Futebol

Estes clubes devem estar loucos

Portugal foi o país no mundo que mais lucrou com as transferências de jogadores de futebol em 2019, num ano em que – a FIFA acabou de o confirmar – se voltaram a bater todos os recordes. Mas de onde vem tanto dinheiro? Será que estamos perante mais uma bolha prestes a rebentar?

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estes-clubes-devem-estar-loucos Foto: Getty Images
30 de janeiro de 2020 | Bruno Lobo

Para quem assiste de fora a estas movimentações futebolísticas, o mercado de transferências pode parecer um filme dos Monty Python, cheio de nonsense. Uma cena em particular fez-nos pensar na transferência mais badalada dos últimos tempos. No filme A Vida de Brian (dirigido por Terry Jones, que nos deixou recentemente…), o personagem principal é perseguido por uma patrulha romana – a ação decorre na Palestina no tempo de Cristo – e para se disfarçar tenta comprar uma barba postiça no mercado. Está com pressa e desesperado por fugir, mas o vendedor não quer saber disso, nem fazer negócio sem regatear e, como Brian se mostra relutante, explica-lhe: "Eu digo o preço e tu tens de responder ‘dez por isto!? Só podes estar maluco!"

Perguntem hoje aos adeptos do Atlético de Madrid o que pensam sobre a contratação do João Félix por 126 milhões de euros, a terceira transferência mais cara da história do futebol, e vão ver o que pensam. Foi o que fez o jornal desportivo a Marca, e a maioria respondeu "a maior deceção da temporada". 

"O João Félix foi um investimento. Ninguém acredita que valha agora 126 milhões" Foto: Getty Images

Quer isto dizer que o jogador português, afinal, não presta? Nada disso, responde Rui Pedro Braz, analista de futebol na TVI24: "O João Félix foi um investimento. Ninguém acredita que valha agora 126 milhões, mas acreditam que daqui por quatro anos pode valer 200 ou 250 milhões. As pessoas já não se lembram, mas quando o Manchester United pagou 18 milhões pelo Cristiano Ronaldo, em 2003, na altura foi visto como uma loucura dar todo esse dinheiro por um miúdo que nem titular ainda era no Sporting. Arriscaram no potencial e há muitos mais exemplos disto mesmo. Os clubes procuram antecipar-se à concorrência e encontrar o novo Ronaldo, o novo Messi..."

O jornalista António Tadeia, comentador da RTP, acrescenta ainda "ninguém devia acreditar que o João Félix, aos 19 anos, pudesse ter a mesma influência na equipa que tinha o Griezmann, mas o mercado não olha para valor futebolístico do momento, olha para o potencial" e é isso que explica o elevado valor.

A julgar pelo mais recente relatório da FIFA sobre o tema podemos até concluir que o mercado olha seguramente para todo o lado: "Em 2019 o mercado de transferências atingiu níveis sem precedentes, tanto em número de transferências como no valor das mesmas. Houve um aumento de 9,1% relativamente ao ano anterior o que representa, pelo oitavo ano consecutivo, um novo recorde."

Em 2012, lê-se no estudo, o valor global atingiu os 2,66 mil milhões de dólares, mas no ano passado já tinha subido para os 7,35 mil milhões. Um aumento de 6% relativamente ao ano precedente. Ficámos também a saber que nesse período Portugal vendeu jogadores no valor de 564,5 milhões de euros, para o qual contribuíram, para além dos 126 milhões de João Félix, os 50 milhões de Éder Militão para o Real de Madrid, os 38 milhões de Raúl Jiménez para os Wolves ou os 21 de Raphinha para o Rennes. E gastámos "apenas" 180,5 milhões, logo o saldo da nossa "balança comercial" é extremamente positivo: 384 milhões. Inglaterra (968,8) ou Espanha (912,8) realizaram mais dinheiro em vendas, mas como também gastaram muito mais (1518,7, e 1286,6 respetivamente), o saldo destes dois mercados acaba por ser negativo. E 2020 não está a começar nada mal para estes negócios à portuguesa, com o fim da novela Bruno Fernandes (com tanto regateio que também já entrava no sketch dos Monty Python), vendido ao Man Utd por 55 milhões, mais 25 por objetivos. Ou seja, podendo chegar aos 80 milhões de euros.

Rui Pedro Braz fala ainda num efeito dominó: "as receitas televisivas cresceram exponencialmente, os dividendos pagos pela Liga dos Campões evoluíram muito e isso faz com que os principais clubes tenham uma necessidade maior de contratar jogadores de qualidade, fazendo assim o dinheiro circular mais. Quando o Atlético de Madrid compra o João Félix por 126 milhões isso confere ao Benfica uma capacidade financeira que não tinha. Antes não podia contratar jogadores de 20 milhões e agora já compra. 

Para o  comentador da TVI 24, na génese deste aumento brutal de receitas está sobretudo a forma como as autoridades do futebol têm sabido explorar novas oportunidades de negócio, e dá o exemplo do novo formato da Liga dos Campões, que irá entrar em vigor a partir de 2024: "em vez de serem oito grupos de quatro equipas passam a ser quatro grupos de oito, e isto faz com que cada uma tenha garantido pelo menos 14 jogos só na fase de grupos. São mais jogos do que fazem as equipas que hoje chegam à final." Conta também como a "final four" da Supertaça de Espanha mudou este ano de ares para a Arábia Saudita, à semelhança do que já faziam os italianos e nem se "admiraria se daqui por um par de anos uma final da Liga dos Campões também não fosse disputada na Europa."

Já António Tadeia prefere realçar outro factor: "O futebol atrai muito dinheiro que não é do futebol. E isso faz com que o mercado inflacione muito. Mesmo as regras do fair play financeiro (que impedem um clube de gastar para além das suas receitas, para evitar investimentos "milagrosos") não o conseguem impedir". Uma das estratégias mais utilizadas para contornar essas regras "é a sobrevalorização dos patrocínios, como aconteceu no Paris Saint Germain" que detém, recorde-se, os dois recordes mundiais de transferências: Neymar Jr por 222 milhões de euros em 2017, e Kylian Mbappé por 135, no ano seguinte.

Por isso António Tadeia vê com alguma preocupação a participação de fundos de investimento no capital das sociedades desportivas, pelo risco de se gerarem situações menos claras: "Este ano o Leipzig podia ter jogado contra o Salzburg na Liga dos Campões, e ambos são detidos pela Red Bull. Agora imagine-se que calhavam os dois no mesmo grupo e acontecia uma situação em que para um passar seria necessário que o outro perdesse… Mesmo dando por garantida a honestidade de jogadores e treinadores, conseguimos acreditar assim tanto no carácter impoluto dos seus proprietários?"

Ainda assim, como esta não é uma preocupação no topo das agendas dos organismos que gerem os destinos do futebol, Tadeia acredita que "vão continuar a entrar novos investidores", tal como Rui Pedro Braz acredita que "no espaço de dois ou três anos haverá pelo menos um clube a faturar mil milhões por ano — neste momento Barcelona, Real de Madrid ou Manchester United faturam valores na casa dos 800 milhões — e isso é dinheiro deles, o fair play financeiro nem entra para estas contas". Logo é expectável que os recordes nas transferências não se fiquem por aqui. "Fala-se que o Real de Madrid pode estar a preparar uma proposta acima de 300 milhões de euros pelo Mbappé", confidencia-nos Rui Pedro Braz, pondo em sentido os anteriores recordes, mas "ainda bem que os clubes gastam esse dinheiro em jogadores, porque com as receitas a aumentar dois dígitos ao ano, se eles não gastassem um chavo esse dinheiro ia para quem?"

Saiba mais Brunp Fernandes, Manchester United, João Felix, Cristiano Ronaldo, Atlético de Madrid, João Félix, Manchester United, Kylian Mbappé, Liga dos Campões
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