"O Vintage é o vinho mais natural que existe". Os segredos da nova Quinta da Roêda
Na quinta da Croft trilham-se os novos caminhos do Douro, mas sente-se também o que levou em tempos um poeta a exclamar “se o Douro é um anel de ouro, a Roêda é o seu diamante”.
"Isto do terroir é muito simples", explica António Magalhães, rodeado por algumas das vinhas mais antigas em todo o Douro. "Imaginem um pódio em que a medalha de ouro é dada ao clima, a de prata ao solo e a de bronze às castas. São estes três fatores, e por esta ordem! Não vale a pena virem falar de castas assim e assado se não levarem em conta o clima e o solo." O diretor de viticultura do grupo Fladgate não ignora evidentemente que está num dos terroirs mais cobiçados em toda a região, joia da coroa da Croft desde 1888 e, antes ainda, da Taylor’s.
A Roêda, localizada na margem norte do rio, junto ao Pinhão, é uma das mais belas e históricas propriedades do Douro, onde não falta sequer o momento cartão-postal, com encostas esculpidas em partes iguais pela natureza e pelo suor do homem. Mas para se perceber realmente a importância da quinta é preciso andar a pé entre as vinhas, conhecer-lhes a "identidade" de que fala David Guimaraens, diretor técnico e de enologia da Fladgate, que detém a Croft bem como a Taylor’s e a Fonseca. "Estas vinhas representam o Douro e a terra", diz, "mas marcam também a personalidade da quinta e da marca. É por isso que um Croft não é igual a um Fonseca, porque tem uma alma própria e o meu grande desafio, hoje, é deixar essa mesma identidade às gerações seguintes". Tem outro desígnio ainda: "recuperar o prestígio perdido da Croft entre as grandes casas de vinho do Porto", quando os seus grandes vintages, como o de 1945, eram por diversas vezes incluídos entre os melhores vinhos do século passado.
Viajar pela Roêda na companhia destes dois homens é regressar aos tempos de John Alexander Fladgate que comprou a quinta na década de 1840, juntando-lhe parcelas até chegar à propriedade que hoje conhecemos. É acompanhar o combate à filoxera, que quase dizimou as vinhas em toda a Europa, e provocou "grande revolta das gentes do Douro, contra a inação do governo da monarquia". É conhecer o trabalho de lavradores como Albino de Sousa, "um autodidata" que viaja até França nessa altura, para aprender o que por lá se fazia (tal como John Fladgate) e, no regresso, procura criar novas castas mais resilientes, nomeadamente cruzando Moreto "que sempre era a que melhor resistia à praga" com diferentes castas como a Touriga. A solução para a Filoxera, já o sabemos, não passaria por estes cruzamentos, mas a Touriga Francesa (ou Franca, como preferem chamar-lhe agora), depressa mostrou as suas muitas qualidades no vinho e na vinha, sendo por isso a segunda casta tinta mais plantada em Portugal, a seguir à Roriz/Aragonés e ultrapassando mesmo a progenitora (que, entretanto, ganhou o apelido de Nacional, para se diferenciar).
Esses primeiros exemplares de Touriga Francesa ainda hoje sobrevivem na Roêda, em vinhas antiquíssimas, da primeira geração a sobreviver à filoxera, como as vinhas da Benedita, da Ferradura ou do Forno, que são a base para todos os vintages da Croft desde então. E ainda atualmente perfazem perto de 25% do encepamento da quinta.
A viagem continua pelos anos da decadência da Roêda no último quartel do século XX, quando a Croft perde muitos dos seus pergaminhos e se cometeram os maiores atentados, "não apenas aqui, por todo o Douro, mas muito especialmente aqui", avança David Guimaraens. "Como queríamos ser modernos, imitámos os exemplos lá de fora e afunilámos castas até tornar o Douro numa região banal". Na Roêda, sobreviveu felizmente esse património de vinhas, mas não os ancestrais lagares de pedra, trocados por cubas de inox, por exemplo. "Fazemos vinhos para 100 anos, por isso todas as mudanças têm de ser muito bem pensadas", afiança David, numa afirmação que seria provavelmente encarada como presunçosa em qualquer outro lado, mas não aqui, como teremos oportunidade de provar num Vintage Roêda de 1914. Uma relíquia eterna, que aos 110 anos chega até nós cheio de corpo, frescura e vivacidade. Talvez mais surpreendente ainda, já com o estilo mais delicado e macio que reconhecemos hoje aos Vintage da Roêda. É a tal "identidade Croft" de que David fala.
O novo barão da Roêda
A Fladgate comprou a Croft em 2001, mais precisamente a 10 de setembro, um dia antes do ataque às Torres Gémeas. Até à data, a Taylor’s era um player de dimensão média que praticamente duplicou em tamanho (a compra incluía ainda a Delaforce, entretanto vendida). Não é difícil imaginar como a euforia pode rapidamente ter passado a angústia face às incertezas da conjuntura internacional, mas felizmente, no terreno, havia poucas dúvidas sobre aquilo que era necessário fazer para que a Croft regressasse aos seus anos de glória. A começar por reinstalar os antigos lagares de granito, porque "um vintage precisa de ser feito em lagar. Não há outra maneira". Conseguiram ainda recuperar e reaproveitar algumas das antigas pedras, que se encontravam espalhadas pela propriedade, e depois foi necessário replantar essas parcelas das décadas de 1970, 80 e 90, "que pouco ou nada de bom traziam aos vinhos", e abandonar também os grandes taludes de quatro metros, por patamares mais pequenos, de 1,5 metros, e mais eficientes, quer em aproveitamento do solo quer para a própria videira.
A compra da Croft trouxe ainda uma pequena curiosidade, que foi fazer regressar a Roêda ao universo da Fladgate, tal como no tempo de John Alexander. O inglês, que foi agraciado com o título de barão da Roêda, casou quase todas as suas filhas com negociantes de Vinho do Porto, entre eles o filho do Barão de Forrester, da casa Offley, e Charles Wright, da Croft – Foi, aliás, por esse casamento que a quinta passou para as mãos da Croft, em 1888, mas outra das suas filhas casou-se com Pedro Gonçalves Guimaraens, da Fonseca, e portanto David ainda descente em linha direta (será tetra bisneto, ou algo parecido) do velho barão da Roêda.
As vinhas da alegria
Mas a mudança mais importante aconteceu mesmo na viticultura, com as novas plantações a respeitarem a tradição, é verdade, mas adaptando-se às técnicas e conhecimentos científicos mais modernos, como tão bem se percebe nos Patamares de São Jorge, uma das últimas parcelas a serem replantadas.
"Cá em cima temos Tinta Amarela", explica António Magalhães, "porque é uma casta que gosta menos de calor". Seguem-se Tinta Barroca, Touriga Nacional, Tinto Cão ou Tinta Roriz, plantadas quase bardo a bardo em certas zonas, para aproveitar melhor as exposições ao sol e, consoante o solo, ser mais ou menos fértil. A Nacional e a Tinto Cão, por exemplo, "aguentam bem solos férteis e exposição solar", já a Roriz aparece mais dispersa, porque "requer espaços amplos e abertos e o melhor fungicida natural é o vento". "Houve uma altura", conta, "em que se plantava Tinta Roriz por todo o lado, e isso ia dando mau nome à casta, porque começaram a aparecer muitos vinhos de Roriz de fraca qualidade." À medida que nos aproximamos do rio, começam a aparecer Touriga Francesa e Tinta Francisca, aproveitando sempre o melhor material genético preexistente na quinta para os enxertos.
O que estes patamares nos mostram, é que é possível combinar o field blend e a diversidade de antigamente, com plantações mais organizadas, de forma a aproveitar o melhor de cada casta e ainda vindimar cada uma no ponto ideal de maturação.
A personalidade de um vinho", continua David Guimaraens, "é muitas vezes definida pelas castas secundárias, mais até do que pelas principais, que são mais ou menos comuns [Tinta Roriz, Touriga Francesa, Touriga Nacional] a todos". E na Roêda "essas castas sempre foram a Tinta Francisca, o Tinto Cão, e a Tinta Amarela", o que a nós soa como uma espécie de Santíssima Trindade de castas secundárias.
Uma prova vertical dos Vintage de Quinta, elaborados já por esta equipa, vem provar a excelência do trabalho realizado. Se os Vintage são a máxima expressão do Vinho do Porto, como é comum afirmar, então os "Vintage de Quinta são a máxima expressão destas vinhas", esclarecem. Não que os Croft clássicos sejam assim tão diferentes, até porque as vinhas da Roêda respondem por quase 85% desses vinhos, mas os Rôeda propriamente ditos ficam mais elegantes logo de início, mais fáceis, se preferirmos, e por isso não é preciso esperar tantos anos para experimentar um grande Vintage. Claro que nos faltam aqui os anos clássicos, como 2003 – que David Guimaraens assume ser um dos seus vinhos preferidos – 2011 ou 2016, mas temos um 2004 e um 2008 que se destacam pela enorme elegância e frescura, e um 2015 que tinha tudo para ser considerado clássico e que só não foi porque as casas já sabiam que 2016 e 2017 seriam ainda mais marcantes. O mesmo pode ser dito sobre 2018. As marcas também se defendem e procuram manter uma certa exclusividade no Vintage, por isso têm receio de fazer demasiadas declarações. Por fim, temos o Sériko 2017, nome que vem do grego "aveludado", porque esse ano foi tão extraordinário que permitiu não apenas declarar um Vintage Clássico, como ainda reservar uma parte da produção das vinhas centenárias para fazer algo realmente superlativo. E este é um vinho de excessos, um prodígio ultra exclusivo, uma vez que se conseguiu fazer apenas 1200 litros.
O talibã do Vinho do Porto
David Guimaraens dá-nos a ideia de ser uma pessoa com um grande sentido de humor, especialmente aqui no Douro, onde se sente tão à vontade. Talvez por isso tenha sempre alguma tirada mais humorística, mesmo quando o assunto é sério e se discute a quebra estrutural de vendas de Vinho do Porto ao longo dos últimos 20 anos, a crescente falta de mão de obra ou a "concorrência" dos vinhos de mesa no Douro − a quem chama muitas vezes "vinhos de pasto" ou "vinhos do Porto para diabéticos", quando o grau alcoólico é mais elevado. Mas a sua posição sobre estes assunto é muito clara: "Mesmo os vinhos do Porto mais baratos pagam as pipas entre os 950 e os 1100 euros, mas nas uvas para DOP Douro o preço são 600 euros, e o pior é que 600 euros não cobrem os custos de produção. Impossível! Criámos, no Douro, um produto alternativo ao Vinho do Porto, mas que só sobrevive porque o Porto paga o dobro pelas uvas, e ainda dizem que os DOC é que são a salvação desta região? Por favor, não brinquem comigo!"
O discurso é feito de uma assentada, sem pausas, e não é difícil perceber o que leva muitos dos seus amigos a chamarem-lhe de Talibã do Vinho do Porto. David concorda: "É verdade, sou agressivo contra o DOP Douro, mas não é pelo produto nem pelos produtores, de quem até sou amigo, mas porque assim estamos a afundar a região. Hoje, ser viticultor no Douro é tão complicado que muitos desistem. Estamos a entrar num círculo vicioso: como não se ganha o suficiente, trata-se menos, por isso produz-se menos, logo vende-se pior e ganha-se menos... Quando não desistem os mais velhos desistem os filhos. As pessoas abandonam os campos, vão para a cidade e depois não há gente para trabalhar."
O facto de, nos últimos anos, as vendas de Douro terem estagnado ou estarem mesmo em queda – as previsões para este ano apontam uma quebra de 5%, igual ao Vinho do Porto, segundo dados da Associação das Empresas de Vinho do Porto − ainda lhe dão mais razão.
A solução, passa pela tão falada mudança de paradigma, de volume para valor, e pela aposta na valorização dos mercados internacionais, porque ainda hoje 30% das exportações vão para França, Bélgica ou Holanda, para serem consumidos como aperitivo e vendidos em marcas brancas. A altura seria perfeita, até porque nunca se produziu tão bem e de forma consistente como agora. "Sou um privilegiado por estar a viver neste momento" diz David, e volta a recorrer o humor para piscar também o olho a uma nova geração de consumidores tão adepta dos chamados vinhos naturais: "o Vintage é o vinho mais natural que existe. É produto de videiras não regadas, as vindimas são feitas à mão, as uvas pisadas a pé em lagares de granito. Estagia em tonéis antigos, não leva filtração, nada… Querem mais natural do que isto?"
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