Prazeres / Sabores

Missão Improvável. Chef Tanka caça e encontra trufa preta em Portugal

Atenção, mundo da gastronomia: trazemos notícias formidáveis. Ao contrário do que até há pouco se pensava, também o solo português dá trufas. São pretas e crescem no Oeste. Confirmámos de perto. Aqui fica o relatório detalhado da descoberta.

Foto: Jorge Simão
28 de maio de 2024 | Diego Armés

9:04 Meeting point na Calçada da Pampulha em Lisboa. 

Integram a missão: 

-Chef Tanka Sapkota, indefectível crente na existência de trufas em solo português, apesar de todas as indicações em contrário; 

-Giovanni Longo, caçador de trufas de Piemonte, na Itália, com a sua cadela pisteira Pina, uma especialista na caça da trufa; 

-Cerca de duas dezenas de jornalistas, ansiosos por descobrir e degustar trufas. 

O objeto: a trufa, um género de fungo que cresce debaixo da terra, junto à superfície, em simbiose com as raízes de certas árvores, nomeadamente carvalhos e aveleiras, entre outras. Existem as trufas brancas, raras e caríssimas, as trufas negras, mais comuns em certos lugares da Europa, e as trufas de verão, também encontradas em diversos pontos do continente europeu. Em Portugal, nenhuma trufa havia sido atestada até 21 de maio de 2024. O chef Tanka Sapkota conseguiu, nessa data, a certificação de trufas de verão pretas oriundas dos municípios de Sobral de Monte Agraço e de Alenquer. 

Recompensa: no fim da caçada, a comitiva será recebida no restaurante Come Prima, do Chef Tanka, em Lisboa. Como bons caçadores-recoletores, comemos o que caçarmos (é possível que não seja bem assim). 

Ambiente geral: o Chef Tanka e Giovanni Longo vêm camuflados. Possivelmente, para não espantarem as trufas. Há alegria e espírito, mas também se nota que levam a caça muito a sério. 

A primeira vez que se descobrem trufas em Portugal.
A primeira vez que se descobrem trufas em Portugal. Foto: Jorge Simão

9:17 partida de Lisboa rumo ao Oeste, onde a trufa preta se esconde debaixo de mantos de caruma, vegetação e terra. 

O mais difícil desta caçada é, até agora, deixar para trás o trânsito infernal de Lisboa. 

9:30 ainda estamos em Campo de Ourique. 

9:38 na estrada, Chef Tanka pega no microfone e fala para todo o autocarro. "Estamos atrasados 10 ou 15 minutos. Aproveito para falar da minha história com as trufas. Começou em 1992, eu tinha 18 anos e acabado de chegar à Europa." 

Tudo começou na Alemanha, com trufa preta, conta o chef. Em 2007, descobriu a trufa branca. Já em Portugal, a sua ideia era "democratizar a trufa". "Em 2007, os pratos de trufa já custavam 150 ou 200 euros", diz. Foi para Itália durante três semanas para compreender o que era apanhar trufa. Percebeu que era difícil e que daí advinha o preço elevado - o da trufa branca, principalmente, que pode chegar (ou até ultrapassar) os 5 mil euros por quilo. "No primeiro ano [de pratos de trufa no Come Prima], em duas semanas, gastei meio quilo de trufa branca", conta, ao microfone. E depois acrescenta que, em certos dias, chega a gastar um quilo de trufa num só dia. "O que se gasta noutros sítios numa semana, eu gasto num dia." 

A caça à trufa, com Chef Tanka Sapkota e Giovanni Longo.
A caça à trufa, com Chef Tanka Sapkota e Giovanni Longo. Foto: Jorge Simão

Há dois anos pensou: será que há trufas em Portugal? Se houvesse, já alguém as teria apanhado e já se saberia. Interrompe o raciocínio para falar das três dívidas da sua vida, que faz questão de pagar - depois, perceberemos que não são dívidas nem podem ser pagas, são antes três demonstrações de gratidão: ao Nepal, sua terra-natal, a Itália, terra de aprendizagem e início de carreira profissional, e a Portugal, "que tudo me deu". Tencionava pagar a dívida a Portugal descobrindo por cá a existência da trufa. 

Em várias ocasiões foi contactado por pessoas que diziam ter encontrado trufa. Mandava amostras para a Universidade de Coimbra e os resultados eram sempre negativos: nunca eram trufas. "Nunca é trufa. Mas desta vez é mesmo: é trufa preta de verão. E tem um cheiro único", conta, com um sorriso infantil e uma alegria de criança. E foi mesmo uma criança que encontrou a primeira, a brincar numa quinta. Perguntou ao pai "o que é isto?" e o pai achou que podia ser uma trufa. Foi ao Google, procurou e pareceu-lhe que era mesmo. Ligou então para Tanka Sapkota, "chef, tenho aqui uma trufa". Mandou vir o fungo no próprio dia. Ao microfone do autocarro, impaciente, faz fast-forward: "A trufa é abundante em Portugal", garante. "Apanhámos mais de 10 quilos em mil metros quadrados." (Porém não acredita que venha a encontrar a trufa branca. Só a preta. Também há a vermelha, mas essa não tem valor comercial.) 

O chef anuncia que o Come Prima vai fazer duas semanas de trufa nacional.
O chef anuncia que o Come Prima vai fazer duas semanas de trufa nacional. Foto: Jorge Simão

Depois, anuncia que o Come Prima vai fazer duas semanas de trufa nacional ("ontem apanhámos quase 3 quilos, uma delas tinha 200 gramas"). "Pelo menos duas semanas durante junho." 

Em seguida, esclarece que, em Itália, a caça à trufa abre a 1 de junho. "Mas aqui em maio já havia trufa madura. Podia-se apanhar entre fim de abril e início de maio, porque senão a trufa apodrece." 

Fala, depois, sobre Giovanni Longo. Diz que o escolheu porque Longo é um homem sincero e honesto. Tanka diz que consegue ver como as pessoas são por dentro. Depois de uma aventura em 2023, que resultou em nada, pois não se encontraram trufas, este ano, depois da descoberta no Oeste, Tanka telefonou para Longo, mas teve algum receio que desta vez o especialista piemontese não aceitasse o desafio. É claro que estou disponível!", respondeu Giovanni. E pôs-se a caminho de Lisboa. 

10:05 saímos da autoestrada no meio de montes. Estamos definitivamente no Oeste. As placas dizem Sobral de Monte Agraço, dizem Arruda dos Vinhos, mas não sei ao certo onde estamos. 

10:12 depois de uma subida sinuosa de um desses montes, por uma estrada estreita onde não cabe mais do que um carro de cada vez, entre vinhas, urze e eucaliptos - no cume, um moinho de vento dos antigos; adiante, as gigantes ventoinhas de energia eólica -, pensamos que é aqui, mas depois percebemos que ainda não chegámos. Enquanto houver estrada para andar, parece que a gente vai continuar. 

10:18 no meio de um terreno junto à estrada, uma ruína. Há de ter sido em tempos um palácio. Hoje, é um matagal com restos de paredes - quatro ou cinco erectas - no meio. Nota mental: as figueiras e as oliveiras podiam dominar o mundo se as deixássemos crescer. 

O chef Tanka pega de novo no microfonte: "Dantes, muitas vezes não se apanhava a trufa porque as pessoas achavam que era cocó de javali." Depois diz que esta trufa de verão preta deve valer por volta dos €100 o quilo, "porque é abundante" - diz isto perante um autocarro cheio de gente que nunca viu trufas portuguesas, assim mesmo, "porque é abundante".  

10:27 chegámos ao sítio. É aqui que está a trufa negra. Ah, não. Afinal, houve um engano no caminho. Temos de voltar para trás. 

10:30 estamos a atravessar uma aldeia de ruas demasiado estreitas, onde duas bicicletas em sentidos opostos podia ter de ceder passagem. Como é que o autocarro cabe aqui? Ninguém sabe. 

10:32 chegámos. Agora sim. Estamos no topo de uma vinha, de frente para a serra de Montejunto. 

10:34 vemos pela primeira vez Pina, a cadela pisteira, ainda na sua caixa. Sai com o dono. Está felicíssima. Vai caçar trufas. 

10:38 de volta ao autocarro. Parece que ainda estamos demasiado longe para ir a pé. Caçar trufas não é decididamente fácil. 

10:41 agora sim. Acho eu. Chegámos. Há elementos da Proteção Civil e, a avaliar pelo guarda-roupa, representantes das autarquias locais (mais tarde, um deles dirá "estes sapatos foram um erro de casting, estou farto de escorregar", o que confirmará a primeira impressão). "Tinha de vir um nepalês descobrir trufas em Portugal", diz Tanka para os autarcas, vestindo um colete da Associazione Tartufai di Alba, possivelmente a mais conhecida associação de caça à trufa do mundo. 

10:48 Pina está em ação. Na verdade, aqui quem caça é ela. Nós não passamos de intrusos, de estorvos até. Só atrapalhamos com a nossa curiosidade. 

Entretanto, o chef explica que os javalis são o inimigo, aqui: cheiram e encontram as trufas antes que os humanos ou Pina lá cheguem. Vemos a terra revolvida e encaixamos a explicação naquilo que observamos. 

10:55 no meio dos pinheiros, encosta abaixo, Pina cheira e desbrava. Até agora, nada. O terreno está revirado. Só ficou o cheiro. As trufas levaram-nas os javalis. 

O pinhal é denso e a sombra abundante. Esta é uma característica ideal para o crescimento da trufa. 

10:59 Pina localizou qualquer coisa. Será trufa? Chef Tanka escava. É mesmo trufa. "30, 40 gramas", diz. Para quem vê, parece grande, mas para Tanka parece pouco. "Cheira igual às italianas", diz Giovanni. Será, por certo, um grande elogio. É a primeira vez que vejo uma trufa ser colhida em solo português. 

"É a primeira vez que vejo uma trufa ser colhida em solo português." Foto: Jorge Simão

11:02 Pina sinaliza mais uma, mesmo ali ai lado. Tanka escava. Será outra? Não é. Pina só queria mais um biscoito de bom comportamento - que não leva, claro. Mas a cadela insiste, como quem diz "eu sei que há mais por aqui". 

11:04 novo sinal de Pina. Ela escava. Ela tem a certeza. Insiste. Escava mais. Tanka diz que não vê. Talvez esteja mais fundo. Agora é ele quem escava. E é mesmo trufa. Mais pequena do que a primeira. "Mas é muito perfumada", diz Tanka. "Por isso é que ela a conseguiu cheirar, a trufa estava muito funda." 

11:11 ainda nas imediações das caçadas anteriores, Pina escava mais um buraco. Mas desta vez não há trufa, apenas cheiro. Tanka sugere a Giovanni que se passeie, que se mude de zona. Isto é um jogo de paciência e de escondidas. A existência de um batalhão de jornalistas atrás dos caçadores também não ajuda o trabalho de Pina, verdade seja dita. 

Pina, a cadela pisteira, encontrou as trufas.
Pina, a cadela pisteira, encontrou as trufas. Foto: Jorge Simão

11:14 mais acima na encosta, Pina escava. Suspense. Talvez esteja funda. E aí está ela. Uma pequena mas muito cheirosa trufa preta. "Mas temos de apanhar uma grande. Há tantas grandes", diz Tanka. 

O chef explica que, depois de apanhada a trufa, o terreno deve ser reposto. "Assim, no próximo ano, cresce aqui trufa outra vez." 

11:30 Pina bem procura, encosta acima, encosta abaixo, mas nada. Este pinhal está batido. Veremos se a cadela caça mais alguma antes do almoço. 

Há mais trufas por lá.
Há mais trufas por lá. "30 metros quadrados onde já apanhámos 10kg". Foto: Jorge Simão

11:34 juntam-se à caça um rapazinho que vem ao colo do pai. Os jornalistas abordam-nos, "foi este o menino que achou a trufa?" O pai ri-se, diz que não. "Mas é assim que nascem os mitos", brinca. "Vocês põem-se a dizer ‘é o pastorinho que avistou a trufa’", brinca. 

11:37 Tanka manda vir uma geleira, daquelas de levar para a praia. Há lá dentro muitas trufas. Foram apanhadas ontem. "Duas foi este miúdo que apanhou", diz. É a criança que vinha no colo. As trufas da geleira foram apanhadas em três sítios diferentes, segundo o chef. 

11:44 A comitiva regressa ao autocarro. Vamos a um outro sítio. Há mais trufas por lá. "30 metros quadrados onde já apanhámos 10kg" - havemos de perceber que é exagero do chef, claro. Não são só 30 metros quadrados. Mas não devem ser mais de 100 ou 150, no máximo. 

12:20 mais uma estrada de serra. As trufas devem estar próximas. 

A caçada terminou com um almoço no Come Prima.
A caçada terminou com um almoço no Come Prima. Foto: Jorge Simão

12:26 chegamos ao novo sítio. Uma família vem abrir-nos a porta da propriedade. O pai apresenta os filhos, dois miúdos - um deles é João Pedro, 12 anos, o que encontrou a primeira trufa. "São os caçadores oficiais", diz o pai, Pedro. "É o pastorinho que avistou a trufa", penso eu, mas apago rapidamente o pensamento. 

Pedro conta que, no último terço de abril, apanharam 3,600kg ali, naquele pequeno recanto. É natural que ali haja uma maior concentração, explica o chef Tanka. "O terreno é vedado, não há javalis." 

12:35 Nina encontra a primeira trufa, junto à superfície. 

12:36 outra. "É enorme", diz Tanka. "São duas!", exulta. "São três! Não, quatro!" É um festim. Até eu tropeço numa enorme, dou-lhe um pontapé sem querer. "Está seca", dizem-me. Que pena. Porém, juntam-na ao cesto da colheita. Talvez ainda se aproveite. 

12:43 Pina dá novamente sinal, mesmo à beira do caminho. "É pequenita", lamenta Giovanni. "E está seca", diz Tanka. Esta está mesmo. 

12:49 a cadela apresenta sinais de cansaço, distrai-se com facilidade. O vento não ajuda, leva os odores e mistura-os. Giovanni insiste, mas Pina parece não ser capaz de encontrar mais nada. 

"Vamos provar a trufa preta portuguesa pela mão do Chef Tanka." Foto: Jorge Simão

12:52 Afinal, Pina ainda parece detetar mais uma. Estará funda? Não. Falso alarme. 

12:57 Pina resgata nova trufa, desta vez junto à superfície. 

13:04 fim da aventura. Vamos para Lisboa. Vamos provar a trufa preta portuguesa pela mão do chef Tanka. 

14:12 chegada ao Come Prima.  

Um creme de batata com trufa, primeiro; uma massa trufada, depois. Ambas deliciosas. É o que o chef Tanka nos serve no final da Missão Improvável de encontrar trufas portuguesas, mesmo aqui ao lado, no Oeste, onde o célebre cozinheiro natural do Nepal assegura que são "abundantes". Foi uma caçada e tanto. E é difícil decidir o que foi melhor, a descoberta ou a recompensa. Mas é possível que seja mesmo a descoberta. 

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