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Isto Lembra-me Uma História: Trotinetes, o fim de uma era?

O exemplo, como em tantos outros temas, vem de fora, chega-nos de Paris. Desde 1 de setembro, são proibidas as trotinetes elétricas de aluguer e de partilha na capital francesa. Na base da decisão estão as preocupações com a insegurança e com a partilha do espaço público. Por cá, aguardamos serenamente que tudo corra bem.

Foto: Getty Images
03 de setembro de 2023 | Diogo Xavier

A notícia não é de agora, o trágico acidente já ocorreu há mais de um mês, mas nunca é demais lembrar que, em finais de julho, um rapaz de 16 anos morreu num violento acidente de trotinete. O jovem levava consigo uma rapariga de 15 anos, que sofreu ferimentos ligeiros. A trotinete em que circulavam embateu desgovernada contra um muro e desse embate resultou aquele terrível desfecho.

Recupero esta notícia porque, em Paris, é proibido o aluguer de trotinetes elétricas dia 1 de setembro. Segundo o que me foi possível apurar, Paris foi cidade europeia pioneira na implementação deste tipo de serviços de aluguer de trotinetes elétricas a partir das plataformas digitais que hoje em dia usamos para tudo e mais alguma coisa, seja para chamar TVDEs, pedir pizzas requisitar bebidas ou tabaco fora de horas. A moda das trotinetes expandiu-se de Paris para as outras cidades europeias com tradição turística e vocação para o entretenimento dos turistas e acabou por se alastrar até meios mais improváveis, como se pode ver pelo caso dramático de Alcácer do Sal, que sendo um lugar com vocação turística, não será uma metrópole aberta para receber horas de turistas, aos milhares.

Paris aboliu de vez as trotinetes.
Paris aboliu de vez as trotinetes. Foto: Getty Images

O que mais surpreende neste tema das trotinetes nas cidades é a aparente ingenuidade otimista que a ideia, em si, comporta. Quem terá sido o ingénuo que pensou, pela primeira vez e em francês - provavelmente em Paris, acreditando na cronologia -, "e se disponibilizamos trotinetes para o público para que as pessoas pudessem andar na cidade com muito maior mobilidade?" Tratando-se de um meio de transporte que não é sequer levado a sério - confiem em mim: nem sequer obedece a regras rodoviárias, nem de qualquer outro tipo de circulação; é, aos olhos da lei, um brinquedo, que as autoridades não sabem como enquadrar -, parece razoavelmente óbvio que comportaria, sem demoras, riscos acrescidos à circulação nas cidades.

À falta de lei, podemos somar a falta de bom-senso e de civismo de uma boa parte dos utilizadores deste peculiar meio de transporte, que é também, e em muitos casos, meio de diversão. Claro, esta minha perceção resulta do que observo, mas acredito que o que acontece em Lisboa não seja assim tão distinto do que sucede nos outros lugares por onde pululam estes objetos, que resultam do cruzamento entre uma má ideia e um prolongamento inusitado da infância dos seus utentes. 

Na capital portuguesa não é raro assistir-se a intrépidos trotinetistas percorrendo passeios e avenidas, vielas e vias rápidas, praças e até escadarias, montados nestas invenções arcaicas e inseguras, às quais se acrescentaram baterias e chips de controlo. E é também tudo menos raro depararmo-nos com estes pequenos cavalos mecânicos e instáveis deitados pelo chão, nas estradas e passeios, ou à frente de portas, entre carros, espalhadas em estacionamentos e esplanadas, dentro de fontes e debaixo de arcadas. Como boa praga que são, chegam a toda a parte.

Outra coisa que surpreende neste assunto, embora não tanto quanto a ideia original, porque, enfim, estamos em Portugal e não é assim tão estranho que as tendências da civilização europeia cá cheguem com um certo atraso: depois de observadas as experiências maioritariamente negativas da instalação deste tipo de comodidade lúdica ao dispor de qualquer um - qualquer um: de qualquer idade, com ou sem carta, conhecedor ou não da localidade, responsável ou não, sóbrio ou não - nessas cidades, nas grandes cidades portuguesas não houve uma única pessoa capaz de levantar um sobrolho desconfiado e de dizer aos demais "ouçam lá, mas isto será boa ideia?" Talvez tenhamos tido receio de desvalorizar Lisboa e Porto nas tabelas de avaliação turística, talvez, tolhidos pelo medo de que alguém no TripAdvisor escrevesse "Lisbon é muito bonita, porém não tem trotinetes, pelo que se desaconselha a visita: a evitar", tenhamos decidido "boa ideia, vamos pôr veículos de duas rodas, instáveis, inseguros e sem regras, ao dispor de qualquer transeunte não atestado para que este possa circular, livremente e a altas velocidades, pelos passeios, estradas e ciclovias das cidades".

Paris, cidade-luz onde nasceu toda esta balbúrdia, foi também o berço da desconfiança a propósito da validade da ideia. No fim de 2022, a câmara de Paris, em declarações oficiais do seu vice-presidente David Belliard, considerou que seria "difícil continuar" com as licenças das operadoras de trotinetes depois de 2023. Na base dessas declarações, a câmara de Paris usou factos e números para se sustentar: 24 mortes em França em 2021, na sequência de acidentes com trotinetes elétricas; 337 acidentes nos primeiros oito meses de 2022, um aumento de cerca de 30% relativamente ao período homólogo de 2021, o que fazia prever o pior ao nível das fatalidades. 

E foi neste contexto e perante estes números que os parisienses foram chamados a votar num referendo, "trotinetes: sim ou não", em abril deste ano. Não foram muitos os que acorreram à chamada - apenas 7% dos eleitores decidiram votar -, mas, desses, a maioria contra as trotinetes foi esmagadora, com 90% a manifestar-se contra as trotinetes.

Por cá, e tanto quanto se sabe, não existem planos para refrear o impulso trotinetista, parecendo, pelo menos à vista desarmada, um fenómeno em franca expansão, a avaliar pelos esqueletos com duas rodas derramados pelas artérias das cidades e pelas centenas e centenas de indivíduos e casais que, como formigas sobre rodas, povoam e enervam os centros e as zonas históricas das cidades. No entanto, o caso trágico do acidente de Alcácer, embora seja, pelo que apurei, o único cujo resultado foi a morte de uma pessoa, não é apenas um caso pontual. Na verdade, os acidentes com trotinetes têm vindo a aumentar a uma velocidade que a própria Proteção Civil já lançou alertas e vem pedindo medidas.

Em 2022, e segundo a mesma Proteção Civil, Portugal contabilizava, ao fim de 5 anos desta moda, "centenas de acidentes" - acidentes que incluíam, já agora, atropelamentos em passeios, ou seja, danos a terceiras partes que nada tinham a ver com as trotinetes -, dos quais haviam resultado 13 feridos com registos hospitalares. A falta de capacete, o excesso e velocidade, o álcool e a ignorância do código da estrada são alguns dos motivos que justificam estes números, mas podemos acrescentar que sendo veículos instáveis capazes de circular a 40 ou 50 quilómetros por hora em ambientes de cidade, rodeados de automóveis e de peões, talvez também não seja justificação que se possa ignorar.

Em julho deste ano, numa altura em que Portugal contava 245 mortes na estrada, as autoridades manifestaram, uma vez mais, preocupação relativamente ao aumento do número de acidentes com trotinetes. Que número é esse? Ninguém sabe ao certo - serão centenas, como eram no anterior. Quantas centenas? Ninguém apurou, não andam aqui a anotar de cada vez que alguém cai. No entanto, a preocupação está lá e isso deve significar que os feridos aumentam e até, especulando um pouco, que pode ser que haja mais casos graves relacionados com as trotinetes, senão por que razão iriam as autoridades manifestar essa preocupação no momento em que se atualizava a contagem de mortes na estrada?

Entretanto, depois da proibição em Paris, há outras cidades que vão reduzindo gradualmente o número de trotinetes nas ruas, como é o caso de Roma. Por cá, vamos continuando a não contabilizar e esperando que a tragédia de Alcácer não se repita. Tenhamos sorte e tenhamos esperança, já que não temos lei nem bom-senso.

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