Steve McCurry e o que todos temos em comum
Os retratos de Steve McCurry já deram a volta ao mundo e estão agora na Cordoaria, em Lisboa, para admirar até janeiro de 2023. Sentámo-nos à conversa com o fotógrafo e descobrimos que o que o move, mais do que as viagens e as paisagens, são as vidas das pessoas e aquilo que as une.
As portas ainda não abriram, é o primeiro dia da exposição, e passam alguns minutos das nove da manhã quando o conhecido fotógrafo norte-americano nos recebe numa boa disposição matinal. Depressa procura duas cadeiras confortáveis para nos sentarmos a conversar sobre as mais de 100 imagens em grande formato desta sua retrospetiva, tão apropriadamente apelidada de Icons.* Com a National Geographic, deu umas tantas voltas ao mundo a quem deu o belíssimo retrato da menina afegã, Sharbat Gula, cujos olhos azuis pareceram iluminar-nos a partir da capa da famosa revista, em 1985.
Do Afeganistão à Índia e ao Sudeste Asiático, de África à Américas, Cuba, Estados Unidos, Brasil, mas também a bella Itália, tudo começou há uns 40 anos quando McCurry, estudante de cinema tornado fotógrafo freelancer, fez a sua primeira de muitas viagens à Índia, apenas com um saco de roupa e uns tantos rolos para encher. A curadoria é de Biba Giacchetti e o que liga estas magníficas imagens é um profundo sentimento do humano, da sua alegria e sofrimento, do seu espanto e familiaridade.
Esta exposição é das maiores retrospetivas do seu trabalho, fotografias que fez por todo o mundo e ao logo dos anos. Quando olha para estas fotografias de novo, o que as liga a todas? E alguma vez sonhou que elas fizessem esta itinerância?
Quando comecei, eu nunca pensei em ter uma exposição como esta. Mas à medida que viajas, e trabalhas, desenvolves uma massa crítica, e ao longo de 10, 20, 30, 40 anos a fotografar constantemente, a visitar lugares e a testemunhar momentos históricos, quando olhas para trás, existe uma dimensão histórica. E apesar de nunca ter sido minha intenção ser um historiador, mas em virtude de ter estado em todos estes lugares a documentar o que estava a passar, estas imagens tornaram-se numa espécie de documento histórico destes acontecimentos fundamentais. E penso que, embora tenha sempre querido ter um olhar crítico e olhar para as coisas de forma honesta, acho que sempre tive um olhar compreensivo, sempre tive um certo humanismo, uma abordagem do humano e uma compaixão pelas pessoas e as suas situações que fotografei.
O Steve foi a todos estes lugares num tempo em que nem toda a gente podia viajar como hoje, muito menos se fotografava como hoje. Teve a sensação de que o Ocidente conhece muito pouco o resto do mundo?
Certo. Eu penso que as pessoas nos Estados Unidos não têm uma grande visão do mundo, estão maioritariamente preocupadas com as suas coisas, sabe como é, a sua família, a vizinhança, a sua região. As pessoas estão demasiado envolvidas nas suas próprias vidas para pensar profundamente ou querer saber o que se passa na Síria ou no Iémen. Ocasionalmente, um lugar ou uma situação chegam às notícias, como a Ucrânia agora, ou antes o Afeganistão; mas de uma maneira geral, os problemas e os conflitos do mundo passam despercebidos e eu não acredito que as pessoas pensem neles. O Iémen esteve nas notícias durante uns tempos, Myanmar esteve nas notícias, mas depois saem da primeira página e são como que esquecidos. Mesmo com as alterações climáticas não parece existir grande urgência, não é um assunto sobre o qual as pessoas conversem em casa, de uma forma geral. A menos que esteja demasiado calor lá fora e aí as pessoas pensam nisso (risos).
Porque escolheu fotografar pessoas? Basta olhar para o seu retrato mais famoso, o de Sharbatt Gula de grandes olhos azuis, que mudou a sua vida, e até a nossa, para perceber a força dos seus retratos.
É apenas um instinto natural, qualquer coisa pela qual fui atraído. Foi uma atracção muito natural eu interessar-me por pessoas, somos todos o mesmo, mesmo sendo completamente diferentes. E eu sou muito fascinado pela variação do tema, como nos vestimos e nos adornamos, como nos queremos apresentar ao mundo. Algumas pessoas preocupam-se com isso, e esforçam-se e são stylish, outras não pensam nisso. Fascina-me como, às vezes, a nossa história está toda no nosso rosto, e de uma forma tão contundente, tão evidente. E pode ser fruto da minha imaginação mais exterior, mas quando olhamos para certas pessoas damos-lhes atributos como, por exemplo: "parece ser uma pessoa honesta ou parece ser uma pessoa sincera". Mas o facto é que até pode nem ser o caso, mas imaginas essa pessoa com uma determinada qualidade ou atributo, e é tudo fruto da tua imaginação.
Falava da forma como as pessoas se enfeitam, de maneiras diferentes em diferentes partes do mundo. Algumas destas imagens fazem lembrar até imagens de moda.
Eu penso que podemos vê-lo dessa forma, sim, mas não necessariamente, porque é a sua cultura. E estas pessoas também podem olhar para nós e achar-nos bizarros e estranhos, e para nós isso não ter nada de invulgar, é apenas normal. Por isso é que olhamos uns para os outros e ficamos tão fascinados uns com os outros, porque todos escolhemos apresentar-nos de uma determinada maneira.
Já tirou tantas centenas de milhares de imagens, o que é que torna uma fotografia icónica?
Acho que uma fotografia icónica... Isso é difícil de descrever porque é qualquer coisa... Se o pudesses saber, toda a gente tentaria fazê-lo! Eu acho que é qualquer coisa imediata, que incendeia a psique. Mas, sim, acho que há uma combinação de ingredientes que poderias descrever, mas muitas fotografias têm drama, têm beleza, mas não se tornam icónicas. Há muitas coisas que concorrem para se dizer que uma imagem é icónica, muitas coisas.
São difíceis de descrever e é por isso que criam uma certa magia.
Sim, sim, é isso.
Aconteceu pegar na sua máquina fotográfica e ir ver o mundo ou foi uma vontade de sempre que trabalhou para conseguir?
Sempre quis viajar, desde que era um rapaz muito novo e, sabe, somos todos diferentes e temos todos motivações diferentes, esperanças e sonhos, e isto era o que eu queria fazer. Eu queria ir aos lugares mágicos dos outros e ver, observá-los. Alguns desses lugares, os mosteiros, gostava de vê-los por mim, pareciam-me tão monumentais e tão dramáticos, tão maiores do que a vida, por isso eu queria ir e ter essa experiência por mim.
Quanto mais se viaja, mais o olhar se aguça. Acha que depois de todos estes anos, e de ter visto tantas coisas e conhecido tantas pessoas, se tornou, de certa forma, mais humilde como pessoa perante a grandeza do mundo?
Não me sinto mais humilde, propriamente, mas sinto que passas a compreender alguns princípios universais, a humanidade mais comum e o comportamento humano, que é muito o mesmo embora seja muito diferente. Porque somos todos, fundamentalmente, o mesmo. Em algumas culturas, vais jantar a casa de alguém e conheces a família toda, noutras culturas vais jantar a casa de alguém e nunca conheces a sua mulher, porque não podes. Mas estas diferenças culturais não são assim muito significativas quando comparadas com uma natureza muito maior que partilhamos, e que tantas vezes sofre de falta de respeito e de outras coisas parecidas...
De certeza que fez muitos amigos pelo caminho, ainda visita alguns, ou mantém contacto?
Claro, absolutamente! E estão espalhados por todo o mundo. Quando vais a um lugar e passas anos lá, acabas por fazer amigos, sim.
Referia que somos todos afins, ou muito parecidos na nossa diferença, mas o que testemunhamos é o medo dessa diferença, o preconceito, a xenofobia, o racismo. O que assistimos agora na Ucrânia, os problemas que resultam da imigração crescente. Como olha para o mundo agora?
Eu olho para o mundo agora e fico perplexo, intrigado, e pergunto-me: quais serão as nossas prioridades? A verdade? O que nos importa? No meu país existe uma polarização entre partidos, porque as pessoas querem controlar e forçar as pessoas à sua forma de pensar. E insistem que as coisas têm de ser feitas à sua maneira, em vez de deixarem as pessoas terem as suas próprias ideias e vontade. É uma questão muito complexa. E a religião, em alguns lugares, quanto a mim, ganhou um papel demasiado importante. Mas é sempre uma luta entre forças e tens de, de certa forma, continuar a lutar contra elas. A desinformação... Olhe o que está a acontecer na Ucrânia, eu gostava que alguém me explicasse como e porque é que faz sentido. Quer dizer, todos gostaríamos de ser ricos e ter milhões de dólares, mas isso não significa que vamos roubar um banco. Não vou agarrar o ponto de vista de outra pessoa! O que eu estou a tentar dizer é que um homem, Putin, quer outro país, como é que isso faz sentido? Como é que isso pode ser certo? Expliquem-me! Alguém tem de me explicar, porque eu não entendo. Se queres exterminar judeus e ciganos, homossexuais e alguns intelectuais, o que fazemos em relação a isso? Nem é uma questão de medo, é um assunto que não nos diz qualquer respeito. Qual é o ponto em que chegamos e dizemos: Não está certo exterminar um país inteiro? Queres transformar a Ucrânia num parque de estacionamento? Ok, então ficas com a Ucrânia, e depois com a Bielorrússia e depois com a Polónia e depois a Estónia e a Lituânia e a Letónia, e a antiga Checoslováquia [hoje Chéquia e Eslováquia]... E porquê parar aí? Precisas de dominar o mundo, vais precisar também de Portugal e do planeta inteiro. Em que ponto é que isto se tornou numa insanidade?
É um humanista evidente, mas um fotógrafo, e um retratista em particular, é sempre uma pessoa de pessoas. O que é que o rosto tem de tão especial?
Todos temos um rosto e acho que se olhamos uns para os outros, admiramos, somos críticos, é assim que comunicamos e nos vemos uns aos outros. E o que pode ser mais importante do que isso? O sorriso é central para a comunicação e para o amor e para tudo o que é realmente importante para cada um de nós (sorri).
*os bilhetes para a exposição custam 10 euros e estão à venda em exclusivo através do site ou app da Fever.
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