Estilo / Moda

Veja. Como uns ténis minimalistas ergueram um império

É atualmente uma das marcas de calçado desportivo mais populares no mundo, mas também uma empresa que faz da ética ambiental e social uma das suas principais bandeiras, como explicou à Must o fundador Sebástian Kopp.

Foto: DR
21 de dezembro de 2023 | Miguel Judas

São uma imagem que já se tornou habitual um pouco por todo o lado, aquelas sapatilhas de estilo retro, perfeitas para qualquer ocasião e identificáveis por um V na parte lateral. Poucos saberão no entanto (mesmo os que a usam) é que a Veja é uma das marcas mais sustentáveis do mundo, com um modelo de negócio baseado numa ética ambiental e social rara num mundo empresarial, em especial numa área tão competitiva como é a do calçado desportivo. Tudo começou há mais de 20 anos, quando Sebástian Kopp e François-Ghislain Morillion, dois amigos de infância acabados de sair da universidade, fundaram uma ONG sobre desenvolvimento sustentável, para perceber como eram as condições de trabalho nas fábricas de calçado e têxteis asiáticas, usadas pelas grandes marcas internacionais. "O que vimos no terreno foi uma imensa desilusão para nós, pois a maior parte das vezes as condições reais são mascaradas de modo a cumprir um caderno de encargos que depois não corresponde à realidade. Toda a gente sabe disso e ninguém faz nada. As grandes empresas têm o poder de mudar o mundo, mas simplesmente não o querem fazer", afirma Sebástian à Must, sentado no refeitório da nova sede da Veja, situada em pleno centro de Paris, num edifício histórico que outrora foi a redação e a gráfica do jornal oficial do Partido Comunista Francês.

Sebástian Kopp e François-Ghislain Morillion
Sebástian Kopp e François-Ghislain Morillion Foto: Ludovic Carême

Depois de tal desilusão, conta, decidiram "ir para o terreno de mochila às costas", ver se e como seria possível fazer de maneira diferente. "A ideia nem sequer era fazer uma marca de sapatos sustentável, mas sim ir atrás da realidade, para a perceber melhor", recorda o também antigo ativista da Greenpeace. Foram procurar os materiais na fonte, o algodão e a borracha, que serviria para substituir o plástico por borracha natural. Encontraram-nos no Brasil, mais em concreto na região da Amazónia. "Não tínhamos dinheiro, não falávamos português e não percebíamos nada de ténis, tinha tudo para dar errado", reconhece com humor. No final de 2004 fizeram 5 mil pares de ténis numa fábrica brasileira, graças a um empréstimo do Credit Coop, um banco sustentável que apoia projetos ambientais, que esgotaram em poucas semanas. Estava nascida a Veja, cujo nome tem também uma explicação: "queríamos incluir a letra V e que fosse um nome curto, por isso escolhemos a palavra portuguesa Veja, como um apelo aos clientes, para olharem além dos sapatos".

"Queríamos incluir a letra V e que fosse um nome curto, por isso escolhemos a palavra portuguesa Veja, como um apelo aos clientes, para olharem além dos sapatos" Foto: DR

A segunda coleção teve um sucesso igual e a partir daí foi sempre assim, o que permitiu à marca "crescer de forma sustentada, sem recurso a empréstimos ou a financiamentos", até se tornar no que é hoje, uma das mais populares do mundo, com cerca de 5 milhões de ténis vendidos anualmente. "Em vez de estarmos apenas preocupados com o dinheiro, o nosso principal foco são as pessoas, sejam os fornecedores ou fábricas com quem trabalhamos. Queremos que todos os colaboradores e fornecedores da Veja vivam bem, e no caso destes últimos que ganhem dinheiro para reinvestir em coisas tão simples como construir uma cisterna para terem água potável todos os dias. Este tipo de relacionamento origina confiança para criar algo a longo prazo. E também cria fidelidade de parte a parte. Já houve muitas tentativas de outras marcas, em aliciar os nossos fornecedores, mas eles não trabalham com a Veja, trabalham com o François e o Sebástian".

"No fundo a Veja é uma crítica a este capitalismo moderno, pois o nosso sucesso prova que é possível fazer as coisas de uma forma mais justa e sustentável para todos os envolvidos no processo" Foto: DR

Uma das razões para o sucesso da marca, segundo o seu fundador, deve-se ao facto da Veja não estar dependente da banca ou de outros investidores externos: "isso permite-nos crescer de forma sustentada, sem termos a necessidade de crescer muito em pouco tempo, como atualmente ensina o capitalismo. Somos muito prudentes, não queremos ser os maiores, mas sim os melhores no que fazemos e que as pessoas se sintam felizes a usar os nossos sapatos. No fundo a Veja é uma crítica a este capitalismo moderno, pois o nosso sucesso prova que é possível fazer as coisas de uma forma mais justa e sustentável para todos os envolvidos no processo". Recusa no entanto o rótulo de capitalismo social para a Veja, preferindo sublinhar mais a palavra "diferente". "Trabalhamos de um modo diferente, sem dúvida. Com mais calma e maior consciência. O problema do capitalismo, hoje, são os padrões demasiado loucos, essa corrida pelo lucro em curto tempo. E também porque os acionistas estão bastante distantes da realidade das empresas, procurando apenas somar dinheiro a mais dinheiro e esquecendo o ser humano e o simples prazer de trabalhar para construir algo", sustenta. O que não colide com a vontade e necessidade da empresa gerar lucro, como também esclarece: "Queremos ganhar dinheiro, claro, mas não corremos atrás dele, e sim da felicidade".

Do Brasil para o mundo…

Desde o início que o objetivo da Veja é o de criar?ténis de?forma distinta, com base em?projetos sociais,?justiça económica e materiais ecológicos.? A lona e os atacadores são feitos de algodão orgânico proveniente?do Brasil e do Peru; as solas com?borracha da Amazónia e de vários materiais inovadores como garrafas de plástico recicladas. Os ténis são produzidos no Brasil e a parte logística é gerida pela Log'ins, uma empresa francesa de inclusão profissional e social. "Escolhemos o Brasil por ser o único país com algodão, borracha e fábricas que respeitavam os direitos dos trabalhadores, que apenas trabalhavam 40 horas semanais, ao contrário da Ásia, onde se trabalha o dobro", esclarece Sebástian.

"Escolhemos o Brasil por ser o único país com algodão, borracha e fábricas que respeitavam os direitos dos trabalhadores, que apenas trabalhavam 40 horas semanais, ao contrário da Ásia, onde se trabalha o dobro" Foto: DR

A marca trabalha atualmente com cerca de 300 produtores no Brasil e outros tantos no Peru, países onde tem escritórios e equipas em permanência. "A grande diferença desta marca é estar no terreno e conhecer a realidade, porque não sabíamos nada desta indústria. Enquanto a maior parte das empresas desta área compra a intermediários, o que acaba por encarecer o preço e diminuir a margem de lucro dos produtores, nós pagamos 40 por cento da produção antes da colheita a um preço previamente combinado, que não depende das variações do mercado. Pagamos um preço mais alto, mas sentimos que estamos a fazer a nossa parte, tanto em termos sociais como ambientais", salienta o empresário. Isto porque o negócio da Veja tem igualmente "uma parte agro-ecológica", com os fornecedores a terem de praticar uma "agricultura regenerativa", de modo a poupar os solos – "No início ninguém acreditava neste negócio e agora já começa a ser encarado por muita gente como uma solução". 

E de Portugal para a Europa

Apesar de todo o comprometimento ético da Veja, Sebástian tem noção que a maioria dos clientes da Veja não faz ideia do modo como a marca trabalha. "A maioria apenas compra os ténis porque gostam deles, o que é ótimo, porque significa que estamos a fazer um bom trabalho. E na verdade não fazemos o que fazemos para ter o reconhecimento das pessoas, mas sim porque acreditamos ser o mais correto".

Ao contrário da maior parte da concorrência, a Veja não faz anúncios a gabar-se do que faz, mas a informação está toda disponível no site da marca para quem quiser saber como esta funciona. "Ao contrário da maior parte das marcas, que passaram a investir mais na comunicação do que nos produtos em si, porque a narrativa passou a ser mais importante que a realidade, nós preferimos investir na produção dos ténis, ter um bom produto e pagar de forma justa a quem trabalha connosco". E com o termo Greenwash está tão em voga, Sebástian lembra que tal conceito é afinal já bem antigo: "É por isso que somos muito mais focados na nossa transparência e não tanto em comunica-la. Quando se diz que se faz uma coisa e na realidade fazemos o contrário, mais tarde ou mais cedo isso acaba sempre por se virar contra nós. Tenho a noção que fomos muito longe, literalmente até ao interior da Amazónia e houve uma altura em que sentia necessidade de dizer isso ao mundo, mas entretanto passou-me e passei a focar-me apenas naquilo que quero e sei fazer".

"A maioria apenas compra os ténis porque gostam deles, o que é ótimo, porque significa que estamos a fazer um bom trabalho. E na verdade não fazemos o que fazemos para ter o reconhecimento das pessoas, mas sim porque acreditamos ser o mais correto" Foto: DR

A história de sucesso de Veja despertou entretanto o interesse de diversos tubarões da indústria da moda e do vestuário, tendo surgido já diversas propostas para a compra da empresa, todas elas recusadas: "Vender para quê? A empresa é bem gerida, dá lucro e todos nós temos um bom salário. O que necessito mais? Para quê vender por 100 ou 200 milhões de euros algo que corre bem? O que vou fazer com esse dinheiro, um projeto melhor que a Veja? Não me parece".

Até porque projetos não faltam à Veja, um deles são as novas oficinas de reparação dos sapatos da marca. Isso mesmo, a Veja formou diversos sapateiros para consertar as sapatilhas dos seus clientes, sejam elas Veja ou de outra marca qualquer. "Há imensos sapatos que vão para o lixo devido a pequenos defeitos, o que é um desperdício e até um problema em termos ambientais", alerta. E um dos projetos mais recentes passa até por Portugal, onde este ano a Veja já produziu mais de 150 mil pares de sapatos para um novo conceito da marca, chamado Made in Europe, Sold in Europe.

Saiba mais Moda, Veja, Ténis, Calçado, Ética, Brazil, Ambiente
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