Joaquim Moura: O fim de uma carreira e de uma era?
Em 2017, ficou famoso um juiz pela sua infame decisão e pelas inacreditáveis justificações que usava para a sustentar. No fim do mês de setembro, esse juiz jubilou-se. Provavelmente, a justiça portuguesa ficou melhor.
Rejubilemos: Joaquim Moura jubilou-se. Talvez o nome, nesta sua versão oficial, simplificada e condensada, não diga muito a quem nos lê. O nome completo é Joaquim Neto de Moura, de 67 anos. Assim, sim, talvez se torne mais familiar, Neto de Moura, como aquele juiz enviado de um passado remoto que foi capaz assinar acórdãos em que a violência doméstica era encarada como uma consequência plenamente legítima no caso de a mulher ser uma "adúltera", uma "desleal", e sublinhando que a sociedade condena e sempre condenou a mulher adúltera, acrescentando ainda que "??são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras". Pois é mesmo desse Joaquim Moura que se trata: jubilou-se a 28 de setembro. Quando se diz que este juiz se jubilou, quer-se dizer que, na prática, Neto de Moura se reformou. Rejubilemos, então: há menos um juiz sem vocação a exercer.
Dizer de Neto de Moura que não tem vocação é um eufemismo, mas é também a constatação possível e mais ou menos a salvo da ira vingativa, perdão, justiceira do agora ex-juiz. No passado, quando se tornou alvo da crítica e da chacota, depois de ter compactuado com crimes de violência sobre as mulheres ao tecer juízos assentes em passagens bíblicas escolhidas a dedo e em preconceitos de proporções bíblicas de quem não tem dois dedos de testa, Neto de Moura pegou nos seus poderes e apontou-os a quem o apoucou. De humoristas com olhar atento e língua afiada a políticos (e políticas) sem papas na língua, foram perto de uma dezena aqueles que o então juiz desembargador pretendeu processar por lhe andarem a dar cabo do bom nome. Como se o facto de ter assinado tão embaraçoso acórdão não fosse suficiente para denegrir a sua própria imagem.
Fosse quem fosse o culpado pelo dano, a verdade é que o nome terá ficado irremediavelmente danificado. E, por isso, em janeiro de 2020, surgiu em documentos oficiais pela primeira vez a assinatura com que se inicia este texto: Joaquim Moura. Neto de Moura, filho de Adelaide e de Adriano, de quem herdou, e de cada um, um apelido, preferiu mudar de nome nas assinaturas dos acórdãos, já que os anteriores que assinou lhe haviam manchado a reputação. Não é difícil entender porquê.
Esta história lembra-me uma questão, uma dúvida, uma inquietação: como é que alguém como Joaquim Neto de Moura pode algum dia ser juiz? Como pode um sistema judicial estar dependente e assente no sentido de justiça de homens de pensamento inquinado, desajustado, inadequado, incoerente e antiquado? As histórias de Neto de Moura abundam e várias delas tornaram-se infelizmente célebres, por revelarem a pior face da justiça em Portugal. Uma justiça com cheiro a bafio e com travo a vingança, alimentada a preconceito e definida por quem pode, muito mais do que por quem sabe ou por quem é verdadeiramente justo.
Vale a pena lembrar a história que tornou célebre este magistrado do tempo das trevas, mas nunca é demais relembrar uma outra história do passado de Joaquim Neto de Moura. Passou-se há muito tempo, ainda o juiz integrava o coletivo de juízes do Tribunal do Funchal, um dos muitos por onde passou ao longo de uma carreira na magistratura que começou em 1987. Corria o ano de 1993 quando o referido coletivo de juízes do Tribunal do Funchal condenou a 13 anos de prisão uma figura que ficaria primeiro célebre e, mais tarde, em liberdade: o Padre Frederico. As acusações que pendiam sobre o infame padre incluíam homicídio e abuso sexual de crianças e de adolescentes. Tudo junto, dava, segundo as contas dos respeitáveis juízes, não mais do que 13 anos atrás das grades. A pena era tão ofensivamente leve que o próprio Padre Frederico se recusou a cumpri-la na íntegra. Detido em Vale de Judeus, Frederico Cunha, o padre, foi autorizado a visitar a mãe em Lisboa, em 1998, ainda a pena não ia meio. Não voltou à cadeia. Voou misteriosamente de Lisboa para o Rio de Janeiro e, segundo as informações mais recentes, é lá que ainda hoje vive, numa penthouse em Copacabana.
Serviu esta nota para não mais do que ilustrar a seguinte suposição: é possível que o juiz Neto de Moura, também conhecido como Joaquim Moura, considerasse mais ofensiva a conduta de uma mulher adúltera - que não estava a ser julgada por adultério, já agora - do que a de um padre pedófilo que assassinou uma das suas vítimas adolescentes (Luís Miguel Escórcio Correia tinha 15 anos quando foi encontrado ao fundo de uma ravina apresentando sinais de violência física, incluindo um traumatismo craniano que lhe terá sido fatal).
A proposta anterior é especulativa, claro. Serve simplesmente para dar algum contexto sobre o as decisões de Neto de Moura, que se tornam difíceis de compreender, quanto mais de enquadrar. O mal-estar que causou entre a magistratura, numa altura em que era juiz desembargador da Relação do Porto e depois de já ter exercido cargo semelhante na Relação de Lisboa, levou a que o Conselho Superior de Magistratura acabasse, depois de instaurado um processo disciplinar ao juiz desembargador, por decidir puni-lo com uma advertência - uma advertência decidida pelo presidente do Conselho após empate na votação, o que diz muito, diz tanto sobre a justiça em Portugal - e, pouco mais tarde, com uma espécie de despromoção, que retirou Neto de Moura da 1.ª Secção Criminal para a 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, de modo a não permitir que o juiz voltasse a julgar casos de violência doméstica. A medida foi tomada, segundo justificação oficial, por "manifesta conveniência de serviço". Meses mais tarde, então sim, Neto de Moura passava a assinar Joaquim Moura.
O caso que causou revolta e comoção, indignação e ofensas verbais merece ser relembrado com algum detalhe. Uma mulher foi agredida pelo marido e pelo amante. Os dois combinaram montar-lhe uma cilada e, quando ela chegasse ao lugar combinado, agredi-la-iam - com uma moca de pregos. Dois homens iludiram, de algum modo, uma mulher até um determinado lugar e, quando ela chegasse ao ponto pretendido, agredi-la-iam fisicamente, usando até uma moca de pregos. E assim fizeram, deixando a vítima em óbvio e compreensível mau estado.
Os dois criminosos haviam sido julgados em primeira instância e condenados a dois anos de prisão, que resultava em pena suspensa. O Ministério Público, inconformado com a decisão e com a ligeireza da pena, recorreu para a Relação do Porto. E foi aí que o caso caiu nas mãos de Neto de Moura. Umas mãos antigas e inábeis, que encontraram nos contornos do processo mais motivos para se solidarizar com dois homens vítimas das preferências de uma mulher do que com essa mulher, barbaramente espancada pelos dois homens.
"O contexto de adultério praticado pela assistente", assim se lê no acórdão que o juiz assinou uma das atenuantes que justificaram a decisão. Porquê? Por se tratar de "um gravíssimo atentado à honra e à dignidade do homem". Mais adiante, o juiz acrescentaria que na Bíblia as adúlteras eram condenadas à morte, que ao longo da história a mulher adúltera chegou a ser morta, "alvo de lapidação". A lista de enormidades podia continuar, porque elas não acabaram aqui. Mas não vale a pena, a hora é de júbilo: Joaquim Moura reformou-se. Mais vale tarde do que nunca.
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