Regresso ao passado, na Passarella
Um Pinot Noir sem nada a temer dos borgonheses, um espumante que não é branco nem rosé, mas Baga, e três vinhos de terroir de vinhas muito velhas. A Casa da Passarella foi ao passado abrir caminho para os vinhos de amanhã, e o resultado é francamente especial.
A Casa da Passarella é uma das mais antigas do Dão e uma das mais ricas em diversidade de castas e de vinhas antigas, como praticamente já não se encontra na região. Talvez tenha sido por sorte que este enorme património genético foi preservado ao longo do século XX, mas não foi certamente por acaso que a casa renasceu das cinzas na primeira década do milénio e faz agora grandes vinhos, modernos e autênticos.
Mesmo quando a equipa de enologia admite ter "muitas dúvidas e poucas certezas," como às vezes sucede com o enólogo Paulo Nunes, uma coisa permanece claríssima: "Só respeitando o terroir, as características das vinhas antigas e o saber fazer ancestral" conseguem produzir os vinhos que pretendem. O que se bebe aqui, parafraseando uma publicidade famosa, não se bebe igual em mais lado nenhum.
Começamos por aquela que é, possivelmente, a nota mais dissonante da oferta atual na Casa da Passarella: um Pinot Noir 2021, da gama Fugitivo. Esta gama homenageia o enólogo borgonhês (e judeu) Hellis, que, no início dos anos 1930, fugiu da Europa e se refugiou neste cantinho de Portugal, onde exerceu a sua atividade durante mais de uma década. Sabe-se pouco sobre a sua história, mas o trabalho que desenvolveu está bem documentado, passando, desde logo, pela plantação de uma vinha de Pinot Noir que muito ajudou os vinhos da quinta nos anos seguintes. Embora a casta não faça parte da região demarcada, a ligação é profunda e antiga – e não será por acaso que se compara tantas vezes o Dão à Borgonha. O que temos aqui é um excelente exemplo do que a casta pode dar: um vinho aberto de cor, elegante na boca, com acidez e pH quase de branco, e uma complexidade muito atraente. "A Pinot tem uma linha muito ténue", conta Paulo Nunes, "se acertarmos temos uma grande obra musical, mas se falharmos ficamos com a música mais popularucha que podem imaginar." Acertou.
Passemos ao Espumante Baga 2018 Nature, também da gama Fugitivo. O espumante apresenta uma cor translúcida, tipo casca de cebola, e "não é branco nem rosé, é Baga, que é o que importa." Paulo Nunes também não concorda muito com a importância que se dá à cor, por isso tornou-se uma espécie de advogado dos direitos civis do vinho: "A cor interfere naquilo que se sente no nariz ou na boca?", pergunta, antes de continuar (sem esperar pela resposta), "acredito que, dentro de 40 anos, ninguém vai dar qualquer importância à cor. Já passámos essa fase."
Quanto ao espumante, o resultado deve-se em grande medida aos estudos, técnicas e ensaios dos primeiros espumantes, realizados nas décadas de 1930 e 1940 pelo Dr. Mario Pato. Utiliza o método clássico, com a segunda fermentação em garrafa, e passa quatro anos sobre borras finas (sur lies). A base de Baga, com acidez muito marcada, permite esta fermentação mais prolongada. É um vinho de grande complexidade, seco, com boas notas vegetais e de frutas vermelhas. Vivamente recomendado.
Daqui, passamos à Villa Oliveira, que este ano apresenta três novidades: um Touriga Nacional de 2018, a Vinha das Pedras Altas de 2017 e a Vinha Centenária Pai D’Aviz, de 2018.
A marca foi criada em 1893 e precede até a elevação do Dão a região demarcada, o que só aconteceu em 1908. Não será por isso de estranhar que tenha sido recuperada para estes vinhos que só saem em anos especiais, embora "felizmente, isso aconteça com cada vez mais frequência, fruto da estabilidade permitida pelas vinhas velhas."
Em comum, os três tintos partilham um estágio prolongado de 36 meses em tonéis de 2500 e 3000 litros ou, no caso da Touriga Nacional, em barricas mais pequenas de 500 litros. "Os três invernos de estágio são fundamentais para dar estabilidade ao vinho", explica o enólogo. "Dessa forma, nunca tenho necessidade de intervir com filtrações ou colagens." É um vinho muito mais natural.
A Touriga Nacional é especial, porque é uma espécie de best of das tourigas nas vinhas velhas da Quinta. E só três pessoas têm permissão para ir para o meio do vinhedo antigo procurar, identificar e vindimar a casta no meio de todas as outras. É frutado e profundo, e um dos vinhos que justificam o título que se dá à Touriga, de Rainha das Castas Portuguesas.
No caso do Vinha Centenária Pai D’Aviz, o que chama imediatamente a atenção é o teor alcoólico de 12,5 graus – num tinto perfeitamente evoluído. O Dão tem esta capacidade, como se calhar não encontramos noutra região do país, de oferecer vinhos e uvas perfeitamente maduras, mas sem teores de álcool de 15 graus, e isso é particularmente evidente neste tinto, com uma leveza enorme e acidez vincada. O perfil faz lembrar, de alguma forma, os vinhos clássicos do Dão das décadas de 1960 e 1970, para quem os conhece – e quem não conhece ainda encontra muitos exemplares à venda nas garrafeiras, em excelente condição. Se também cheirar a caruma, não estranhe, porque a vinha está totalmente rodeada por bosque e este infiltrou-se no vinho. Podemos dizer que está prontíssimo a beber, mas ainda tem muito a ganhar com mais alguns anos em garrafa.
Da Vinha Pai D’Aviz damos um salto até à Vinha das Pedras Altas. Um pequeno salto, porque não distam 100 metros uma da outra. Mas o perfil muda completamente. Como a Pedras Altas está virada a sul, mais exposta ao sol, o vinho tem outra gravidade. Perde em leveza e acidez, ganha em corpo e fruta. A vinha conta com mais de 24 castas (Baga, Alfrocheiro, Touriga Nacional, Alvarelhão, Tinta Pinheira, Jaen, Tinta Carvalha, entre outras), mas não estão plantadas de forma homogénea. Assim, em certas zonas temos predominância de determinadas uvas em detrimento de outras, e o que fizeram neste vinho foi focar-se numa mancha no alto da vinha, com mais Alfrocheiro, Baga e Touriga Nacional. Ou seja, apesar de ter a vinha no nome, é, na verdade, um vinho de parcela, ou até de micro parcela. Se tivéssemos de escolher uma palavra para o descrever, seria autêntico. E elegante. Elegância e autenticidade. Duas palavras, afinal. A culpa é do vinho.
Um Pinot Noir sem nada a temer dos borgonheses, um espumante que não é branco nem rosé, mas Baga, e três vinhos de terroir de vinhas muito velhas. A Casa da Passarella foi ao passado abrir caminho para os vinhos de amanhã, e o resultado é francamente especial.
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