Prazeres / Lugares

Viagem até às Rias Baixas, na Galiza. Entre a terra e o mar

A ria é casa de uma gama variada de frutos do mar. Na terra nascem as videiras que dão origem ao afamado Alvarinho (denominação de origem Rias Baixas). O enoturismo é muito mais do que uma simples prova de vinhos, é uma viagem cultural e etnográfica às raízes de um povo.

Foto: DR
02 de agosto de 2024 | Maria João Veloso

Visitar as rias baixas, na Galiza, é quase como regressar a casa. A língua galega é próxima da portuguesa e não há necessidade de se falar "portunhol". Se a viagem tiver incidência no enoturismo tanto melhor, porque quer a mesa, quer o vinho, são canais agregadores. De Lisboa à Quinta de Couselo são cinco horas de viagem. Chegados à Galiza, de estômagos vazios, encontramos o "norte" no sorriso de Tamara Rodriguez. Somos recebidos em tão bom português, que perguntamos se por acaso a responsável de enoturismo é portuguesa. "Estudei artes visuais no Porto", explica, e, como se vê facilmente, aprendeu a falar a Língua de Camões. Bem mais velha que a sua história, é a do local, que remonta ao tempo dos monges de Cister do Mosteiro de Santa María de Oia no século XII. O símbolo da quinta é um par de pinheiros mansos centenários, uma espécie que, apesar de não ser autóctone do lugar, lembra que o chão que pisamos é fértil. Aliás, foi esta fertilidade que atraiu os monges que além da horta introduziram a vinha nestas bandas. O vinho do Rosal tem fama de ser medicinal desde essa altura. A muralha do tempo dos monges ainda lá está para contar a história. A prova de vinhos é uma autêntica aula de enologia. Os protagonistas são proprietários de uma frescura indescritível. Experimentamos o Rosal (90% alvarinho, 5% loureira, 5% caiño blanco) e a língua e o palato sentem-se a reaprender de novo os sabores. 100% Alvarinho, o vinho Valdamor "representa o amor das famílias desavindas", e tem notas cítricas e de pêssego, é um vinho elegante que combina com os pratos tradicionais da Galiza. No limite da Quinta dá-se o encontro com o rio Minho e respetivas águas límpidas que pedem mergulhos nos dias quentes de verão. Situada no vale do Rosal, a dez minutos de carro do oceano Atlântico, este microclima contribui para o sabor singular das uvas das vinhas aéreas. Se a adega fica num edifício centenário, esta empresa familiar tem os olhos postos no futuro. Multifacetada, a quinta realiza concertos, provas de quatro vinhos, com quatro queijos e workshops diversos cuja temática discorra à volta do néctar dos deuses.

De Lisboa à Quinta de Couselo são cinco horas de viagem.
De Lisboa à Quinta de Couselo são cinco horas de viagem. Foto: DR

Altos de Torona  

Seguimos para os Altos de Torona, onde provamos o único espumante da região do Rosal. Tendo as vinhas como pano de fundo e como cicerone Angela Santoalla, conhecer esta adega vem sublinhar que o enoturismo é muito mais que uma experiência vínica, mas também um encontro com a natureza. "A ideia é começar por um passeio pelas vinhas e, de seguida, parar e provar o vinho que estas produzem." Esta casa começou num registo familiar. Era ali que se preparavam petiscos para a família e clientes. Recentemente foi remodelada e está equipada com uma cozinha de topo para realizar casamentos e batizados, além das costumeiras provas de vinhos. Perseguindo esta premissa de que uma viagem de enoturismo está intimamente ligada à história do local e às suas gentes, dormir no Nande Hotel é toda uma experiência sensorial onde o hóspede se sente em casa. A aula sobre vinho prossegue na Adega de Señorio de Rubiós, atentos às explicações de Antonio Méndez. A adega, nascida em 2005, realiza visitas para amadores, mas também visitas mais especializadas que contarão com a presença do enólogo da casa. One man show é António, que nos serve um delicioso jantar que inclui os famosos croquetes ibéricos, camarões panados e vieiras na chapa e gratinadas. As últimas são um dos ex-libris gastronómicos da região. Escusado será dizer que o jantar é harmonizado com vinho Señorio de Rubiós.

Seguimos para os Altos de Torona, onde provamos o único espumante da região do Rosal. Tendo as vinhas como pano de fundo e como cicerone Angela Santoalla, conhecer esta adega vem sublinhar que o enoturismo é muito mais que uma experiência vínica, mas também um encontro com a natureza.
Seguimos para os Altos de Torona, onde provamos o único espumante da região do Rosal. Tendo as vinhas como pano de fundo e como cicerone Angela Santoalla, conhecer esta adega vem sublinhar que o enoturismo é muito mais que uma experiência vínica, mas também um encontro com a natureza. Foto: DR

Castelo de Soutomaior  

Como nem só se vive de pão e vinho, o dia seguinte começa com uma incursão ao Castelo de Soutomaior, a joia do património fortificado das Rias Baixas, na região de Pontevedra. Construído no século XII, esta é uma das fortalezas melhor conservadas da Galiza. A visita ao castelo oferece uma lição da história do lugar. Palco de batalhas e lendas, o castelo é também fértil em personalidades marcantes. Destaque para Maria Vinyals, escritora e feminista galega, nascida ali em 1875. Bucólicos e frescos, os seus jardins e bosques compõem o parque botânico mais importante da Galiza. No caminho das Camélias e no jardim histórico do século XIX podem ver-se árvores exóticas como a sequoia, a araucária do Chile ou o cedro japonês. 

O Castelo de Soutomaior, a joia do património fortificado das Rias Baixas, na região de Pontevedra. Construído no século XII, esta é uma das fortalezas melhor conservadas da Galiza.
O Castelo de Soutomaior, a joia do património fortificado das Rias Baixas, na região de Pontevedra. Construído no século XII, esta é uma das fortalezas melhor conservadas da Galiza. Foto: DR

Casal de Umia  

Conhecer uma região implica conhecer a sua gastronomia, e é isso que fazemos ao almoço no Casal do Umia, em Cambados. Emilio Agra Pinheiro foi cozinheiro num barco de pesca e hoje dedica-se à restauração de alma e coração. É ele que nos traz polvo à feira, cozido com colorau e cebola. "Pomos muita cebola porque antigamente o polvo que se apanhava não era suficiente para alimentar uma família inteira", explica. Uma espécie de homenagem à carestia da vida. Segue-se peixe galo assado no forno com batata e cebola. À mesa nunca faltam as vieiras na chapa, símbolo também dos peregrinos do caminho de Santiago de Compostela. Numa mesa galega, o vinho alvarinho é outro atributo que marca presença. No caso faz-se a homenagem sentida a Román Martinez Méndez, pai da proprietária. Além de restaurante, o casal do Umia é também um alojamento local só para adultos. Já recebeu a visita da Infanta Helena de Espanha, que figura na galeria dos famosos do restaurante. Um dos projetos em curso é ter uma sala de bailes para maiores de 50 anos. Mas a nossa dança da tarde acontece no Pazo de Rubianes, em Vilagarcia de Arousa. Com mais de 600 anos de vida, neste paço prova-se o "alvarinho das camélias". O convite está feito: caminhar entre vinhas e camélias tendo a ria na linha do horizonte. A história do lugar é antiga e é difícil não arranjar distrações, seja o barulho da água, o coaxar das rãs ou uma cobra que segue o seu caminho. Destaque para a capela e respetivo retábulo do século XVI e o confessionário do século XVII. No fim do passeio, já se sabe, brinda-se com alvarinho acompanhado com queijo, azeitonas e crackers.

Conhecer uma região implica conhecer a sua gastronomia, e é isso que fazemos ao almoço no Casal do Umia, em Cambados.  Emilio Agra Pinheiro foi cozinheiro num barco de pesca e hoje dedica-se à restauração de alma e coração.
Conhecer uma região implica conhecer a sua gastronomia, e é isso que fazemos ao almoço no Casal do Umia, em Cambados.  Emilio Agra Pinheiro foi cozinheiro num barco de pesca e hoje dedica-se à restauração de alma e coração. Foto: DR

Cozinhar e pescar à galega  

Acabar o dia na Quinta de San Amaro com as mãos na massa é muito mais do que se poderia desejar. Neste workshop de gastronomia galega aprende-se que "para cozinhar bem tem que se usar de muita psicologia", como diz a cozinheira e blogger Rocio Garrido Caramés. Do menu destaca-se o arroz de marisco, sem esquecer a empanada, as amêijoas e o polvo à galega. Neste mergulho às profundezas da gastronomia galega cozinha-se antes e come-se depois. À mesa não pode faltar alvarinho, desta feita da Adega Avô Roxo. 

Se um dia se cozinha, no outro marisca-se. María José Cacabelos, presidente da Guimatur, recebe-nos com um sorriso. O dia nasceu cinzento e a mariscadora brinca: "menos mal que nos queda Portugal". Muitas mulheres da cidade piscatória de Cambados escolheram mariscar. O verbo mariscar, aqui, expande-se, porque é sinónimo de autonomia da mulher, que trabalha conforme as marés e nos intervalos fica com tempo para cuidar dos filhos. As afamadas amêijoas da Galiza apanham-se ali durante a maré vazia. E são fruto de muito trabalho e suor. "Aqui apanham-se as variedades japonesa, fina e babosa", elucida Maria. A Guimatur é uma associação cultural composta por mulheres do mar de Cambados cujo propósito é difundir a cultura do mar e os valores das mariscadoras. Através da associação organizam visitas guiadas, onde o turista pode juntar-se à apanha de marisco e conhecer de perto esta singular forma de vida.

Neste workshop de gastronomia galega aprende-se que
Neste workshop de gastronomia galega aprende-se que "para cozinhar bem tem que se usar de muita psicologia", como diz a cozinheira e blogueira Rocio Garrido Caramés. Foto: DR

Paço Medieval 

Na medieval praça de Fefiñanes visitamos o solar da família Gil Armada, cuja fachada tem influência do Renascimento italiano. Percorrer as diferentes salas obriga a uma viagem no tempo. Destaque para umas gravuras da autoria de Francisco Goya inspiradas na obra de Velasquez. No pomar junto do bosque descobre-se uma destilaria artesanal que produz as coloridas aguardentes Gil Armada. De sabores vários. De cor azul, o Licor Mar Atlântico pode ser também uma bonita peça de decoração.

Na medieval praça de Fefiñanes visitamos o solar da família Gil Armada, cuja fachada tem influência do Renascimento italiano.
Na medieval praça de Fefiñanes visitamos o solar da família Gil Armada, cuja fachada tem influência do Renascimento italiano. Foto: DR

Mais Adegas…   

Harmonizar os vinhos com a história de Manuel Otero é a grande mais valia das Bodegas Granbázan. Desaparecido em abril passado aos 77 anos, Otero, a quem chamavam carinhosamente Manolito, foi um dos grandes impulsionadores da Denominação de Origem Rias Baixas.  

Anabel Garcia, responsável de enoturismo e eventos, é quem faz as honras da casa num almoço galego de sabor irrepreensível onde as estrelas da companhia são os vinhos da casa. Amante de vinho e de viagens, Otero fundou esta adega no Vale do Salnés no início dos anos 80. Os mais crédulos dificilmente acreditarão que este edifício revestido a azulejos azuis foi construído de raiz há cerca de 40 anos, já que à primeira vista se assemelha a um château francês. Rodeado de velhas vinhas de Alvarinho, conhecer este lugar é todo um roteiro ao vinho criado por um homem visionário que, depois de uma viagem à Alemanha, decidiu aproveitar o know how para criar uma marca hoje conhecida em todo mundo. Bioquímico, Pedro Martínez Hernández, o atual proprietário, está a adaptar a casa aos novos tempos, sem esquecer as tradições. A três quilómetros de Cambados, Granbazán dispõe de um salão de 500 m2 para banquetes empresariais e familiares, mas também de um restaurante para refeições mediante marcação prévia.

No mundo do vinho tanto há lugar para grandes como para pequenos produtores, e é com esta premissa que conhecemos o Lagar de Besada.

Palco de batalhas e lendas, o castelo é também fértil em personalidades marcantes. Destaque para Maria Vinyals, escritora e feminista galega, nascida ali em 1875.
Palco de batalhas e lendas, o castelo é também fértil em personalidades marcantes. Destaque para Maria Vinyals, escritora e feminista galega, nascida ali em 1875. Foto: DR

Maria Sineiro e o marido, Pedro Ballesteros, dão a cara por este projeto que começou a crescer na antiga garagem do pai de Maria, onde a produção – única e exclusivamente para consumo familiar – se expandiu. Ali encontram-se vinhos "feitos com paciência e com a menor intervenção humana", explica Maria. A marca nasce em 1988 e sabe que, de uma atitude perseverante, nascem bons vinhos. A casta, como não poderia deixar de ser, é alvarinho, rainha e senhora destas paragens. Criada em 2013, de olhos postos na ria de Arousa, a Bodega Vionta é conhecida por produzir alguns dos melhores alvarinhos da região.  Despedimo-nos da Galiza com o Alvarinho Depende, que faz maridagem com os acepipes regionais que nos servem à mesa.  

A partir de hoje sabemos que por trás de cada copo de vinho há uma história onde, aos ensinamentos ancestrais, se ligam também práticas de sustentabilidade. Quando lhe servirem um copo de Alvarinho, use os cinco sentidos, porque que ele merece. 

Moradas úteis:

Quinta de Couselo  

A fazer vinho desde 1864, esta adega histórica da região no vale do Rosal é eximia na arte de fazer vinhos e receber. 

Altos de Torona  

Ao todo são 94 hectares de vinha com vistas incríveis para o rio minho e para Portugal. Além de uma gama diversa de vinho alvarinho, ali encontra o único vinho espumoso do Rosal. 

Casal do Umia  

Situado em Cambados, este restaurante e turismo rural é um lugar para descansar e por isso não recebe crianças. Ideal para namorar, escrever ou para fazer uma viagem espiritual.  

Pazo de Rubianes  

Caminho para peregrinos, jardins com várias espécies de camélias fazem do Pazo de Rubianes um lugar especial. Ali a idade é um posto, já que o lugar foi fundado no ano 1411 e terá sido reconstruído 300 anos depois como um palácio afrancesado. Alheios à história, os vinhos da adega são bastantes apreciados. 

Quinta de San Amaro  

Um pequeno hotel rural e restaurante com apenas 14 quartos, onde Nacho Crespo convida os hóspedes a disfrutar do meio rural galego. Uma estadia sossegada onde o staff está sempre próximo do hóspede para que se sinta em casa.    

Bodega Gil Armada  

Visitar um palácio, a destilaria e o bosque é a cartada do palácio Gil Armada. Ideal para amantes de história para verem passo a passo como se vivia num palácio.  

Bodegas Granbazán  

À primeira vista é um castelo francês no meio das vinhas. Mas a Bodega Granbazán resulta, sobretudo, do sonho de Manuel Otero. Hoje, Pedro Martínez trata de fazer a "maridagem" entre o passado e o futuro com vinhos de excelência.   

Lagar de Besada  

Nascido na garagem do pai, José Sineiro, Maria Sineiro faz questão de manter as tradições minerais do vinho alvarinho. As vinhas próximas do mar contribuem para esta mineralidade. Produzem cerca de 60 mil garrafas por ano com poda e vindima manual. Além do cliente local exportam sobretudo para o EUA, México e Peru.   

Dormir:   

Nande Hotel  

Debaixo das árvores fica uma antiga casa senhorial transformada em hotel perto da Adega Señorio de Rubios. A ideia é disfrutar da natureza, beber um copo de vinho e repetir. O restaurante Horta e Viño ajuda neste processo.   

Augusta Eco Wellness Resort  

Situado naquela que é a capital turística da Galiza, este hotel em Sanxenso faz uma generosa homenagem à agua das Rias baixas. Fruir da cultura aquática é obrigatório, não fosse o espaço ter um spa com todas as comodidades para sair de lá revigorado.   

Alvarinho em Festa!  

A cidade costeira de Cambados realiza entre 31 de julho e 4 de agosto a Festa do Alvarinho. As atividades são mais que muitas e variadas. Conferências, concertos, folclore e cursos. Um evento a não perder.   

Saiba mais Rias Baixas, Galiza, Viagens, Terra, Mar, Videiras, Alvarinho, Quinta do Couselo, Roteiro, Viajar, Espanha, Vinho
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