Não terá sido, não pode ter sido por acaso que Anthony Bourdain (1956-2018) começou este seu livro de crónicas de viagens gastronómicas - ou de gastronomia em viagem, ou de aventuras em viagem durante as quais experimentou comida - com o relato literário e apaixonado de uma experiência culinária em Portugal. Assim mesmo: Portugal. E chamou-lhe medieval - chamou-nos, no fundo.
Pudera. Até para alguém como Anthony Bourdain a matança do porco tem contornos de barbárie. Além disso, o chef fala da experiência como uma espécie de chamada à realidade em que é obrigado a meter as mãos na massa: "Tenho sido como o Michael Corleone em O Padrinho II, ordenando a morte por telefone, com um aceno de cabeça ou com um olhar", reflete Bourdain. Tudo o que pede, acaba por lhe chegar à cozinha, embrulhado ou embalado, sempre limpo, quase sem vestígios de sangue. "Nunca, até à minha chegada a uma quinta no Norte de Portugal, tive de olhar a minha vítima nos olhos", conclui o autor, explicando em seguida a maneira medieval - lá está - como um porco é "abatido, estripado e dividido nas partes constituintes" diante do seu olhar, provavelmente incrédulo, possivelmente assustado, mas, quase de certeza, carregado de desejo de provar o que dali resultou.
Esta experiência, a primeira do livro, é vivida por Anthony Bourdain a convite de um português, José, com quem trabalhava na cozinha da Brasserie Les Halles. Nessa mesma cozinha trabalhavam mais portugueses, e foram esses que ajudaram a construir o mito por trás da matança do porco que, em última instância, acabaria por levar Bourdain ao Norte de Portugal para ver, cheirar, provar e principalmente ouvir - quem nunca ouviu os guinchos de um porco que vai para a matança não saberá do terror a que nos referimos, tanto agora neste texto como no do livro de Anthony Bourdain - o animal diante do horror da morte e todos os costumes que rodeiam o ritual (além de todos os fabulosos pitéus que daí resultam).
A Cook’s Tour - Em busca da refeição perfeita, publicado pela primeira vez, no original, em 2001, tem agora edição recente (março de 2023) pela Casa das Letras. Este episódio do livro será aquele que mais aproxima o leitor português deste impressionante registo do conhecido autor de Kitchen Confidential e apresentador de No Reservations, no Travel Channel. Porém, não é seguramente nem o mais exótico, nem o mais apaixonante, nem tão pouco o mais surpreendente dos que o chef norte-americano descreve. E não nos ficamos apenas pelo que come. Por exemplo, é extraordinária a abertura do livro, com a introdução, em que Bourdain descreve uma monumental bebedeira às custas de um bando de habitantes locais de uma aldeia perdida em pleno Vietname, nas terras do General Kurtz de Apocalipse Now a partir dos delírios de negrume de Joseph Conrad em Heart of Darkness.
Há mais, muito mais. E o mais extraordinário é que Bourdain tenha tido estômago - e coração, e fígado, e cabeça - para tudo: provando, degustando, desfrutando, deglutindo e desejando mais, sempre mais. Era dono de um espírito admirável, Anthony Bourdain. Muito mais do que um grande chef e um grande contador de histórias, Bourdain era um implacável explorador, ávido de novidade, sedento de deslumbramento, sequioso de descoberta. O que levará um homem são, adulto e bem-sucedido a atravessar um campo de minas dos Khmer Rouge, no Camboja, só para experimentar um prato popular naquela região? Que abençoada, ou diabólica, curiosidade poderá mover um ser humano em direção ao perigo, ao nojo e à repulsa, como aquela que sentiu quando lhe foi dado a comer um coração ainda pulsante de uma cobra em Saigão?
A resposta a todas estas questões começa na inquietação que Bourdain revela no subtítulo do livro: "In search of the perfect meal" ("à procura da refeição perfeita"). Já dentro do livro, enquanto apresenta ao leitor o seu empreendimento, o autor explica que, quando se fala da refeição perfeita, não se deve nunca imaginar um prato de autor, concebido por um grande chef para ser degustado juntamente com o vinho ideal, possivelmente precedido por um prato de sofisticação idêntica e sucedido por outro de grau de dificuldade equivalente.
Não é nada disso que o explorador Bourdain aqui procura. O que se busca é o que há de visceral na gastronomia de cada lugar. E essa visceralidade até pode ser figurada e significar genuíno, tradicional, recôndito, puro ou remoto; mas também pode ser literal, como no caso da matança do porco em Portugal, onde os homens que desafiaram Bourdain se orgulham de tudo no porco ser comido, de ponta a ponta, pele, tripas e gordura, miolos, vísceras e patas. Quer dizer: tudo, menos a bexiga. Essa, é costume enchê-la de ar e atar-lhe a ponta para fazer uma bola para os miúdos da aldeia se divertirem.