Saíamos cedo de casa, tanto para a excursão dominical – os jogos não variavam de horário, às três ou às quatro horas da tarde, consoante a época do ano – como para as quartas-feiras europeias. O acesso aos estádios não era rápido, ao contrário do que acontece por estes dias, e os transportes públicos ganhavam vantagem sobre o "carro próprio" pois que ainda não havia garagens nos estádios. Precisávamos de apetrechos que iam dos guarda-chuvas, agora proibidos por razões de segurança, ao farnel, tantas vezes partilhado entre vizinhos e familiares. Se a semanada ainda sobrava, havia as rulotes, da febra ao cachorro-quente e a outros produtos dieteticamente impensáveis. Se o nosso clube jogava fora, também assumíamos a "excursão punitiva" que nos levava a provar a culinária "regional", sempre de olhos postos no relógio, para não haver percalços à chegada individual ou em pequenos grupos. Nada que se assemelhasse a claques, organizadas ou não, "legalizadas" ou não, e, muito menos, com direito a "caixas de segurança" e escolta policial.
Os tempos eram outros e as altercações com consequências físicas eram localizadas e efémeras. Foi esse clima, diametralmente oposto ao que se vive agora, que me permitiu frequentar e conhecer tantos estádios, da Luz a Alvalade, do Restelo à Tapadinha, do Eng.º Carlos Salema (do Oriental) ao Pina Manique, das Amoreiras (Estoril) ao Bonfim (Setúbal), dos dois recintos do Barreiro (Barreirense e CUF), de Coimbra ao Fontelo (Viseu), da Mata Real (Paços de Ferreira) ao 28 de Maio (Braga), de Guimarães a Leiria, do Bessa (Boavista) a Vidal Pinheiro (Salgueiros), da Póvoa de Varzim ao Estádio do Mar (Leixões). E as Antas, sempre sem problemas. Levavam-se as namoradas e os amigos "não iniciados", levavam-se os miúdos que até tinham, muitas vezes, entrada gratuita. As bancadas de cimento, abrasadoras aqui, empapadas de chuva noutras ocasiões, eram o luxo possível, tendo como alternativa a hipótese, muito disseminada, de os jogos serem vistos de pé, "à molhada", sem mortos nem feridos, salvo excepções fáceis de enumerar. Chamavam-lhe "Peão". No fim, transportava-se a alegria da vitória ou carregava-se o peso do desaire, mas sem dramas, nem ódios. Como cantaria Sérgio Godinho, "e até domingo que vem". Hoje, os estádios dispõem de parqueamento e, quase todos, ganharam vias rápidas para evitar confusões de trânsito. Há restaurantes e bares, camarotes com fartura, merchandising espalhado pelos pontos fulcrais que conduzem às bancadas, cadeiras de plástico (que, infelizmente, acabam amiúde por se transformar em armas de arremesso contra "os outros" ou, até, apontadas aos "próprios"), comodidades que inequivocamente se saudariam se não se verificassem contrapartidas – por exemplo, as intermináveis revistas preliminares que nem por isso conseguem evitar a entrada dos chamados "artigos pirotécnicos", cuja utilização se vai vendo e ouvindo por tantos estádios, à revelia do que pressupõe um espectáculo dito civilizado. Há camarotes de empresa porque o futebol também passou a ser testemunha (involuntária?) de muitos negócios. Há conforto, claro. Mas também se verifica algo de estranho – indispensável, defendem alguns – quando os adeptos da equipa visitante ficam circunscritos, amontoados, em lugar distinto, como se de indesejáveis se tratasse.
É um passo controverso explicado pelos confrontos "a doer" que deixaram de ter hora marcada: ocorrem antes e depois dos jogos, mais do que durante os mesmos. Nos últimos tempos, as agressões cresceram de tom, até com a cobarde e vergonhosa invasão do local de treino dos artistas e técnicos de um grande clube por adeptos do mesmo clube para punir, indiscriminadamente, não se sabe bem o quê. As sementes de violência saltaram do canteiro verbal para o domínio físico – sem limite, sem controlo, sem pudor, sem sentido. Em Portugal, seguimos à distância o hooliganismo que assolou as Ilhas Britânicas, há alguns anos. Pena é que adoptemos as práticas, mas que não haja coragem – fundamentalmente dos clubes, mas também das autoridades desportivas, policiais e até políticas – para aplicarmos as soluções que permitiram aos insulares resolver o problema.
O outro rectângulo: a TV
Em tempos idos, a transmissão de um jogo pela Televisão estava longe de ser a norma. Acontecia numa ou noutra partida do Campeonato, na final da Taça de Portugal (ainda e sempre uma festa, com cenário bem definido), em jogos das competições internacionais. Depois, passámos a ter uma partida por semana. Hoje, todos os encontros da Liga principal (e até alguns da secundária) passaram a poder ser vistos no ripanço do sofá. O que, desde logo e para maximizar as audiências, obrigou a diversificar horários: uma jornada da nossa competição mais importante passou a estender-se de sexta-feira até à segunda-feira seguinte. Não são poucos os que concluem que há uma subordinação cada vez maior do futebol aos interesses dos canais transmissores, mas o certo é que os clubes, que vivem um complicadíssimo equilíbrio para conseguirem cumprir os orçamentos, precisam das receitas que as televisões lhes proporcionam. E sujeitam-se a muito: naquele que é considerado o campeonato mais poderoso e mediático do mundo, o inglês, vemos clubes a jogar de manhã, de forma que as televisões não percam o crescente mercado asiático. A influência da Televisão poderá, a curto ou a médio prazo, implicar alterações nas próprias regras do Futebol. Estudos há, em especial de países não-europeus, que defendem a mudança de duas partes de 45 minutos para três períodos de meia hora – o que permitiria mais um intervalo publicitário para arredondar as contas. Até agora, a FIFA tem resistido a essas mudanças estruturais. Mas pode não aguentar muito mais tempo. De resto, a Televisão tem estendido mais tentáculos em direcção ao jogo: as repetições (insistentes durante as partidas e estendidas, até à náusea, depois delas) lançaram desconfianças e veicularam verdadeiros atestados de incompetência sobre os árbitros – sempre o elo mais fraco entre todos os elementos participantes no "fenómeno" –, a tal ponto que se aplica agora uma "revisão em vídeo", o VAR ou vídeo-árbitro, para tirar dúvidas ou aplainar alguns erros mais clamorosos. Mas somos humanos e nem essa nova medida parece capaz de diminuir o ambiente de contínua suspeição sobre quem tem de decidir. Nos últimos anos, em função do apagamento da política e também porque o preço das reportagens está pela "hora da morte", as televisões viraram-se para os programas "de adeptos". Não são todos iguais, obviamente, e não se confundem uns com os outros. Mas há casos gritantes, protagonizados por quem não entende – ou não quer perceber – as responsabilidades de estar e falar na Televisão, com milhares de espectadores indiscriminados. Do futebol deriva-se rapidamente para o pior dos "circos" com discursos de total intolerância, de completa cegueira face aos factos e à verdade, de repetição pura e simples de um discurso "oficial" dos clubes representados e que, salvo melhor opinião, pouco tem de debate construtivo. Chega-se ao ponto, absurdo, de haver comentadores mais conhecidos do que jogadores e de se tornar óbvio que existe, em muitos momentos, uma verdadeira exibição do "lixo tóxico" que, infelizmente, gravita em torno de uma indústria tão poderosa e tão rentável, mais para uns do que para outros… como é o Futebol. Os jornais desportivos passaram de trissemanários a diários, não conseguindo – com as excepções que devem registar-se – manter o nível da informação prestada e a equidistância. O que descamba nisto: muitas vezes, as manchetes e os grandes espaços internos são preenchidos com declarações de quem não justifica tal protagonismo ou com questões colaterais que pouco ou nada têm a ver com algo que, no fundo (cada vez mais fundo…), ainda continua a ser um desporto.
O jogador como modelo
Claro que houve, com a revolução tecnológica, algumas boas novidades, de que pode destacar-se o chamado "Olho de falcão", sistema que permite apurar, com rigor, se a bola transpõe, integralmente ou não, a linha de baliza, evitando golos-fantasma ou a não validação de golos autênticos. Ainda assim, se procurarmos a mais radical das evoluções, essa prende-se com o estatuto dos jogadores, dos atletas, dos "artistas", como é legítimo chamar-lhes. Nos nossos dias, eles são representados e defendidos por agentes e empresários muitíssimo bem remunerados que lhes poupam preocupações e que procuram sempre assegurar-lhes os melhores contratos, cujos montantes mais altos continuam a ser superados a cada época que passa. Este ano, com a realização do Mundial – em que Portugal surge com responsabilidades acrescidas, depois da conquista do título europeu –, é já óbvio que os recordes vão ser batidos e que a astronómica soma que levou o brasileiro Neymar do Barcelona para o Paris Saint-Germain deverá passar à história, porventura até com o mesmo "actor principal".
Até em Portugal, mais vendedor do que comprador por força do desnível económico a favor de terceiros, o jogador de futebol há muito deixou de ser "parente pobre". À semelhança do que acontecia com as realezas, os políticos e as personalidades televisivas, o futebolista passou a ser alvo dos paparazzi que hoje se estendem – no espírito como na forma – às redes sociais. Ganharam peso de modelos a seguir, com muitos pais (e não apenas os mais desfavorecidos, como parecia passar-se noutros tempos) determinados a conseguir que os filhos comecem a jogar o mais cedo possível, para chegarem depressa aos contratos mais compensadores. Proliferam as chamadas "escolinhas" para as crianças e adolescentes e a verdade é que os clubes cada vez contratam mais cedo, de maneira a conseguir mais-valias, sejam elas desportivas ou financeiras. Criou-se até um esquema de compensação que permite aos "clubes formadores" ser contemplados com uma compensação financeira em caso de futuras transferências.
Noutras eras, contavam-se pelos dedos de uma mão os jogadores que conseguiam tornar-se veículos publicitários – recordem-se os exemplos de Eusébio a "divulgar" uma empresa de construção e Vítor Damas a dar a cara, literalmente, por um creme de barbear. Hoje, os desafios são múltiplos e em áreas distintas, das produções de moda (na sequência dos anúncios a jeans protagonizados por David Ginola) aos produtos para o fortalecimento capilar, numa lista tão diversa que aqui não faria cabimento. Também por isso, muitos jogadores, essencialmente pagos para jogar à bola e (em muitos casos, mas ainda assim menos do que se pensa) bem pagos – o que é perfeitamente justo, sabendo-se que exercem uma profissão com duração limitada –, passaram a incluir nos contratos com os clubes uma cláusula que lhes permite auferir mais receita em nome dos "direitos de imagem". Algo que não espanta, se pensarmos, só a título de exemplo, no que reverte para os clubes por conta do merchandising. O novo campeão nacional, o Futebol Clube do Porto, anunciou ter recebido 6,4 milhões de euros com a venda de camisolas, só ao longo desta época. Os jogadores tornaram-se heróis e ídolos, da forma de vestir aos penteados, das tatuagens aos brincos. Estão hoje mais bem preparados para esta vida de muitos sacrifícios e privações, em nome do que fazem, e para aquela que se segue ao seu período de actividade. Evidentemente, cada caso pode diferir de todos os outros. Mas há, desde a lei Bosman (que veio aumentar, largamente, a livre circulação de atletas), uma outra consciência profissional, ao mesmo tempo que a condição de profissional emigrante deixou de ser um estigma para passar a ser um estímulo. Mesmo nos clubes portugueses que, insiste-se, dificilmente conseguirão emparceirar com os mais ricos da Europa (continente dominante no que toca ao Futebol), é possível ir às equipas secundárias ou mais jovens e sair de lá com um mapa-mundo bem preenchido. O reverso da medalha para os adeptos portugueses é ver partir muitos dos grandes valores nacionais – por alguma razão, a Selecção Nacional junta uma esmagadora maioria de jogadores que, semana a semana, jogam noutras paragens. Neste capítulo da "exportação", começaram a ganhar peso os treinadores, daquela que os especialistas consideram ser uma belíssima escola – a portuguesa. Espalham-se por diversas latitudes e, em muitos casos, conseguem títulos e troféus ou, pelo menos, o reconhecimento inter pares que faz deles trabalhadores qualificados para o desafio. Sabendo-se que, nos dias que vivemos, ser treinador exige uma reciclagem permanente e uma dedicação cada vez mais intensa ao que se faz. Para que este panorama se mantenha, naturalmente com José Mourinho como paradigma, falta que os agentes do futebol, cada vez mais transnacional, não continuem a dar facadas nesta "galinha dos ovos de ouro". Será ingenuidade, mas não se paga mais pelo sonho de voltar a respirar um ar mais puro e menos viciado no futebol português. Basta que quem manda e quem pode assuma responsabilidades e assuma a ideia de que não é preciso ganhar tudo, desportiva e financeiramente, num período curto e susceptível de truques para dar uma ajudinha. Caso contrário, estraga-se a festa. E vamos acabar todos mergulhados na nostalgia com saudades dos guarda-chuvas e do farnel. Não há necessidade.