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Deixou-nos Edson. Pelé viverá para sempre

Edson Arantes do Nascimento. O nome de batismo já trazia poesia em cada sílaba. A alcunha Pelé confirmou-o. O ‘Rei’, futebolista do século XX, atleta e ícone como Muahammad Ali ou Michael Jordan, eterno rival de Maradona, deixou-se aos 82 anos, vítima de cancro, no Hospital Albert Einstein em São Paulo. O Brasil, o futebol e o desporto estão de luto.

Foto: Getty Images
29 de dezembro de 2022 | Áureo Soares

Quando John Lennon se pôs acima do Cristianismo e nomeou os Beatles como "maiores do que Jesus" ter-se-á esquecido, quiçá fruto de um certo chauvinismo britânico, que nos anos 60 havia outro fenómeno cultural capaz de ombrear, em reconhecimento universal, tanto com o Messias como com os quatro cabeludos de Liverpool. É que se os Beatles eram conhecidos de Nova Iorque às margens do Ganges, um futebolista negro oriundo de Minas Gerais, Brasil, era o expoente máximo, sem rival, do desporto que é rei e do qual seria ele mesmo o monarca, do Ceará ao Japão. Pelé, o maior do século, o mais mediático, mítico e importante futebolista, o primeiro a cruzar os limites das quatro linhas e aparecer no cinema, na música, na indústria televisiva, morreu a 29 de dezembro de 2022, mas vive há seis décadas no Olimpo do desporto mundial e viverá muitas mais, enquanto durar o amor dos homens ao futebol.  

É difícil imaginar uma ascensão maior. Nascido Edson Arantes do Nascimento, nome próprio em homenagem ao inventor Thomas Edison, em 1940, na cidade de Três Corações, Minas Gerais, foi campeão do mundo aos 17 anos e era já lenda ainda a sua carreira ia a meio. Dele pode dizer-se sem exagero que foi o primeiro verdadeiro fenómeno global do desporto-rei. Antes de Pelé, o mundo já havia tido o francês Just Fontaine, o ainda recordista de golos em Mundiais, o hispano-argentino Alfredo Di Stefano ou outro brasileiro, Leônidas da Silva, alegado inventor do pontapé de bicicleta, prodígio precoce na arte de driblar a bola, de quem poucas imagens existem, mas foi Pelé quem popularizou o desporto em paragens menos dadas ao futebol, tornando-se ícone pop, embaixador de um Brasil em crise social e "Rei."   

A chegar à Suécia, em 1956.
A chegar à Suécia, em 1956. Foto: Getty Images

Filho de futebolista, mudou-se cedo de Minas Gerais para o município de Bauru, no interior do estado de São Paulo, onde deu os primeiros toques em bolas de trapos. A lenda, como outras, diz que jogava descalço, na rua, e era um menino obediente à sua mãe, dona Celeste. Em destaque nos campos pelados, improvisados, ao ar livre, passou pelo futebol de salão, o que terá contribuído para que o menino aprimorasse ainda mais as suas habilidades. Em 1956, com 16 anos, estreou-se pelo Santos FC, um dos maiores clubes de São Paulo, onde viria a fazer quase toda a carreira.  

Com apenas 21 anos, num jogo amigável em França.
Com apenas 21 anos, num jogo amigável em França. Foto: Getty Images

A história de Pelé é semelhante à de muitos craques brasileiros. Quase um argumento seguido à risca pelos deuses: menino nasce pobre, joga futebol, faz-se herói. E assim foi. Aos 18 anos, já campeão do mundo, era a maior estrela do futebol canarinho. Em 1961, o presidente Jânio Quadros declara-o "Tesouro Nacional", impedindo o craque de se transferir para o estrangeiro. Em 1962, é bicampeão mundial. Com a bola no pé, o craque brasileiro bateria todos os recordes. A procura elevada por vê-lo pelos campos de futebol de todo o mundo leva o Santos FC a abdicar de participar em torneios e campeonatos oficiais e levar a equipa em tournées de demonstração na Europa e na América Latina, onde Pelé enfrentou todos os gigantes da época, do Real Madrid ao Benfica, do Barcelona à Juventus. Pelo Santos FC jogou contra e bateu até seleções de países que dificilmente consideraríamos de baixa qualidade, como a URSS ou a Checoslováquia, e uma Seleção Brasileira de Acesso, equipa formada por jogadores oriundos de ligas inferiores. Para a história de todos estes jogos, por vezes seguidos, ao longo de semanas, a intervalos de dois dias, fica que Pelé contabilizou todos os golos que marcou, chegando à fabulosa soma de 1282 em 1363 partidas, recorde do Guinness. Para a FIFA, porém, contam apenas 757 golos em 812 jogos oficiais, uma média de 0,92 golos por partida, e que faz dele o quinto melhor marcador de sempre.  

Mas a pátria, que já havia feito o craque cumprir serviço militar obrigatório, caminhava para o precipício. Em contraciclo com o Ocidente, onde despontavam movimentos de massas que reclamavam direitos civis, em 1964, o Brasil caía numa ditadura militar que, à semelhança do que o governo de Salazar fez com Eusébio, aproveitou o ídolo das massas para a sua propaganda. Intelectualmente afastado da Política, Pelé foi alvo de críticas pela sua alegada conivência, ainda que por omissão, com a Quinta República brasileira. Um exemplo está na forma como renunciou à Seleção depois do Mundial de 1966, em que, lesionado, praticamente não jogou, e de como voltaria atrás na decisão. 

Quando marca o seu milésimo golo, em 1969, no Maracanã.
Quando marca o seu milésimo golo, em 1969, no Maracanã. Foto: Getty Images

O documentário da Netflix com o nome do craque conta a história de como o então selecionador brasileiro João Saldanha, militante comunista, foi substituído por Mario Zagallo, menos avesso aos ditames de Brasília, e de como Pelé, cuja imagem e simbolismo estavam cooptadas pela Ditadura, voltaria a alinhar pela seleção com que se sagraria tricampeão mundial, no México, em 1970. Mais tarde, afirmaria que não participou no torneio de 1974 em protesto contra o regime. A verdade, algures no meio, mostra-nos definitivamente que todos os homens são feitos das suas circunstâncias. A de Pelé era estar preso a um país que o amava como a poucos, mas que tão pouco lhe dava em troca. 

Em 1975, aos 35 anos e finalmente livre das amarras que o prendiam ao Santos, deu o seu Grito do Ipiranga e rumou ao New York Cosmos onde alinhou por dois anos antes de pendurar as chuteiras. Também aqui foi um dos precursores, com Beckenbauer ou mesmo Eusébio, a promover desportivamente o "soccer", décadas antes do glamour que David Beckham emprestou ao futebol norte-americano.  

E,m 1977, no New York Cosmos.
E,m 1977, no New York Cosmos. Foto: Getty Images

Atleta do Século XX para o Comité Olímpico Internacional e Futebolista do Século XX para a IFFHS (sigla em inglês para Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol), ídolo da torcida santista e de um Brasil que tem no futebol um dos expoentes da sua cultura, foi mais do que um mero futebolista. Pelé foi "cara" de campanhas publicitárias para qualquer bem passível de ser transacionado, do café com o seu nome a produtos de limpeza Bombril, de botas de futebol da Puma a medicamentos de combate à disfunção erétil da Pfizer, da Pepsi à Honda. 

Foi imortalizado em temas de Caetano Veloso e de Chico Buarque. Gravou um dueto com Elis Regina. Contracenou com Sylvester Stallone e Michael Caine em Fuga para a Vitória (John Huston, 1981). Polémico, arrogante e, a espaços, ingénuo, entrou em confrontos de palavras com Maradona ou com Romário, para quem "Pelé calado é um poeta." Encarnou-se samba, bossa nova, telenovela. Podia ter sido um mero coronel do Sertão mas foi armado cavaleiro do Império Britânico. Podia nunca ter saído de Três Corações, mas escolheu a cidade que nunca dorme para pôr fim à carreira. Na Casa Branca, num encontro com um grupo de crianças, ouviu do presidente: "A propósito, eu chamo-me Ronald Reagan. Vocês de certeza que estão mais familiarizados com este cavalheiro ao meu lado."  

"Quem é aquele moço com a bola no pé?", perguntava Jackson do Pandeiro, multi-instrumentista folk e precursor do forró. "É o Rei Pelé." Que o seu futebol perdure.  

Saiba mais Edson, Pelé, Morte, Futebol, Brasil, ícone
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