Durante uma conferência de imprensa recente em Paris, onde vários jornalistas de todos os cantos do mundo interrogavam a atriz Angelina Jolie a propósito da sua mais recente campanha para o perfume Mon Guerlain, uma jornalista questionou-a sobre o conselho que diria a uma Angelina jovem. "Não faças tatuagens", brinca. "Sou uma grande defensora do não arrependimento porque acredito que não seriamos quem somos se não cometêssemos erros, incluindo os grandes. Sou um produto de todas as decisões que tomei, das boas e das más, e por isso repetiria cada uma delas." Curiosamente, e na campanha em questão (filmada no Camboja, numa zona rural onde tem uma casa) a atriz de 44 anos mostra umas costas notoriamente tatuadas. Esteticamente bonitas para alguns (chegando a ser verdadeiros projetos de vida numa vertente artística) e abomináveis para outros, será que as tatuagens estão a sair de moda, lentamente, e a unir consensualidade no que toca ao arrependimento de quem as adquiriu? A história diz-nos que a tatuagem já se popularizou, já estagnou, já foi conotada com realidades marginais e criminais, mas também profissões artísticas – sobretudo não é uma realidade nova.
O ato de tatuar a pele tem uma origem milenar, uma vez que remonta aos tempos do neolítico, através das evidências na pele preservada das múmias. Por exemplo, há sessenta e uma tatuagens no Ötzi, uma múmia com 5 mil anos encontrada nos Alpes italianos, segundo o episódio Tattoo, explained da série documental Explained (da Netflix). "Há cinquenta anos as tatuagens eram incrivelmente raras, e em vários sítios do mundo, essa continua a ser a realidade" explica o locutor do episódio. Mais à frente, explica-se ainda que as tatuagens se espalharam pelo mundo "através da comunidade indígena há milhares de anos, passando de geração em geração, para marcar datas comemorativas, pertença a um grupo ou poder espiritual". Neste episódio, o antropologista especialista em tatuagens Lars Krutak diz acreditar que não existiu uma origem concreta das tatuagens no mundo, mas sim que foi uma invenção independente com várias origens, dizendo ainda que como seres humanos "temos este impulso natural de registar acontecimentos de vida marcantes".
Contextualizando o tema na atualidade (leia-se início dos anos noventa até hoje), o futebol foi certamente um dos meios que popularizou, e por sua vez propagou, a aquisição de tatuagens. Na edição de agosto de 2019 da GQ inglesa, o futebolista jamaicano Raheem Sterling confessou a razão de se ter arrependido de começar a tatuar, quando o jornalista lhe perguntou por que o fazia, já que também considerava que o seu corpo era um templo. "Se pudesse voltar atrás, não teria nenhuma tatuagem. Uma vez que se começa [a tatuar] não se consegue parar".
Na mesma entrevista, Sterling aponta o facto de quase nenhum colega futebolista ter a pele virgem no que toca a tatuagens: "O [Ilkay] Gündogan não tem nenhuma. O Vinny [Jones] também não." A pequena lista inclui o fenómeno Cristiano Ronaldo, que é dador de sangue regular, tendo sido associado a campanhas de apelo a essa ação. Seja no nosso imaginário futebolístico ou numa rápida pesquisa do Google, vejam-se nomes como David Beckham, Raul Meireles, Djibril Cissé ou Marcos Rojo, detentores de corpos tatuados que por diversas vezes mostram ao despir as camisolas, quase sempre durante momentos mais celebrativos e durante os jogos, perante milhares de espectadores.
"Até se começar a ver os futebolistas - que acabam por aparecer com os corpos bastante despidos e todos tatuados, as tatuagens (tal como os piercings) não eram bem vistas. Sobretudo em negócios mais tradicionais e formais, na banca e nos serviços, diria mesmo que tudo dependia do gosto do empregador", começa por explicar Ana Loya, especialista em psicologia das organizações e gestão de empresas e licenciada em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, que nos últimos anos geriu empresas e projetos de consultoria, search, recrutamento, managing assessment e executive coaching. Mas não foi apenas o futebol o responsável por essa popularização.
"Se considerarmos que a boa apresentação é um bocadinho a média do senso comum, pode-se pensar que tudo o que é demais pode não ser considerado boa apresentação. E aqui falamos de situações tão injustas como a obesidade, a altura, o odor, a gaguez, as rugas… e talvez as tatuagens. Não falando do estigma ou do preconceito que possa estar associado às tatuagens, mas sim do gosto do empregador. Como uma pessoa com o cabelo verde teria, há uns anos, maior dificuldade em encontrar trabalho".
No entanto, há estudos que desmentem esta ideia. Segundo um ensaio publicado no journal Human Resources e abordado num artigo do jornal britânico The Independent ter tatuagens já não implica menor hipótese de entrar no mercado laboral. No estudo, levado a cabo por duas universidades de negócios, em Miami e na Austrália, "a percepção das tatuagens no local de trabalho mudou muito nos últimos anos, e a arte corporal já não está ligada a empregos mais individuais ou a discriminação salarial".
Mas será que as tatuagens, mesmo que se tenham tornado um fenómeno cool, continuam a não ser um factor verdadeiramente eliminatório a priori? "Eu diria que uma pessoa que tenha o corpo todo tatuado poderá ter mais dificuldade em arranjar algum emprego, sendo que as coisas mudaram infinitamente. Eu hoje estou a calçar ténis, há vinte anos no mínimo estava de mocassins" exemplifica Ana Loya. "Os preconceitos vão mudando. Quando comecei a trabalhar, uma mulher de óculos era mais inteligente que as outras. Talvez hoje em dia já não se conote uma pessoa tatuada com uma pessoa marginal ou heavy rock, que é o que acho que inicialmente as pessoas achavam."
Tendências e preconceitos à parte há cada vez mais pessoas que removem ou reconstroem as suas tatuagens. Segundo o artigo do The Huffington Post O que realmente acontece quando se remove uma tatuagem, um em cada oito norte-americanos adultos arrependem-se de pelo menos de uma das suas tatuagens de acordo com a Food and Drug Administration (FDA). Mais do que nunca, e graças à evolução da tecnologia no que respeita à remoção das tatuagens da pele, são muitas as pessoas que recorrem a este serviço. "O aumento da realização de tatuagens aumenta proporcionalmente à procura da sua remoção. 12% da população europeia tem, pelo menos, uma tatuagem. Em Portugal, nos últimos 5 anos, houve um aumento de 20% na realização de tatuagens levando consequentemente a uma maior procura da sua remoção", explica a médica dermatologista Isabel Correia da Fonseca.
Na sua clínica, a clínica Isabel Fonseca, este é sem dúvida um dos métodos mais requisitados graças à eficácia máxima do laser picosure, o mais revolucionário na remoção de tatuagens (e também no tratamento do rejuvenescimento facial, de manchas pigmentadas e de cicatrizes de acne), um laser com comprimento de onda de 755nm, que emite uma grande quantidade de energia num curto espaço de tempo (picosegundos).
Sobre o género de pessoas que recorrem a este serviço, e porquê, Isabel Fonseca não hesita: "Todo o tipo de pessoas. O fator principal que leva à remoção é o arrependimento motivado por razões pessoais de ordem estética ou por pressões familiares ou profissionais. Por outro lado há por vezes o desejo de fazer nova tatuagem, voltar a tatuar na zona previamente tatuada - pelo que necessitam de remover a anterior. Os candidatos a remoção chegam até nós após uma pesquisa exaustiva de todos os lasers disponíveis no mercado e respetivos resultados", esclarece. Questionada sobre o estigma, acrescenta ainda que "os principais fatores para a decisão de remoção de tatuagens, são, como referido anteriormente, o arrependimento e factores pessoais sociais e profissionais, desta forma, o estigma existe." A remoção de tatuagens transformou-se num negócio milionário global, que em 2016 valia 11.6 biliões de dólares (e, segundo o episódio acima mencionado, em 2023 valerá 27,3 biliões) com a Índia, o Japão e os Estados Unidos na liderança desta indústria.
Foi, entre outros aspetos, sobre o estigma no mercado laboral que Vitor Sérgio Ferreira elaborou, na sua tese sobre tatuagens. Sociólogo e investigador auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS), Vitor é autor de uma tese e vários estudos sobre tatuagens e do livro "Marcas que Demarcam: Tatuagem, Body Piercing e Culturas Juvenis", em 2008. À Must explica como tudo mudou em poucos anos. "Quando me começo a aproximar deste tema é mais pelo body piercing do que propriamente da tatuagem, e o que venho a descobrir, quando começo a falar com as pessoas, é que o body piercing é de facto uma coisa mais decorativa e com alguma rebelião irónica, não era algo tão a sério como a tatuagem o era, pelo seu valor de permanência", começa por explicar, sobre os primórdios do seu estudo, cuja investigação decorreu entre 2002 e 2004.
"O que eu venho a constatar é que existiam duas lógicas de apropriação [das tatuagens]: a experimental, que em grande medida era a lógica que fazia sobreviver (e multiplicar) os estúdios de tatuagem, pessoas que experimentavam tatuar, geralmente coisas mais pequenas e muito padronizadas. Havia essa lógica, e a do projeto de corpo, que é também um projeto de identidade (…) em que as pessoas sabem que a epiderme é finita, e que têm de gerir a própria finitude da pele."
Depois de horas passadas em salas de espera de estúdios de tatuagem a conversar com pessoas que tatuavam por mera curiosidade, encontrou algumas do outro grupo, as do projeto de identidade. "Uma das pessoas que entrevistei era cozinheiro. Na altura, falou-me (tal como outras pessoas me falaram) do grande problema que era ter uma tatuagem [visível]. Neste caso, o seu patrão sabia que ele fazia tatuagens, não se importava que fizesse, mas advertia sempre: cuidado, não as faças em lugares que não possas cobrir com a roupa. Havia, nitidamente, "zonas tabu" que não podiam ser alargadas, normalmente do pulso em direção à mão ou do pescoço em direção ao rosto. O que ele relatava é que, no contexto onde ele trabalhava, a gastronomia, as tatuagens estavam muito associadas ao sujo, à pessoa marginal, e que os clientes não iriam compreender, e que passava o risco de as pessoas deixarem de ir ao restaurante", conta, explicando que a realidade mudou a par, também da criatividade associada aos chefs de cozinha. "Hoje há muitos chefs de cozinha extensivamente tatuados, que assumem com bastante clareza, visibilidade e orgulho as suas tatuagens. Porque, de facto, os sentidos que eram atribuídos à tatuagem há 20 anos iam muito pela ideia de um corpo marginal, "sob suspeita", boémio… é um imaginário muito do fim do século XIX e do próprio século XX. Quem se tatuava era um marginal ou uma prostituta", adianta ainda, sobre o facto de ao longo da história, a tradição ancestral da tatuagem ter vindo a ser socialmente valorizada. Os marinheiros, por exemplo, tatuavam para marcar conquistas no mar ou locais por (e até) onde navegaram, e as suas tatuagens popularizam-se aquando da invenção da máquina de tatuagem, em 1891. Algumas das tatuagens mais populares, como corações, âncoras ou andorinhas, ainda hoje permanecem como alguns dos mais tatuados símbolos. Nesta altura, também os artistas de circo começaram a adquirir tatuagens, tendo este sido um dos grupos responsáveis pela sua popularização. As prisões, por sua vez, também contribuíram para a expansão dessa prática, associando -a à marginalidade.
A verdade é que existem muitas evidências da associação das tatuagens a um lado humano que é cool e artístico. No site do MUDE (Museu do Design e da Moda) e sobre a coleção de tatuagens dos períodos 1910 - 1940 que foi exibida em 2017 no Palácio Pombal sob o tema O mais profundo é a pele (pertencente ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses) pode ler-se sobre isso mesmo. "Os visitantes ficam a conhecer uma coleção de particular valor museológico e científico, ao mesmo tempo que podem sentir a vivência dos bairros típicos de Lisboa durante as primeiras décadas do século XX, em que a tatuagem se misturava com a marginalidade, a prostituição, o fado, a marinhagem." Exibição essa que pretendeu também reflectir sobre influência da tatuagem em áreas como "a fotografia, o cinema, o design ou a moda, sendo objeto de análise da filosofia, da arte, da medicina, da sociologia, da psicologia ou da antropologia." Por mais particular que possa parecer, a tatuagem, toca todos os universos da sociedade atual. Adquirir ou não uma começa a deixar de ser uma questão, graças (como em boa parte tudo, nos dias de hoje) à veloz evolução da tecnologia.
Legislação em Portugal
Se por um lado existem sítios onde a tatuagem não tem leis directas, também há outros em que as há e bastante rígidas. Na China, por exemplo, as tatuagens são banidas de aparecer em televisão, enquanto no Japão são frequentemente banidas de spas e piscinas. É importante referir a ausência, em Portugal, de legislação de qualquer natureza sobre tatuagens, ausência essa que foi reforçada e evidenciada num estudo da DECO, publicado em 2018, que também alerta sobre os perigos das infeções cutâneas. "Portugal tem uma legislação omissa. Qualquer pessoa pode abrir uma loja de tatuagens, e qualquer menor se pode tatuar. Ao contrário do Reino Unido, onde por exemplo, os menores para serem tatuados têm que ter o consentimento dos pais. Em Espanha há alguma legislação, que não é específica do mercado laboral, sobre a tatuagem em si", conclui Ana Loya.