Prazeres / Artes

"Paradigm", por Ai Weiwei: Lego e porcelana como materiais de resistência

A Galeria São Roque, em Lisboa, acolhe uma exposição do artista chinês que faz da luta contra o regime o combustível da sua criação. Os materiais podem ser delicados, tal como a expressão artística de Ai. Mas o espírito, esse, é inquebrável.

Dropping a Han Dinasty Urn (2015)
Dropping a Han Dinasty Urn (2015) Foto: DR
12 de julho de 2024 | Diego Armés

Uma pessoa lê "Ai Weiwei - São Roque" e o entusiasmo fervilha. O que terá o grande artista chinês para nos mostrar na sumptuosa Igreja de São Roque? Que mundo maravilhoso existirá para lá daquelas portas barrocas? Entretanto, quase a chegar ao suposto destino, somos notificados pela realidade: "Não, não é na igreja; é São Roque, sim, mas a galeria, em São Bento." Está visto que este jornalista, usando as palavras exatas daquele personagem caricato que a televisão registou e a Internet amplificou, "é um jornalista".

Emende-se o engano, corrija-se o destino. Só que a pé, porque, com tanto movimento e engarrafamentos, não adianta chamar um carro. A caminhada do Bairro Alto até São Bento não é perversamente longa nem extenuante, mas os 30 graus deste julho ameno em Lisboa, juntamente com trânsito e transeuntes, carros e pessoas, fumos e barulhos, tornam difícil a caminhada, feita em passo acelerado de modo a minimizar o atraso - já que evitá-lo seria física e cronologicamente impossível: ninguém chega a determinado sítio antes da hora a que saiu do lugar anterior.

A exposição.
A exposição. Foto: João Krull

PARADIGM

A Galeria São Roque não terá a grandiosidade da Igreja com o mesmo nome, mas o que a outra tem de profuso em brilhos, dourados e rococó, esta compensa com a serenidade das paredes brancas e da luz suave. E é neste espaço, amplo e acolhedor, que encontramos a obra de Ai Weiwei, o artista chinês radicado em Portugal desde 2021. A exposição intitula-se Paradigm, foi inaugurada a 15 de maio e estava previsto que encerrasse a 31 de julho. No entanto, já foi garantida uma extensão, "pelo menos até final de agosto, mas possivelmente ficará até depois disso". 

A declaração é do próprio Mário Roque, antiquário e proprietário da galeria, e ainda mentor da exposição, que é a primeira de Ai Weiwei com caráter comercial realizada em Portugal. "Todas as peças aqui expostas estão à venda", dizem-nos, e logo assinalam uma exceção: "O tríptico em Lego Dropping a Han Dinasty Urn é um protótipo. O cliente pode comprar, mas não é aquele que está exposto que leva para casa." O tríptico é a reprodução de uma célebre sequência fotográfica, de 1995, em que um estóico Ai Weiwei deixa cair uma urna da Dinastia Han (206 a.C. - 220 d.C.), que se quebra em pedaços. "É um ato de destruição, mas também de criação, a partir de um vaso muito antigo."

Ai in Dripping, um painel de Lego a partir de um retrato tirado por Gao Yuan a Ai Weiwei.
Ai in Dripping, um painel de Lego a partir de um retrato tirado por Gao Yuan a Ai Weiwei. Foto: DR

CRIAR, INTERVIR, RESISTIR

Numa época em que tanto se fala do que pode ou não ter caráter de intervenção, de que atos, gestos e palavras têm legitimidade para ser políticas, a obra de Ai Weiwei é, de certo modo, um bálsamo. Nela, não há lugar para dúvidas: tudo é político, tudo é intervenção. Nenhuma mensagem é meramente estética, muito menos gratuita. A arte nunca é só arte. De tal modo que, em muitas das - em todas as? - obras expostas, o motivo para chegar até elas, sempre político, sempre contestatário, sempre carregado de significado, é indissociável da sua essência, que por vezes pode escapar a quem a observa por desconhecer o contexto ou o processo. 

Blue and White Porcelain Plates.
Blue and White Porcelain Plates. Foto: DR

Os indícios do teor político são, em certos casos, bem visíveis - como acontece em Blue and White Porcelain Plates, um conjunto de seis pratos de porcelana que exibem, inspirando-se na Odisseia de Homero, representações de guerras e crises humanitárias contemporâneas -, mas noutros casos residem em detalhes praticamente imperceptíveis aos olhos mais destreinados ou distraídos - como sucede em Dragon Vase, um vaso em porcelana aparentemente tradicional, com um dragão representado. Só que o dragão tem uma particularidade: possui seis garras e não cinco, ou seja, tem mais poder, é mais capaz de destruição. 

Ruyi, 2012. Parece um dragão em porcelana, mas na realidade é um puzzle de vísceras composto por recriações de órgãos humanos.
Ruyi, 2012. Parece um dragão em porcelana, mas na realidade é um puzzle de vísceras composto por recriações de órgãos humanos. "Ruyi" significa "o que desejamos" e o Ceptro Ruyi é um emblema cerimonial de longevidade e boa sorte. Foto: DR

O mesmo acontece na impressionante Ai in Dripping, um painel de Lego a partir de um retrato tirado por Gao Yuan a Ai Weiwei. Neste caso, quem vê a imagem não tem como chegar à história que a motiva. No retrato, Weiwei tem uma cicatriz fresca no crânio, uma costura muito recente. Essa resultou de um confronto com a polícia. Ai Weiwei, que ia testemunhar em tribunal a favor de um ativista chinês, cruzou-se com a polícia na noite anterior ao depoimento. Foi preso e severamente espancado, tendo acabado no hospital, onde foi cosido à ferida que lhe fizeram na cabeça. Quem vê o colorido painel de tijolos de Lego não consegue imaginar a história que o precede e motiva. A obra de Ai Weiwei vai muito para além do que é visível e percetível: antes e depois dela, há uma história de luta, de resistência, de oposição, de busca pela justiça, de demonstração de inconformismo e de insubmissão.

TEMPO E MATÉRIA

Paradigm reúne uma série de obras que recorrem a materiais como a porcelana ou o plástico de Lego, por exemplo. Entre a natureza e os hábitos mundanos, revela-se a mensagem política, mas também estética, muitas vezes através do recurso ao que é antigo. O vaso Han que Ai Weiwei destrói no tríptico já mencionado, é disso um bom exemplo, mas Set of Spouts, a obra em porcelana onde se reúnem bicos de antiquíssimos bules de chá, não lhe fica atrás. 

Set of Spouts, a obra em porcelana onde se reúnem bicos de antiquíssimos bules de chá.
Set of Spouts, a obra em porcelana onde se reúnem bicos de antiquíssimos bules de chá. Foto: DR

A guia da exposição explica-nos que o artista possui "uma vasta coleção, com mais de 40 mil bicos de bules". A explicação continua: "Durante a Dinastia Song (960-1279), os bules que não eram considerados perfeitos, acabavam destruídos." Os bicos são partes desses fragmentos que Ai Weiwei foi reunindo desde a década de 1990. Nesta obra, reuniu uma pequena amostra, apresentando-os de uma maneira que sugere, por um lado - pela impressão visual -, a presença de ossos humanos que furam a terra como se se libertassem; por outro - o ontológico -, faz questionar o princípio da perfeição: aqueles que, em tempos, de imperfeitos que eram, foram quebrados, são hoje parte de uma obra de arte notável e belíssima.

POR PEÇAS

Há certas peças nesta exposição que dão vontade que as pudéssemos adquirir em partes - eu fico com este pedaço, outra pessoa fica com aquele, ainda outra com aqueloutro, por aí fora. Os pratos de porcelana são um caso flagrante desta vontade, mas há mais. He Xie é uma coleção de caranguejos de porcelana cujo nome significa "harmonia" em chinês, mas que o povo tratou de traduzir para aquilo que a harmonização na China significa: censura. Os caranguejos representam um elemento subversivo na cultura chinesa contemporânea. Além desse, têm outro significado. Ai Weiwei serviu um banquete de caranguejos para assinalar - subversiva e contestatariamente, como é óbvio - a ordem dada pelas autoridades chinesas para a demolição do seu estúdio de Xangai, em 2010. He Xie é uma escultura de 2011 com nove peças, nove caranguejos que podiam perfeitamente ser divididos por novo pessoas, não fosse dar-se o caso de, nestes assuntos, a união fazer a força.

Porcelain Rebar, 2014, inspirado no sismo violentíssimo que afetou a província de Sichuan, no sudoeste da China. Atingiu o grau 8 de magnitude, na escala de Richter, e causou aproximadamente 80 mil mortes.
Porcelain Rebar, 2014, inspirado no sismo violentíssimo que afetou a província de Sichuan, no sudoeste da China. Atingiu o grau 8 de magnitude, na escala de Richter, e causou aproximadamente 80 mil mortes. Foto: DR

Atenção: há uma obra que não é necessariamente subversiva. Pazar, uma coleção dispersa de frutas e legumes, tem as dimensões variáveis, consoante a imaginação e o espaço disponível em casa. É uma obra que reproduz a tradição chinesa da imitação das formas orgânicas em porcelana. Além disso, é uma peça que também comunica diretamente com a tradição da cerâmica portuguesa, nomeadamente a de Bordalo Pinheiro. Uvas, tangerinas, pimentos, cenouras, batatas, limões, alhos e cebolas roxas, batatas; couves, quiabos, pepinos e malaguetas. Podíamos continuar. Mais parece uma banca de mercado - e, na realidade, é isso mesmo que o artista pretendeu reproduzir, uma banca de mercado. Mas não uma qualquer: é uma de um mercado de Istambul, que o artista conheceu durante uma das suas muitas viagens pelo mundo. 

Pazar, uma coleção dispersa de frutas e legumes.
Pazar, uma coleção dispersa de frutas e legumes. Foto: DR

Os mercados de sábado em Istambul, chamados "pazar", deixaram em Ai Weiwei uma marca profunda. Neste caso, é realmente uma pena que os objetos que compõem a totalidade da peça não possam ser vendidos em separado. Mas entende-se. A obra não é um cacho de uvas nem uma cabeça de alhos. A obra é o todo, a mesa, a banca, a evocação da ideia do próprio mercado. E a verdade é que quase conseguimos sentir-lhe os aromas assim, com tudo junto - ninguém vai comprar meio quilo disto, oitocentos gramas daquilo.

Girl With Pearl (2022), uma reinterpretação com peças de Lego do famoso quadro de Johannes Vemeer, Rapariga Com Brinco de Pérola, de 1665. A obra é uma espécie de troca-por-troca com os contemporâneos de Vermeer: na época, uma loucura pela porcelana chinesa atravessou a  Europa.
Girl With Pearl (2022), uma reinterpretação com peças de Lego do famoso quadro de Johannes Vemeer, Rapariga Com Brinco de Pérola, de 1665. A obra é uma espécie de troca-por-troca com os contemporâneos de Vermeer: na época, uma loucura pela porcelana chinesa atravessou a Europa. Foto: DR
Para quem estiver interessado nas peças de Paradigm, há um preçário disponível na Galeria São Roque. Os valores variam muito, vão dos 50 mil aos mais de 300 mil euros. Tudo depende da peça pretendida. A visita à exposição, essa, não tem preço, porque o privilégio de contemplar a arte de Ai Weiwei, e de deixar que a sua obra estimule o pensamento e o sentido de tempo, de justiça, de resistência e de inconformismo, não é possível medir-se em dinheiro. Só em deleite.
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