Opinião. Deixem o Ronaldo em paz
A três dias do começo do Mundial do Catar e a uma semana da estreia de Portugal, frente ao Gana, a polémica está novamente instalada: Ronaldo é um ativo tóxico ou o ás de trunfo da Seleção?
Conta-se que Johan Cruijff, então treinador do FC Barcelona, acossado pela crítica à aparente falta de empenho do ponta-de-lança brasileiro Romário, terá certa vez afirmado que os seus avançados não tinham como missão cansar-se em sprints, mas sim introduzir a bola na baliza. À semelhança do agora senador Romário, o goleador Cristiano Ronaldo pretende provar, a dias do Mundial do Catar, que por muito que lhe seja exigido correr, aquilo em que ele é verdadeiramente bom, aos 37 anos, é a marcar golos.
Sem rodeios, numa longa entrevista ao jornalista e apresentador britânico Piers Morgan, Cristiano arrasou o Manchester United, o clube em que se sente mal-amado. Duas décadas depois de uma claque nacional ter literalmente reduzido as casas de banho do estádio Old Trafford a cacos, foi a vez de Ronaldo partir a loiça toda na casa do segundo melhor clube de Manchester.
A polémica resume-se facilmente. A 14 de novembro, a capa do jornal The Sun fazia o best of das declarações de Ronaldo a Piers Morgan: "Não respeito o treinador Ten Hag," "Não houve empatia pela doença da minha filha," "Fui transformado em ovelha negra." E, em parangonas, "O United traiu-me." A retaliação não se fez esperar e os britânicos, esquecendo por momentos o proverbial sentido de humor que os deve caracterizar e o facto de serem a nação que nos ofereceu o termo "fair play", retiraram o painel gigante com a imagem do craque português do estádio. Em terras portuguesas, e durante o estágio da Seleção na Cidade do Futebol, no Jamor, Oeiras, um jornalista inglês questionou a veracidade da gastrite de Ronaldo que o impedirá de subir esta quinta, 17, ao relvado do Estádio de Alvalade para o derradeiro jogo de preparação da Seleção Nacional, frente à Nigéria. Chegados a este ponto, ficamos a saber que mesmo em sociedades avançadas, com democracias consolidadas, há quem entenda que não temos todos os mesmos direitos e questione a legitimidade de um jogador de futebol fazer uso da sua liberdade de conceder uma entrevista e dizer abertamente o que lhe vai na alma sem ser acusado de ser deselegante ou mimado.
Preso por um contrato com um clube que não o valoriza, Ronaldo forçou a saída, mesmo que pela porta pequena. A verdade é que o divórcio entre CR7 e o Manchester United era uma tragédia anunciada. Na liga inglesa, o português disputou dez jogos, quase sempre saído do banco, num total de 520 minutos, e marcou apenas um golo. Na Liga Europa, uma competição abaixo das suas possibilidades, jogou as seis partidas da fase de grupos, com um score de duas assistências e dois golos. Dado como acabado para o futebol inglês, o astro madeirense inventou uma nova celebração que mostrou ao público de Manchester frente ao Sheriff Tiraspol, olhos fechados, corpo hirto, a simular o rigor mortis, e com os dedos entrelaçados junto ao peito, a provar que a ironia não só não é um exclusivo britânico como mesmo um futebolista pode ser um mestre nesta arte retórica.
Longe vão os tempos do Cristiano imberbe, cabelo descolorado e brinco de diamantes. O Mundial que agora começa será certamente o último para o capitão que, de enfant terrible, se transformou num homem de família que dá tudo dentro e fora de campo. Enquanto entender que pode jogar futebol, Cristiano Ronaldo será sempre a estrela da equipa portuguesa, o líder de uma Seleção feita de experiência, com companheiros de classe mundial, como Rúben Dias, Bernardo Silva ou Bruno Fernandes, e uma inspiração para os mais jovens Nuno Mendes, Vitinha ou o adolescente António Silva (19 anos), para quem futebol e Ronaldo são sinónimos.
Assim, e voltando ao mandamento de Johan Cruijff, aos 37 anos Ronaldo pode não ter já a velocidade que mostrou aos 20, pode não ter fôlego para sprints de área a área, pode não saltar tão alto, mas enquanto puder mostrar o seu valor frente ao guarda-redes, deve ter lugar cativo na Seleção. E, mais do que isso, Cristiano tem toda a legitimidade para dar as entrevistas que entender, a quem entender, sobre o que entender. É que o respeitinho não é nada bonito. Deixem Ronaldo em paz.
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