O novo luxo é ser feliz
De acordo com especialistas, o ter – automóveis topo de gama, casas imponentes, relógios de quatro dígitos ou a it bag do momento – deu lugar ao ser: livre, desprendido e independente. Tão simples quanto isto. Aparentemente.
Experiências? Não, bens materiais. Liberdade? Não, escravatura. Isto diz-lhe alguma coisa? Se não lhe diz nada, então o mais provável é que ande a passar demasiado tempo em frente ao seu computador, provavelmente enclausurado entre as quatro paredes do seu escritório – de repente, até a palavra escritório parece demodé e ultrapassada, não concorda? – enquanto lá fora a vida acontece. E por acontecer leia-se isso mesmo: a desenrolar-se, a decorrer, a passar. Tudo isto à velocidade da luz. Passa e não regressa porque o tempo não volta. Postas as coisas nesta perspetiva, é natural que a reação desse lado seja um encolher de ombros, um revirar de olhos, um "Really?!" que surge mentalmente. No entanto, se é assim tão óbvio que o tempo passa e não volta e se todos o sabemos de cor e salteado, faça este exercício e questione-se: há quanto tempo não contempla um pôr do sol daqueles capazes de deixar as lágrimas nos olhos? Quando foi a última vez que deu um mergulho na praia a meio do dia e em meados da semana quando o areal é vasto e não tem de pedir licença para passar, tal como acontece durante o fim de semana? Lembra-se de não acordar baralhado, sem saber se é sábado ou se é quarta-feira? Desde quando não vai buscar o seu filho à escola para irem ambos comer um gelado só porque apetece? Não sabe porque a sua vida acontece entre aquelas quatro paredes que ladeiam o seu escritório. E tudo para quê? Viver, claro. Pagar contas, definitivamente. E, como é natural, para ostentar a melhor casa do bairro e o automóvel mais XPTO do parque do seu local trabalho. Do género "Trabalho arduamente, logo existo", existência, essa, que fica à vista quando os bens materiais que possui acrescentam identidade à sua pessoa.
Retomando a frase de abertura deste texto (agora que começou a refletir acerca do que é que anda a fazer à vida) passamos a explicar. Mudam-se os tempos e mudam as gerações, e com elas mudam-se as vontades, as manias e os objetivos de vida: "As novas gerações estão mais despertas para um novo conceito de luxo em que se prioriza o luxo que é ser-se livre, ao invés do luxo que é ter-se determinado bem", confirma à Must a socióloga Raquel Ribeiro, investigadora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP). E deslinda: "Esta é uma realidade que se vê acontecer, há algum tempo, nos países do norte da Europa. Em Portugal, por sua vez, apesar de mais recente, também começa a haver esta contracorrente de pessoas que não querem trabalhar de acordo com o modelo que conhecemos, fazer carreira ou tão-pouco viverem focadas nos bens materiais." O ter deu lugar ao ser e o conceito de luxo já não tem que ver com aquilo que nos propagaram as gerações anteriores que, legitimamente, lutaram arduamente para serem alguém na vida. Mais uma vez, um ser-se alguém que implicou sempre ter-se o topo dos bens materiais. "O luxo de não precisar de bens materiais advém, precisamente, de quando há uma base de bens materiais", continua aquela socióloga. Explica-nos que essa mudança de comportamentos acontece porque já não se vivem os tempos de crise que se viveram nos últimos anos e que, inclusive, esses tempos aguçam a necessidade de se ter bens materiais: "As pessoas, quando não podem ter aquilo que desejam, almejam o luxo inalcançável."
A liberdade é o novo preto
As novas gerações, a começar pelos millennials, foram as primeiras a despertar para esta nova forma de se ver este luxo não palpável. E tal facto não é novidade. Com o aparecimento de plataformas, como a Uber ou o Airbnb, muitos daqueles luxos instituídos passaram para segundo plano, dando lugar a um bem maior: a liberdade. "A compra do carro e da casa são menos importantes para esta nova geração de jovens que, de resto, tem a casa dos pais, onde se sentem bem, ou o carro dos mesmos. Há uma base de comodidade mais elevada nesta geração. Ao contrário dos pais e dos avós que, ao terem essa carência, ambicionavam mais estes símbolos", clarifica Raquel Ribeiro. Colocada a situação nesta perspetiva, parece que quem opta por ser livre dessa maneira – não ter carro ou casa próprios e não ficar preso a empréstimos bancários ou escravo de um trabalho para pagar os mesmos – estará sempre dependente dos pais ou dos avós. O que nem sempre é a realidade.
Tiago Appleton, de 38 anos, ex-publicitário e órfão de pai e de mãe, há alguns anos que optou por trocar a vida de escritório, com os ordenados chorudos e os horários loucos que acarreta uma carreira como a sua, por uma vida longe da cidade, onde o luxo máximo mais não é do que ser livre e não depender de terceiros: "Ter uma vida da qual não se precisa de tirar férias. Esse é o meu mantra", elucida o ex-publicitário. E mantém: "Eu trabalho todos os dias e estou de férias todos os dias." Tiago trabalha a partir de casa para alguns sites, tem um blogue acerca de sugestões naturais e caseiras, acaba de lançar um livro acerca do mesmo tema e consegue fazer tudo isto sem estar dependente de alguém, sem ter de dar satisfações e… sem ter de tirar férias. Explica que a Internet trouxe muitas oportunidades para quem quer ser livre de trabalhar para os outros. São conhecidos como sendo os "nómadas digitais". O trabalho é remoto, mas o tempo para se viver não tem preço. Por isso, também para estas gerações, viajar está no topo dos seus luxos e novas e diversificadas experiências também. A socióloga Raquel Ribeiro esclarece que, em termos de sociedade de consumo, tal não significa que o luxo seja menos, sendo apenas diferente: "Consumo cultural e de experiências também é uma forma de consumo", elucida.
Maria da Câmara, de 38 anos, é freelancer na área do jornalismo e da publicidade. Não tem a ajuda dos pais, nem segurança de espécie alguma. Também não tem casa própria (divide um apartamento com a irmã) ou carro e há muito que deixou de comprar roupa de forma desenfreada como fazia: "Eu percebi que o meu conceito de luxo estava totalmente errado quando dei por mim a trabalhar horas a fio num escritório para ganhar ‘meio tostão’ que rapidamente desaparecia com a renda da casa ou se transformava num trapo novo que acabaria por ficar no armário… para nada." E continua: "Ser livre não é apenas não estar a trabalhar para terceiros. Aliás, enquanto freelancer continuo a fazê-lo. Ser livre significa antes ser dona do meu tempo. Fazer os meus dias conforme me apetece. Ser livre é estar com os meus amigos a beber uma sangria à hora de almoço de um dia de semana na praia. Se tiver de trabalhar um bocadinho no domingo quando as praias estão atoladas, não faz mal. Ser livre é ter amizades reais que vão além das redes sociais e viver essas amizades no campo real, muito além do digital. Tenho a sorte do meu grupo de amigos mais próximo partilhar desta forma de se estar na vida. Somos todos livres e nenhum de nós depende dos pais ou de outros familiares endinheirados. Temos menos, certamente, mas a nossa vida é feita de momentos que acontecem muito além dos fins de semana ou dos 21 dias úteis de férias. Não temos carros XPTO ou casas deslumbrantes, mas temos experiências de sonho." Maria conta que planeia viajar ao longo do mês de janeiro [de 2020]. Ainda não sabe para onde: "Ásia ou Ámerica Latina…"
Na sequência desta conversa e na análise do valor que é ter-se tempo, vieram também à tona as questões das redes sociais. "Ser dona do meu tempo tem-me permitido também aprofundar uma série de matérias do meu interesse. Leio como nunca li e o meu consumo de informação vai muito além dos assuntos fait-divers que o mundo digital sugere. Aliás, para mim isso é um luxo: o conhecimento aprofundado das coisas. Na clausura dos escritórios acabamos por passar muito tempo online a consumir tudo e mais alguma coisa… Porém, tudo espremido acaba por ‘sair’ nada." No novo conceito de luxo não se mexe porque este não é físico. As grandes marcas de luxo começam a repensar as suas formas de se posicionarem no mercado – se o mercado for moda de luxo então a dificuldade é ainda maior porque não só as novas gerações não consomem tanto, como a questão da sustentabilidade deixou muita "poeira" a pairar no ar. Para já, não há motivo para alarme: "[Esta mudança do conceito de luxo] vai continuar minoritária. Eu não antevejo que nas próximas décadas haja uma mudança de mentalidades tão radical", pressupõe a socióloga Raquel Ribeiro. Nós cá estaremos para ver. Ou então não, pois estaremos a dar mergulhos numa ilha algures no Pacífico.
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