Prazeres / Óscares

Meryl Streep, afaste-se, por favor…

Edith Head é a mulher que teve mais nomeações para o Óscar e que arrebatou o maior número de estatuetas douradas. Relembramos a mulher feia e mal vestida que criou cerca de 500 guarda-roupas, ao longo de 57 anos. Mas o verdadeiro talento da costume designer era mentir, manipular e ficar com os louros da equipa. Teve azar. Recordamos este texto de 2019 na contagem decrescente para os Óscares deste domingo, 12.

Foto: Getty Images
09 de março de 2023 | Manuel Dias Coelho

Sempre que, às 12 horas precisas, o carro eléctrico que efectuava a visita guiada pelos estúdios da Universal passava em frente ao espaçoso bungalow da mais famosa criadora de guarda-roupas para cinema, ela abria a porta e acenava um adeus aos visitantes enquanto o guia gritava, através de um altifalante: "Senhoras e senhores, Miss Edith Head!" Nunca falhava. O que parecia ser um momento marcado para uma celebridade embasbacar os turistas, não era mais do que uma encenação que a costume designer fabricava para deslumbrar os amigos que deliberada e estrategicamente convidava para a visitarem pouco antes da hora do almoço. A sua sede de fama e de reconhecimento, com raízes numa infância menos feliz, era tão evidente que, um dia, ao ouvi-la num programa de rádio, um dos pares não se conteve e disse aos colegas: "Oh, meu Deus! Lá vem a Edith contar que foi ela que inventou a saia."

Por ser uma profissional que atribuía a si própria os louros do trabalho em parceria, é compreensível o despeito revelado pelos colegas, e também a inveja, já que Edith Head era a mais bem-sucedida costume designer de Hollywood, ao serviço da Paramount e da Universal. Com uma média de cem guarda-roupas por ano, não surpreende que um dia tenha dito, sem um laivo de modéstia: "Se o filme é da Paramount, devo ter sido eu a fazer as roupas." Somava nomeações para o Óscar e acumulava estatuetas douradas como nenhum outro profissional do meio. Continua a ser a mulher cujo nome foi mais proferido nas nomeações para o Óscar, 35 vezes (as primeiras 19 foram consecutivas), e a que mais estatuetas ganhou, num total de oito, numa carreira que durou de 1928 a 1982. A quem a visitava no bungalow, ela exibia uma falange de estatuetas douradas, colocadas frente a um espelho para criar a ilusão óptica de duplicação, e dizia com ar de triunfo: "Não há nada melhor do que uma fileira de Óscares para incutir o temor a Deus a actrizes que têm a mania que sabem tudo sobre como fazer vestidos."

Sabrina, 1955
Sabrina, 1955 Foto: IMDb

Se havia um talento que se lhe reconhecia era o de impor respeito às estrelas de cinema e de as dominar nos seus caprichos e na cisma de serem elas a determinar as roupas que vestiriam nos filmes. Essa manipulação, disfarçada sob a forma de dócil subserviência e aparente respeito pelos desejos da actriz, mas que resultava sempre na supremacia da vontade de Edith e, felizmente, do seu talento, acrescida da capacidade invulgar de lhes disfarçar ou de lhes corrigir as formas menos graciosas do corpo, valeu-lhe a confiança de muitas estrelas, como a da tirânica Gloria Swanson ou a da irascível Bette Davis. A primeira chegou a avisar: "Não se idealiza um filme para a Gloria Swanson. Idealiza-se um filme com a Gloria Swanson." Ambas as actrizes foram vestidas por Head, em 1950. Swanson, em O Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard), e Davis, em Eva (All About Eve). Apesar da genialidade do guarda-roupa do primeiro, Edith Head seria nomeada para o Óscar por Eva, tendo arrebatado a estatueta. Seria o segundo de quatro Óscares consecutivos entre 1949 e 1951, o que era um feito em Hollywood, numa altura em que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dividia esse galardão pelos filmes a preto e branco e pelos filmes a cores. O primeiro desses Óscares foi ganho, em 1949, por A Herdeira, em parceria com Gile Steele (p/b); o segundo, em 1950, por Eva, partilhado com Charles le Maire (p/b); o terceiro, nesse mesmo ano, por Sansão e Dalila (cor), em equipa com Dorothy Jeakins, Elois Jessen, Gile Steele e Gwen Wakeling; e o quarto, em 1951, por Um Lugar ao Sol (p/b). Como sempre, Miss Head subiria ao palco sozinha para receber as estatuetas e não mencionaria uma palavra sobre aqueles que com ela trabalharam. Após essa revoada, o quinto Óscar surgiria, em 1953, por Férias em Roma (p/b); o sexto, no ano seguinte, por Sabrina (p/b); e o sétimo, em 1960, por Coisas da Vida (p/b). Head agarraria o Óscar, pela última vez, num guarda-roupa maioritariamente masculino, em A Golpada, no ano de 1973.

Quando, em 1948, a Academia decidiu valorizar o Guarda-Roupa atribuindo-lhe uma categoria nos Óscares, Edith Head, então com 50 anos, foi nomeada por A Valsa do Imperador, com o colega Gile Steele, e estava convencida que iria ganhar. Mas na cerimónia de 24 de Março de 1949, quando a jovem Elizabeth Taylor abriu o envelope e pronunciou os nomes de Dorothy Jeakins e de Madame Barbara Karinska, autoras do guarda-roupa de Joana D’Arc, Edith Head sentiu um calafrio. Não só porque não aceitava ter perdido o primeiro Óscar atribuído na sua profissão como não admitia que Jeakins, à qual costumava referir-se como "aquela costureirinha", pudesse ter ganho. O abalo sofrido levá-la-ia a confessar, mais tarde: "Precisei de algum tempo para me aperceber que tinha perdido. Como não sou uma pessoa emotiva, ninguém reparou que eu estava em estado de choque. Nunca me passou pela cabeça que outra pessoa pudesse ganhar aquele Óscar." Mas Edith recompôs-se, rapidamente. No ano seguinte, ao conquistar o seu primeiro Óscar por A Herdeira, mostrou que não estava disposta a ser uma perdedora. Para consolidar a sua posição, passou a usar em proveito próprio a pesada máquina promocional dos estúdios da Paramount, dos quais era rainha e senhora. Bill Thomas, um costume designer distinguido com um Óscar, em 1960, pelo filme Spartacus, comentou: "Ela fazia tudo por publicidade. E isso trazia os seus dividendos." Uma outra costume designer constatava: "Mais do que as roupas que criava, ela era um produto dos grandes estúdios. Outros designers, como Adrian, Irene Sharaff ou Dorothy Jeakins, eram mais brilhantes. Mas eles não eram o tipo de pessoas que se autopromoviam."

All about Eve, 1951
All about Eve, 1951 Foto: IMDb

Edith Head simbolizava o Óscar no feminino e tinha uma tal adoração pelas estatuetas que lhes chamava "Os meus filhotes". Não teve filhos e, sobre isto, confidenciou a David Chierichetti, um dos seus pupilos e biógrafo: "Nunca quis ter filhos. Se tivesse ficado grávida não faria um abortamento, mas nunca fiquei grávida." Esse era um dos lados da solidão dourada de uma mulher que vivia para o segundo marido e para a profissão e de quem se dizia não ter amigos. Chierichetti escreveu na biografia Edith Head - The Life and Times of Hollywood’s Celebrated Costume Designer (Harper Perennial, 2003) esta afirmação de Olívia de Havilland: "Requisitei a Edith para os meus guarda-roupas, muitas vezes, porque sabia que ela conseguiria fazer o que eu precisava para interpretar os meus papéis. Todavia, ao fim de trinta e tal anos, nunca consegui penetrar no seu muro de privacidade. Uma vez, fui a casa dela quando Anne Baxter também lá estava. Por uns momentos consegui vê-la a falar abertamente com a Anne, a propósito de uma coisa qualquer, e pensei: ‘Que bom, pelo menos tem uma amiga.’"

Isso não traduzia a realidade. Quando Edith Head adquiriu segurança financeira, contratou uma criada negra, chamada Nanny Jones, que se tornaria a sua amiga mais íntima e única confidente. Mae West foi uma amiga de longa data, cuja amizade nasceu quando Edith criou para a irreverente actriz roupas para o filme Uma Loira para Três, de 1933. Barbara Stanwyck foi outra das suas amigas e tinha uma dívida de gratidão para com a costume designer porque, não sendo propriamente uma beleza, Miss Head tinha conseguido a façanha de a transformar num símbolo sexual à força de vestidos no filme As Três Noites de Eva, de 1941, e da construção da imagem de mulher fatal em Pagos a Dobrar, de 1944. A relação íntima com as actrizes baseava-se no facto de a costume designer ser um "poço sem fundo" em relação às confissões íntimas que elas lhe faziam no gabinete de provas. A sua capacidade de insinuação transformou-a numa espécie de "madre confessora" das jovens e inexperientes actrizes que chegavam aos estúdios de cinema, na década de 50. Ela sabia, antes de toda a gente, quando elas ficavam grávidas ou quando praticavam abortamentos. O silêncio tumular de Head não se devia a escrúpulos ou a sentido ético, mas sim a um sábio princípio que ela costumava enunciar: "Nunca se sabe se terei de as vestir outra vez." Se tinha amigas em algumas das estrelas de cinema, não se pode dizer o mesmo dos colegas de trabalho. Nenhum deles lhe perdoava a relutância em reconhecer o trabalho realizado em equipa. Quando recebeu o seu último Óscar, ganho por A Golpada, não teve uma palavra de reconhecimento dirigida a Peter Saldutti, a quem é atribuído o guarda-roupa masculino num filme esmagadoramente interpretado por homens. Jeanne Malone, que era o "pau-para-todo-o-serviço" da equipa desse filme, afirmou com indignação: "Ela não concebeu uma linha [de coser] sequer. Uma noite, quando eu e a Andrea Weaver [a supervisionadora do guarda-roupa feminino] estávamos a elaborar a lista para a lavandaria, ela disse-me: ‘Se a Edith ganhar um Óscar por isto, mato-me.’ E eu respondi-lhe: ‘Então apressa-te a comprar o cianeto!’" No filme de Blake Edwards, Boneca de Luxo, de 1961, Edith foi a responsável pelo guarda-roupa, mas Audrey Hepburn, que tinha arrebatado o Óscar para a Melhor Actriz sete anos antes, conseguiu que Hubert de Givenchy, o já seu melhor amigo, criasse a roupa que vestiria para encarnar a personagem Holly Golightly. Aí, por despeito, começou a guerra movida por Head ao famoso Costureiro francês que criou um guarda-roupa fabuloso, do qual constou o mais famoso vestido preto de sempre. Edith Head tentou tudo para que o nome de Givenchy não constasse da ficha técnica do filme, só que, desta vez, a sorte não esteve do seu lado. As omissões sobre o trabalho de outros e, acima de tudo, as omissões à verdade fazem parte do registo biográfico de Edith Head. A sua carreira na Paramount começou com uma mentira. Quando, em 1923, leu no Los Angeles Times o anúncio para a contratação de um desenhador de figurinos para Cecil B. De Mille, decidiu candidatar-se, até porque conhecia as duas filhas do realizador, pois tinham sido suas alunas na Hollywood School for Girls (Edith começou por trabalhar como professora após a licenciatura pela Universidade da Califórnia). Porque desejava ter um lugar para o qual não tinha as mínimas qualificações, Edith Head apresentou-se na entrevista com esquiços roubados no colégio onde trabalhava. Howard Greer (um Costureiro que se tornou chefe dos costume designers na Paramount), encarregado de entrevistar os candidatos, relembrou o embuste, em 1949, no seu livro de memórias Designing Male: "Apareceu [na entrevista] uma jovem com uma bolsa de viagem para senhora cheia de esquiços. Havia desenhos de arquitectura, planos para decoração de interiores, ilustrações tiradas de revistas e desenhos de moda. Completamente embasbacado por um talento tão diverso decidi, logo, contratar essa rapariga." Receosa de ser descoberta, Edith confessaria a verdade e Greer sentiu alguma simpatia por ela e decidiu manter a contratação. Na  autobiografia, Edith Head admitiria que não mentiu durante a entrevista porque nunca chegou a dizer que os esquiços eram seus e também porque isso não lhe foi perguntado.

All about Eve, 1951
All about Eve, 1951
Nascida Edith Claire Posener, a 28 de Outubro de 1897, na cidade de San Bernardino, na Califórnia, era filha de Max Posener, um emigrante prussiano naturalizado americano, e de Anna E. Levy, norte-americana filha de pai austríaco e de mãe bávara, ambos judeus, desconhecendo-se se eram casados. Max Posener abandonou a família quando Edith era bebé e, poucos anos depois, a mãe casou com um engenheiro de minas, Frank Spare, que adoptou Edith. Atribui-se às omissões sobre a família e acerca de ter tido uma infância menos privilegiada, bem como sobre ter um padrasto e de possuir origens judias, o facto de Edith ter enveredado por um chorrilho de mentiras toda a vida. Mentia também sobre o primeiro marido, uma espécie de caixeiro-viajante com boa figura física, mulherengo e alcoólico. No começo da carreira chegou a apresentá-lo a colegas, mas à medida que foi progredindo na profissão evitava mencioná-lo. Mais tarde exigiria, mesmo, que nunca se fizessem perguntas sobre ele, mesmo quando já estava viúva do segundo marido. Nos finais dos anos 70, quando ninguém ousava pronunciar o nome do primeiro marido, uns familiares deste foram ao gabinete de Edith e entregaram à respectiva secretária uma fotografia do casal tirada na década de 1920. No regresso do almoço, a secretária mostrou-lhe a fotografia e o único comentário de Edith Head foi: "Já não me lembrava que tinha usado o meu cabelo assim." Baixa, atarracada, com uma tez escura e pernas abauladas, usava óculos com lentes muito graduadas e o seu olho direito era ligeiramente vesgo. Não era uma mulher atraente, ainda que tenha tido dois maridos e confessado dois romances. Daí que uma outra costume designer, Yvonne Wood, ironizasse sobre o assunto, anos mais tarde: "Bem, a Edith deve ter mostrado que tinha talento, pois não pode ter chegado onde chegou na horizontal." Cultivava uma elaborada imagem de frieza, como se tivesse sempre uma parede de aço a separá-la dos outros. Theadora van Runkle que, em 1970, criou o guarda-roupa do filme Myra Breckinridge, para o qual Edith concebera apenas os vestidos de Mae West, a pedido da já velha actriz, testemunha a lendária frieza da costume designer: "Um dia, durante as rodagens [de Myra Breckinridge], irrompi pelo gabinete dela e disse-lhe: ‘Edith, não queiras saber! Estão a filmar uma cena, agora mesmo, e não vais acreditar nisto… Está um casal a fornicar em cima da bandeira americana! Por amor de Deus!’ Sem pestanejar, a Edith só me perguntou: ‘E o que é que eles têm vestido?’"
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