Chegou o Enxarrama, o vinho que nasceu para destronar o Pêra-Manca
António Maçanita recriou o Enxarrama, “o mais apreciado de todos os vinhos de Évora”, como se dizia no século XIX. E a ambição é clara: bater-se de igual para igual com o melhor da região.
No Alentejo produzem-se muitos e grandes vinhos, mas atrevemos-mos a dizer que apenas um atingiu o estatuto de icónico: o Pêra-Manca. Agora, António Maçanita está determinado em mudar este cenário com a recriação do Enxarrama, um vinho que traz consigo um passado tão rico quanto o do seu arqui-rival.
As primeiras referências a ambos remontam à Idade Média, com registos sobre os vinhos de Enxarrama datados de 1321 e sobre os de Pêra-Manca em 1342. Os nomes não se referiam a produtores, evidentemente, mas a lugares e rios – o Enxarrama (hoje Xarrama) e a ribeira de Pêra-Manca –, que ofereciam condições únicas para produzir bons vinhos na aridez do Alentejo.
Assim, e tal como a Cartuxa decidiu, em 1990, recriar esse vinho histórico que, dizem, seguiu a bordo das naus de Pedro Álvares Cabral, também a Fita Preta, de Maçanita, decidiu agora recriar a outra referência do Alentejo – e está em ótima posição para o fazer, uma vez que o rio "nasce num cabeço vizinho à propriedade" e que o Paço do Morgado da Oliveira foi, durante séculos, a maior e mais importante propriedade da região, fronteira com Évora.
Os ecos da importância do Enxarrama chegam-nos, ainda, pelas palavras de Ferreira Lapa que, em 1867, escreveu: "De todos os vinhos de Évora o Enxarrama é o mais apreciado e obtém o melhor preço em Lisboa (...) Ele é mais que nenhum outro de Évora procurado para a venda a retalho nos armazéns de Lisboa. (...) Em Évora há outros sítios mais ou menos nomeados pelos seus vinhos; entre eles os de Redondo e os de Pêra-Manca, lugar que fica a uma légua a sudoeste da cidade e parece terem sido cantados por Camões."
João Inácio Ferreira Lapa, juntamente com António Augusto de Aguiar e o Visconde de Vila Maior, foi responsável pelo mais extenso estudo sobre o estado das vinhas em Portugal no século XIX, já em plena crise da filoxera. Dividiram o país em três regiões, ficando Ferreira Lapa encarregado do sul e são dele, também, as notas de prova nas quais António Maçanita se vai basear para fazer renascer este vinho. Dizia, então, Ferreira Lapa: "O vinho do Enxarrama é bastante tinto e encorpado, crystallino, cheiro tartsoso, e não suave, de sabor quente e macio, com travo (...) bem pronunciado. Não é um vinho alcoólico, nem aromático, é um vinho forte e bastão, que bem por causa do seu tanino pode tolerar o seu volume em álcool."
Anatomia de um vinho
Para um enólogo como António Maçanita, que tem tanto de historiador como de disruptivo, terá sido um desafio irresistível pegar nestas notas do século XIX e fazer um vinho no século XXI. Sendo impossível conhecer exatamente as técnicas ou as castas usadas na época, a abordagem de Maçanita "não foi a dos ingredientes", mas antes a do "espírito da nota". Até porque está igualmente seguro de que "os nossos antepassados ficariam muito desiludidos, se nos limitássemos a tentar copiá-los, com tudo o que hoje temos e sabemos". Assim sendo, começa por utilizar Alicante Bouschet, casta que não existia (estava a ser criada por essa altura no Languedoc francês), mas que se adaptou extraordinariamente bem ao Alentejo, produzindo vinhos encorpados, com notas de frutos negros, cor carregada e taninos marcantes – tudo o que o Enxarrama devia ser. A esta, juntou, em muito menores doses, Trincadeira, Aragonez, Moreto e Castelão, castas bem enraizadas na tradição alentejana.
O resultado é um vinho cheio de corpo, que quase se pode mastigar. Concentração e potência. É alcoólico (15º) e tremendamente saboroso. Os taninos estão bem presentes, mas não é taninoso. É o tipo de tinto ideal para acompanhar carnes mais fortes, daquelas que se sobrepõem a quase todos os vinhos − mas não a este. A colheita é de 2014, foi engarrafado em 2017, e está pronto a ser consumido, embora prometa ganhar em elegância com o tempo. Recomenda-se servi-lo a uma temperatura ligeiramente mais fresca para que não fique tão "quente", como refere o texto original, e para equilibrar o álcool. O preço é igualmente premium: 480 euros.
Como as vinhas do Morgado foram replantadas por Maçanita a partir de 2017, a maioria das uvas deste Enxarrama provém de uma quinta vizinha ao Paço – outrora parte do Morgado –, chamada Oliveirinha. São vinhas com quase quarenta anos, predominando Alicante Bouschet. Este é um vinho que poderá não ser lançado todos os anos, mas já estão engarrafados 2015 e 2016, aguardando apenas o momento certo para chegar ao mercado.
As diferentes caras do Alentejo
Este projeto obrigou Maçanita a repensar algumas certezas sobre os vinhos do Alentejo, uma vez que boa parte da sua luta mais recente se fez contra os tintos mais pesados, defendendo, pelas evidências que encontrava nas vinhas mais antigas, que os tintos tendiam a ser mais leves e elegantes no passado. Os Paulistas, por exemplo, que faz no Chão dos Ermitas, uma vinha centenária perto do Redondo, é praticamente o seu oposto em termos estilísticos. Todavia, os relatos do Enxarrama e outros – cita igualmente o Visconde de Vila Maior – mostram como vinhos mais leves e vinhos encorpados sempre coexistiram, levando-o a concluir que essa diversidade deve ser explorada, e não limitada. Mais do que um rival para o Pêra-Manca, o Enxarrama é uma celebração do Alentejo em toda a sua diversidade e potencial.
Um branco a acompanhar
Paralelamente ao Enxarrama, Maçanita lançou o primeiro branco da propriedade, o Morgado de Oliveira NV (de Non Vintage, ou sem ano de colheita). É uma mistura de 80% da vindima de 2021 com 20% das colheitas de 2019 e 2020. Este branco provém da primeira vinha biológica da Fita Preta, plantada em sequeiro e modo biológico, e que por isso enfrentou inúmeros desafios iniciais. As videiras que resistiram, no entanto, revelaram-se extraordinariamente adaptadas ao terreno e deram origem a um vinho equilibrado, fresco e complexo, com notas cítricas, aromas a fruta de caroço e uma acidez vibrante. É um 100% Arinto, e apesar do teor alcoólico também ser elevado para um branco (13º), apresenta-se surpreendentemente leve no paladar. António Maçanita admite que para o futuro ainda está indeciso de mantem o modelo atual de solera, (mistura de colheitas) ou se vai optar por ano específico. Tal como não sabe se passará a fazer um blend com Perrum e Folgasão, as outras castas brancas que escolheu plantar. O preço? Igualmente premium: 150 euros.
Um grande Paço para o homem…
O Morgado da Oliveira terá resultado de uma "troca" realizada a 6 de outubro de 1304 entre o então arcebispo de Braga, D. Martinho Pires de Oliveira, e o rei D. Dinis. O rei ficou com a posse da vila da Vidigueira, enquanto o arcebispo recebeu "uma parcela das terras reguengas" (isto é, pertencentes à Coroa) que D. Dinis detinha junto de Évora. Eram terras com solos férteis e incluíam já uma importante componente vinícola, que terá sido determinante para a prosperidade económica e social dos Morgados de Oliveira ao longo da história.
Em 1485, D. João II – que visitou e pernoitou no Paço em várias ocasiões – ordenou que não se molestassem os mercadores bretões que iam a Évora comprar vinho. Este facto demonstra não só o interesse europeu pelos vinhos da região, como também a escassez que levava os locais a oporem-se à sua venda. Já em 1816, o francês André Julien, um dos primeiros responsáveis pelo estudo que de classificação dos Grand Crus Classés de Bordéus, referia também o Alentejo como uma região de vinhos de qualidade e reputação. Alertando igualmente para a sua escassez, reforçando a ideia de raridade.
Quando António Maçanita adquiriu o Paço, em 2016, ao último Morgado, D. João Saldanha, deu início a uma profunda transformação dos terrenos agrícolas, onde já praticamente não existia vinha, e a uma investigação histórica detalhada sobre a propriedade e o edifício. Uma equipa de seis historiadores e arqueólogos revelou factos fascinantes. Descobriu-se, por exemplo, que este é "o mais antigo paço medieval civil e o maior paço rural gótico de quantos se conservam no país". Apenas o Paço dos Arcebispos de Braga é mais significativo em dimensão, o que sublinha a importância histórica da propriedade.
A investigação revelou também a ligação central do Paço à agricultura na microrregião do Louredo, onde se terá instituído o mais antigo e continuado sistema de emparcelamento para produção de vinho registado no país. A equipa encontrou ainda o velho lagar de pisa a pé da herdade, que é duas vezes maior do que qualquer outra estrutura semelhante conhecida. E, finalmente, a pesquisa ajudou a estabelecer a conexão histórica entre a Oliveira, o Louredo, o rio "Xarrama" e o Enxarrama, demonstrando a ligação do Paço ao famoso vinho, dando carta branca a Maçanita para avançar com este projeto tão ambicioso, carregado de autoridade e autenticidade.
Permitiu-lhe, ainda, explorar uma vertente de enoturismo que vais surpreender a todos, mas isso terá de ficar para um próximo capítulo…
António Maçanita recriou o Enxarrama, “o mais apreciado de todos os vinhos de Évora”, como se dizia no século XIX. E a ambição é clara: bater-se de igual para igual com o melhor da região.
O novo livro "Pela Boca", do chef Henrique Sá Pessoa e do jornalista Fernando Alvim. é composto por 12 receitas, todas elas com três pratos diferentes. A Must teve acesso a uma, tendo já partilhado o prato principal e a sobremesa, faltando apenas a bebida.
A Must teve acesso a uma das 12 receitas do novo livro "Pela Boca", do chef Henrique Sá Pessoa e do jornalista Fernando Alvim.
Um receita que requer algum cuidado na sua preparação, mas que, se tudo correr bem, será a estrela de qualquer refeição. Esta é uma das muitas receitas presentes no livro "Pela Boca".