. "A menos que se tenha um ritmo totalmente inverso, como os trabalhadores da noite, se ficarmos acordados à noite estaremos a acrescentar essas horas despertas ao acumulado do dia. Estamos assim a desperdiçar uma coisa que não é necessária, nem sequer de ordem económica, por oposição ao equilíbrio somático medicamente aconselhado".

O Operário (2004)
O Operário (2004)

Apesar disso, esse próprio equilíbrio está ameaçado. O que é que ainda distingue, nesta era da globalização, a noite do dia? 80% do planeta e mais de 99% da Europa e dos Estados Unidos têm um céu noturno poluído com luz artificial, segundo um atlas mundial divulgado na revista Sciences Advances em 2016. Nalgumas regiões, como em Singapura, o halo luminoso é tal que ninguém consegue verdadeiramente ver a noite. Uma luz invasiva, omnipresente e nefasta para os animais e plantas. E que encurta incessantemente as noites daqueles que dormem. Até que, em 2019, pela primeira vez, os franceses dormem em média sete horas por noite, segundo a Santé Publique France [agência nacional de saúde pública em França].

Os ecrãs tenebrosos

Mesmo nas nossas casas, com as persianas fechadas, mergulhados na escuridão total, a noite escapa-nos, beliscada pelos nossos aparelhos tecnológicos. A começar pelos seus ecrãs, é claro, que emitem a mesma luz esbranquiçada que os néons ou os painéis publicitários. Mas também, mais sorrateiramente, pelos dados que recolhem permanentemente.

Newness (2017)
Newness (2017) Foto: IMDb

Ao mesmo tempo que a noite nos permite ficarmos longe dos olhares, os nossos aparelhos conectados registam onde dormimos, com quem e durante quanto tempo. Alguns medem até a profundidade do nosso sono, o nosso ritmo cardíaco ou a nossa respiração. Está, pois, fora de questão conseguir sair, mesmo que por algumas horas, da nossa identidade, de nos tornarmos outra coisa que não aquilo que fazemos, produzimos ou consumimos. "Somos reconhecidos pelas máquinas durante a noite, tal como pelos seres humanos durante o dia", resume Michaël Fœssel. "A lógica diurna desliza assim para uma temporalidade que lhe deveria ser retirada. Com efeito, estas tecnologias contribuem para construir um universo onde nunca é de noite para ninguém".

Créditos: © Sofiane Zaizoune/Madame Figaro
Tradução: Carla Pedro

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